Apelidada de “Petição IVA na Ciência”, esta iniciativa — subscrita por cientistas, professores universitários, técnicos, empresários, médicos, enfermeiros e estudantes de doutoramento — defende que Portugal se encontra numa situação de desvantagem perante outros países europeus onde existem formas de isenção ou reembolso do IVA para a atividade científica.

É desta “injustiça crónica” que “existe há décadas” que Maria Mota, uma das proponentes da petição, fala ao SAPO24. Diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, a cientista considera que, em comparação com a França, Reino Unido ou Alemanha, os investigadores portugueses saem prejudicados por não poderem aplicar as verbas que lhes são destinadas — quer pelo Estado, quer através de fundos europeus — na totalidade.

Excluindo salários e outros gastos não sujeitos a IVA, o fim da tributação, indica a investigadora, “aumentaria o orçamento para a ciência em cerca de 10 a 15%, o que é significativo”. Para além disso, impõe-se a própria natureza do imposto, cujo valor de 23% é destinado a atividades comerciais. Esta é uma das questões de base para Maria Mota, já que “se a ciência não-lucrativa, portanto aquela associada à vida académica, é algo que não é comercial”, então não pode “ter um imposto em que está a ser cobrada como se o fosse”.

A mesma opinião tem Helder Maiato, Investigador no Instituto de Investigação e Inovação (i3S) da Universidade do Porto (e professor convidado da Faculdade de Medicina desta instituição), o cientista considera o fim do imposto “uma forma relativamente neutra” de aumentar as verbas para a ciência, ao não “envolver um gasto adicional”, mas sim um salvaguardar de fundos pelo lado da receita.

Grande parte dos proponentes desta petição são também responsáveis pelo “Manifesto Ciência Portugal 2018”, iniciativa que defendia uma série de medidas como a desburocratização administrativa, processos de contratação regulares e financiamento transparente para os projetos. A iniciativa foi subscrita por perto de 5 mil pessoas no ano passado, incluindo o próprio Ministro da Ciência, Manuel Heitor, que assinou o manifesto na condição de professor do Instituto Superior Técnico.

Contudo, realçando que as suas questões não tinham sido respondidas pelo Ministério da Ciência, nem as suas sugestões tinham sido consideradas, os cientistas responsáveis pelo manifesto voltaram à carga em maio deste ano, destinando uma carta aos partidos políticos. 

Na missiva, os responsáveis identificam “cinco medidas concretas essenciais" que deixam à consideração dos partidos para inclusão nos seus programas eleitorais. Para além da isenção do IVA para a ciência, estas passam por um financiamento de forma regular, transparente e consistente, com um concurso anual de projetos para todas as áreas científicas; uma política de contratação meritocrática, baseada na realização de concursos anuais para investigadores que vão desde alunos de doutoramento a cientistas coordenadores; um “simplex” para a ciência assente na desburocratização de procedimentos; autonomia política, administrativa e financeira da FCT.

Segundo o Público, parte do plano de promoção destas propostas incluiu reuniões entre alguns signatários da iniciativa e membros dos partidos políticos candidatos às legislativas, incluindo-se aqui PS, PSD, CDS-PP, BE e PCP. "Queríamos trazer o tema em ano de eleições, já que os partidos estão a preparar novas medidas", diz Maria Mota, que recorda que este tema do IVA já não é novo, mas que os anos de crise e o programa de ajustamento da Troika não permitiram levá-lo à discussão até agora.

A investigadora diz que a reação do campo político à proposta variou entre a surpresa de ainda ser taxado o IVA a 23% e a compreensão, mas que, no cômputo geral, tem sido “muito positiva”. No entanto, a cientista acrescentou também que existe a noção de que, em período de eleições, “é mais fácil prometer do que fazer”.

Até à data de publicação desta notícia, apenas o Partido Socialista respondeu ao SAPO24 quanto à possibilidade de incluir este tema no seu programa para as eleições legislativas deste ano. Contactado pelo SAPO24 sobre esta matéria durante os dias do encontro Ciência 2019, o Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino Superior remeteu uma resposta para mais tarde.

A quarta parte do programa do partido, apelidada de “Sociedade Digital", foi lançada hoje, depois de já terem sido lançados os dossiers dedicados a “Demografia”, “Alterações Climáticas” e “Desigualdades”. No texto, sob a alínea “Competências digitais (ciência, educação e formação)”, está incluída a “Restituição do IVA pago pelos centros de investigação científica sem fins lucrativos com a aquisição de bens ou serviços no âmbito da sua atividade de I&D, desde que os montantes do IVA não sejam dedutíveis e não tenham sido objeto de comparticipação por fundos nacionais ou europeus”.

Para além desta medida, os socialistas querem também fazer aprovar uma Lei da Programação do Investimento em Ciência - legislação que, tal como a Lei de Programação Militar, conterá a programação do investimento público em ciência num quadro plurianual a pelo menos 12 anos — e colocam como meta um aumento "progressivo do investimento em ciência até atingir 3% do PIB em 2030". O documento onde constam estas estratégias será debatido e votado em Convenção Nacional deste partido, no próximo dia 20, em Lisboa.

Imposto é entrave à investigação, mas fim deve ser encarado com prudência

Apesar da petição pugnar pelo fim do IVA na Ciência, a Maria Mota assume alguma prudência no que toca a esta iniciativa, dizendo que esta não é uma imposição e que o grupo está apenas a “sugerir as linhas mestras” do projeto, deixando “o legislador e os governos a decidir o que é possível ou não fazer.” "Somos cientistas e, como tal, achamos que isto tudo tem de ser muito bem explicado, conversado e pensado, queremos que a sociedade esteja connosco", frisa a investigadora.

Por essa mesma razão, admite ser difícil levar a cabo o sistema utilizado nos EUA, onde é praticada a isenção total para as instituições científicas. Lá, “mesmo as instituições privadas que fazem ciência não pagam IVA", explica Maria Mota, chegando ao ponto da isenção ocorrer “mesmo que se vá jantar com um convidado de um seminário”, pois tal é assumido como uma prática necessária no âmbito das relações académicas.

Contudo, como “não somos um país de recursos ilimitados", a cientista diz que em Portugal será mais fácil gerar um consenso se se aplicar um modelo de reembolso consoante justificação. A mesma ideia é defendida por Helder Maiato, que diz que o que está em causa não é a abolição do IVA, mas sim a “discriminação entre aquilo que são os gastos de investigação e os gastos administrativos”, sendo que os segundos “deverão continuar a ser taxados normalmente”. Ou seja, se um computador for comprado para um contabilista que trabalhe num laboratório, esta compra deve ser encarada como um custo administrativo e tributado a 23%. Contudo, se o mesmo computador se destinar a investigação científica, os assinantes da petição defendem que o imposto deverá ser aplicado, mas depois sujeito a um reembolso.

Onde todos os cientistas estão de acordo é que, face às verbas a que têm acesso, o IVA torna-se um impeditivo para a investigação. Segundo os dados disponibilizados no Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional de 2018, publicação divulgada pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, no ano passado “a despesa total em I&D em Portugal atingiu, globalmente, 2.753 milhões de euros”, representando isto 1,37% do PIB nacional desse ano. 

Estes valores podem ser entendidos de duas formas. Por um lado, registam um crescimento em relação aos 2.585 milhões de euros de despesa em I&D, que representavam 1,33% do PIB, do ano de 2017 (e mais ainda face aos valores de 2015, que, com 2.234 milhões de euros a representar 1,24 do PIB, foram os mais baixos dos últimos dez anos). No entanto, por outro lado, estes 1,37% do PIB nacional destinados à investigação encontram-se abaixo da média europeia, nos 2%, e muito longe ainda dos 3% que o Partido Socialista (e o Governo) se comprometeu a atingir em 2030, numa meta estipulada pela UE para Despesa Doméstica Bruta em I&D.

Ora, para Helder Maiato, esse bolo total destinado à ciência “é escasso e tem muitas vezes de suportar salários, equipamentos e consumíveis da investigação que são muito caros”, acrescentando que, “para além disso, temos de pegar em 23% do orçamento, e entregá-lo ou devolvê-lo à entidade que o financia”. E citando um exemplo já utilizado num artigo de opinião assinado para o Público, Maria Mota diz que, para um projeto de biomédica em que o European Research Council contribui com 1,6 milhões de euros, 170 mil são tributados em IVA. Esse valor, defende, é significativo, podendo ser o suficiente para não se conseguir contratar mais um investigador doutorado para a equipa de projeto.

Foi para corrigir este tipo de situações que a investigadora diz ter sido pensada esta petição. Com 2500 assinaturas obtidas, Maria Mota considera este resultado “algo formidável”, tendo em conta que é um tema “no qual a maior parte das pessoas nunca pensou sequer”. É por isso que deixa um apelo, para que caso o tema do IVA seja discutido, haja uma decisão unânime quanto à sua manutenção ou extinção. A ausência de consenso, diz a cientista, “seria terrível”, pois colocaria os cientistas numa situação precária em que não saberiam como gerir os seus orçamentos, caso o imposto pudesse voltar depois de terminado. A política de ciência para Portugal, defende, “tem de ser transversal", pois é necessário “pensar que a ciência faz sentido e que é uma aposta de futuro do nosso país".

*com agência Lusa