Marinha Ramos, que "nunca tinha passado tanto tempo longe" da filha, Anabela, vive a "três ou quatro" quilómetros da Villa Urbana, espaço que a Associação do Porto de Paralisia Cerebral (APPC) gere em Valbom, Gondomar, onde vivem, atualmente, 28 pessoas em 14 apartamentos (T1 a T3). Vai à instituição "de máscara e com o frasquinho de álcool gel no bolso" levar "os iogurtes e as fraldas que a Anabela mais gosta", mas não entra.
"Se pensar com a cabeça", Marinha sabe que "tem de ser assim para evitar que o vírus entre na instituição", mas "se pensar com o coração", anda com ele "muito apertadinho de saudades", conta à agência Lusa.
Já António Magalhães, 60 anos, um dos residentes da Villa Urbana, afirma que "a vida vai muito para além de um vírus" e mostra alguma "ansiedade" em retomar "a liberdade" que tinha conquistado graças à cadeira de rodas elétrica que o levava ao supermercado ou às aulas de história na Universidade Sénior de S. Cosme, mas admite que "é preciso ter o máximo de cuidados".
A APPC fechou-se ao exterior cerca de duas semanas antes do Governo proibir as visitas a lares. O centro de dia, a creche e o infantário encerraram numa "opção estratégica como salvaguarda em relação a um grupo de pessoas que, por ter paralisia cerebral, tem riscos acrescidos" face ao novo coronavírus.
Com o serviço reduzido ao apoio aos residentes, trabalham agora na Villa Urbana 25 pessoas na cozinha e lavandaria, bem como ajudantes de ação direta e técnicos. O serviço é prestado 24 horas por escalas normalmente semanais.
"Estamos a atuar na prevenção e com planos de contingência há muito tempo. Temos equipas escaladas que ficam durante sete dias e depois fazem período de quarentena, bem como circuitos de entrada e saída na Villa com balneário para tomar banho e mudar de roupa. Não há cruzamentos", descreve a coordenadora das residências definitivas e temporárias da APPC, Ana Lages.
A responsável admite, no entanto, que a necessidade de "fechar portas" para proteger os residentes com paralisia cerebral de um vírus que já provocou mais de 224 mil mortos e infetou mais de 3,1 milhões de pessoas em 193 países e territórios, acarretou desafios, desde logo na comunicação diária.
"É muto difícil de gerir porque há familiares que foram cuidadores toda a vida toda. Além disso, os utentes não estão alheados. No início perguntavam: porquê? Mas o que é que se passa? E agora? Como está aquela pessoa e a outra? Perguntas dirigidas às famílias, mas também a formadores e técnicos que deixaram de ver na instituição. Foi preciso criar uma dinâmica de comunicação nova", descreve Ana Lages.
Essa nova dinâmica de comunicação tem atualmente duas vertentes: a ida ao portão, onde familiares podem "fazer uma visita de aproximação", que na prática consiste em ver, acenar a falar de longe com os residentes, e o Duas de Letra, uma iniciativa que já conta com meia centena de inscritos e que passa por colocar a comunidade da Villa Urbana em contacto por videochamada.
António Magalhães, que tem apoio da instituição para a higiene e alimentação, falou com a agência Lusa via ‘Skype’ e diretamente do seu quarto, onde diz ter "todo o seu mundo", um quarto integrado num apartamento que tem três quartos, três casas de banho e uma sala com cozinha comum a três residentes.
Antes, António já tinha estado à conversa com voluntários, mantendo contacto com o exterior através das novas tecnologias que já lhe permitiram escrever "através das mãos de outros" textos para teatro ou uma reflexão sobre a eutanásia.
Um desses voluntários é João Santos, que antes dinamizava os ateliês de expressão plástica atualmente suspensos e que começou a colaborar com a APPC por ser formador de terapia assistida por cães.
"Achei que era importante manter-me em contacto com eles. São pessoas de quem gosto muito. Ligo-me por ‘Skype’, normalmente com as minhas cadelas ao lado, faço jogos que muitas vezes são eles que conduzem e conversamos sobre tudo", conta.
João Santos, atualmente a viver com o pai em Caminha, onde escolheram fazer isolamento social, diz que se "diverte e aprende" com pessoas que nota estarem, semana após semana, "mais sedentas de comunicação", apesar de "perceberem bem o risco" que a pandemia covid-19 acarreta.
Esta é uma perceção que Ana Lages partilha. A fisioterapeuta garante que os utentes da Villa Urbana mostram "cansaço às vezes", mas "percebem que as medidas são para sua proteção e estão super colaborantes".
"Quando o portão fica aberto depois de entrar ou sair uma carrinha avisam logo. E quanto ao Duas de Letra, o objetivo foi criar uma ocupação, mas também um veículo de esclarecimento. Conseguimos anular algumas angústias e torná-los mais autónomos. Por exemplo, temos uma residente que voluntariamente pega no seu telefone pessoal e liga para a família de uma outra utente, ou seja, faz por iniciativa própria o que habitualmente são os técnicos a fazer, tornou-se ela própria facilitadora", conta a responsável.
Esta "corrente" de facilitação não é estranha a Marinha Ramos que tem contado com o apoio dos técnicos da APPC para falar e ver a Anabela, mas também com a ajuda de "uma colega muito querida" da filha.
"Eu ligo para a receção ou a um técnico e não insisto porque estão a trabalhar. Ligam-me sempre, sempre, de volta. Ligo para falar com a Anabela, para a acalmar, às vezes antes dela se deitar e digo que vou amanhã. Digo sempre amanhã, porque amanhã está sempre mais perto disto acabar. Agora a Sarinha [residente] também me liga e falo com as duas", conta Marinha Ramos.
Esta mãe tem um plano para "quando tudo isto passar": ir buscar Anabela e "agarrar-se" à filha "em abraços e beijos" para se "desforrar".
Em Portugal, morreram 973 pessoas das 24.505 confirmadas como infetadas pela covid-19, e há 1.470 casos recuperados, de acordo com a Direção-Geral da Saúde.
A doença é transmitida por um novo coronavírus detetado no final de dezembro, em Wuhan, uma cidade do centro da China.
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