A Igreja da Unificação está no centro das atenções desde que foi divulgado que o homem que matou o ex-primeiro-ministro Shinzo Abe, em julho deste ano, foi motivado pelo ressentimento contra esta Igreja, acusada de pressionar os seus membros a fazer grandes doações.

O homem acusado de matar Abe, Tetsuya Yamagami, ressentiu-se da Igreja da Unificação por a sua mãe ter feito doações significativas a esta organização religiosa, a ponto de arruinar a sua família — estima-se que tenha doado cerca de 100 milhões de ienes (perto de um milhão de euros) à Igreja, segundo um tio do suspeito. Yamagami também achava que Abe era próximo daquela organização.

A seita, fundada na Coreia do Sul por Sun Myung Moon, negou falhas nas suas ações, apesar de vários ex-membros terem criticado publicamente as suas práticas e terem revelado as ligações da organização a figuras e entidades políticas, inclusive o partido de Kishida.

O primeiro-ministro afirmou nesta segunda-feira que "muitas vítimas" da Igreja caíram na pobreza ou enfrentaram a desintegração familiar.

"Os esforços para ajudá-los ainda são insuficientes", disse, antes de anunciar que "o governo exercerá o seu direito de investigar a Igreja com base na Lei de Corporações Religiosas".

Keiko Nagaoka, ministra da Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia, afirmou à imprensa que, por ordem de Kishida, a investigação "começará imediatamente".

A investigação pode levar à dissolução da Igreja da Unificação, o que retiraria da congregação o estatuto de organização religiosa isenta de impostos.

O governo, no entanto, tem hesitado quanto à possibilidade de emitir uma ordem do tipo contra a Igreja da Unificação, porque a medida gera preocupações a respeito da liberdade religiosa.

O caso arrisca abalar ainda mais o panorama político japonês, depois de se ter sabido, no início de setembro, que cerca de metade dos legisladores do partido do governo no Japão têm vínculos com a Igreja da Unificação.

O secretário-geral do Partido Liberal Democrático (PLD) do Japão, Toshimitsu Motegi, disse que uma investigação interna revelou que alguns legisladores aceitaram apoios da Igreja às suas campanhas eleitorais. Outros participaram em reuniões ou pagaram taxas à organização, cujos membros são popularmente conhecidos como "Moonies", devido ao nome do seu fundador coreano.

Dos 379 legisladores do PLD, 179 têm "algum tipo de vínculo" com a Igreja da Unificação, declarou Motegi. "Levamos estes resultados a sério. Sinceramente, lamentamos e garantiremos que o partido deixará de ter relações de qualquer espécie" com a Igreja, acrescentou. 

Uma semana antes, o primeiro-ministro já tinha dito que os membros do PLD deviam cortar vínculos com o grupo religioso. Caso altamente comprometedor para Fumio Kishida — e que significou uma queda na sua popularidade —, o líder anunciou que "o rompimento de laços entre a organização em questão" e os parlamentares do PLD tornar-se-á norma no partido.

Os funcionários eleitos e os representantes políticos "devem ser cuidadosos nas suas relações com organizações consideradas problemáticas pela sociedade", acrescentou na altura. Kishida reorganizou o seu governo no início de agosto, mas alguns membros da sua nova equipa também tinham ligações com a "seita" Moon. 

Da parte da Igreja da Unificação, a organização negou qualquer irregularidade e repudiou o assassinato de Abe, mas um dos seus líderes, Hideyuki Teshigawara, garantiu que a Igreja “levará em conta a situação financeira dos fiéis e garantirá que as doações não sejam excessivas”. 

A Igreja "respeitará a independência e o livre arbítrio dos fiéis" em termos de doações, disse Teshigawara, que chefia uma comissão encarregada de reformar a organização.

Em agosto, o ramo japonês da organização disse que "fez esforços conjuntos para garantir que as doações feitas não sejam muito grandes em relação ao património da pessoa". Segundo a Igreja da Unificação, Abe nunca foi membro ou conselheiro da entidade, embora falasse em eventos organizados pelos seus grupos afiliados.

Casos como o da mãe do suposto assassino de Abe não são incomuns para o advogado Hiroshi Yamaguchi, que representa ex-membros da Igreja. "Os membros são pressionados todos os dias a doar", disse à AFP. "Eles dizem que há um karma ligado ao dinheiro e que (as doações) são a única maneira de se salvar. Assim, uma pessoa acha que tem de fazer isto", explicou.

Em 2005, o alegado assassino terá tentado suicidar-se após a falência financeira da mãe, na esperança de que os seus irmãos recebessem um pagamento do seguro. O seu irmão mais velho tirou a própria vida uma década depois.

Numa carta contra a Igreja, enviada a um blogger um dia antes do assassinato de Abe, Yamagami disse que sua adolescência foi prejudicada pelos gastos excessivos e consequente falência da sua mãe. "A experiência distorceu toda a minha vida", segundo a carta publicada pela imprensa local.

Ex-membros da Igreja relataram separações familiares semelhantes, incluindo uma mulher japonesa cuja mãe lhe disse para ficar com um marido abusivo, escolhido a dedo pela "seita", porque o divórcio "agradaria a Satanás".

"Não posso defender o que (Yamagami) fez, mas é assim que a Igreja destrói vidas", disse a ex-membro da congregação, sob condição de anonimato, numa conferência de imprensa.

Oficialmente conhecida como Família das Federações para a Paz e Unificação Mundial (FFWPU), a igreja foi fundada em 1954, tendo a versão japonesa começado em 1959 e ganho impulso com o boom económico da década de 1980, "uma época em que as pessoas não sabiam como viver as suas vidas", diz Kimiaki Nishida, professor de Psicologia Social da Universidade Rissho, em Tóquio.

A referida Igreja oferece "vendas espirituais" de bens com preços exorbitantes, como uma estatueta de 42 milhões de ienes (350 mil euros), dizendo aos crentes japoneses que a sua compra absolvê-los-ia, a eles e aos seus ancestrais. Mas os enormes pagamentos dos membros geraram uma reação negativa.

A Rede Nacional de Advogados contra as Vendas Espirituais do Japão diz que entrou com processos para recuperar 123,7 mil milhões de ienes (900 milhões de euros) em danos de ex-seguidores desde 1987.

Uma série de prisões desde os anos 2000 e decisões contra a Igreja impuseram limites às vendas espirituais, mas o advogado Yamaguchi diz que os crentes continuam a ser pressionados a cumprir as metas mensais de doação.

O advogado afirma que a Igreja da Unificação diz aos seus membros que "é uma meta decidida por Deus". Mas a Igreja nega pressões. "O nosso critério é que todas as doações para o céu devem ser dadas livremente", disse Demian Dunkley, assessor de imprensa da FFWPU, à AFP.

"A FFWPU às vezes pede doações, mas os seus membros é que decidem quando, e quanto, doar", acrescentou.

(Artigo corrigido às 15h31 de 17/10/2022)