"Cheguei ao gabinete do general Spínola, ele agarra-me por um braço e mete-me na casa de banho. Enquanto falava puxava o autoclismo constantemente: 'Estamos todos a ser escutados', 'isto não tem hipótese nenhuma'. Não me falou no golpe, mas [quando veio] não me admirei".

A história passou-se com João Salgueiro por altura do 25 de Abril. "Não estava a perceber nada do que se estava a passar. Pouco tempo antes dizia-se que estava tudo tranquilo; havia um problema no norte de Moçambique, mas, tirando isso, nada".

Para compreender as coisas perguntou a três ou quatro pessoas, e alguém lhe disse que Sanches Osório, porta-voz do Movimento das Forças Armadas, estaria disposto a recebê-lo para explicar tudo, tintim por tintim.

Telefonou ao major Sanches Osório e lá combinaram: "Onde?", perguntou. "Em minha casa, se puder". "Quando?" "Amanhã às quatro da manhã". João Salgueiro ri enquanto conta a história, mas segue as indicações à risca e, às três ou quatro da manhã, como combinado, está em casa do militar.

Ao longo das descargas de água, Spínola ia revelando: "Já fiz um disparate hoje"

"Disse-me coisas que me deixaram aterrado: 'Agora é que verdadeiramente começa a defesa do território nacional', 'tínhamos vergonha de andar fardados e agora temos orgulho na farda', 'a guerra vai ser outro afinco, estavam a defender uma ditadura e agora vão defender o país'. Isto - depois das manifestações dos soldados, de os oficiais se bandearem para o lado do inimigo, de entregarem as armas -, era inverosímil", considera.

Foi então que resolveu falar com António de Spínola, um encontro arranjado por José Blanco, da Fundação Calouste Gulbenkian. Ao longo das descargas de água, Spínola ia revelando: "Não sei como é que isto vai ser... Já fiz um disparate hoje; pensei que tinha sido inteligente, mas eles ficaram tão contentes com a minha decisão que, já percebi, enganei-me. Mandei o Rosa Coutinho para Angola, queria ver-me livre dele". "Eles", claro, eram os militares insurrectos.

Anos mais tarde, quando esteve no Instituto de Defesa Nacional, o seu diretor, Altino de Magalhães, que foi vice-chefe do Estado-Maior do Exército e governador do distrito de Uíge entre 1972 e 1974, contou a João Salgueiro "histórias de outra história".

"Disse-me que não havia ali problema nenhum e que quando a coisa se começou a agudizar - uns bandos de africanos com catanas e machados invadiram Luanda e começaram a arrombar as portas dos portugueses -, pôs um pelotão de 30 homens na rua e eles correram tanto a fugir que até deixaram os sapatos para trás".

Altino de Magalhães conta que deu voz de prisão a Rosa Coutinho, por este estar a provocar uma insurreição em Luanda e a fuga de portugueses. Mas diz que quando comunicou a decisão a Lisboa o mandaram libertar o "senhor governador", que estava a "cumprir instruções da capital". 

Para João Salgueiro ficou claro que queriam correr com os portugueses de lá. "Então, na África do Sul, que tinha Apartheid, não houve problema nenhum e vamos ter problemas em Angola? Não tínhamos".

"Outra coisa simpática foi oferecer tudo o que era português ao governo de Angola e ao governo de Moçambique. Todas as empresas de portugueses que lá estavam, incluindo os bancos, foram oferecidos ao governo local, sem indemnização. Portanto, os tipos foram corridos artificialmente e ficaram sem nada porque o governo resolveu oferecer o que era dos portugueses. Isto é uma trafulhice de todo o tamanho", indigna-se.

A escolha do Quelhas

Tinha acabado o liceu quando leu um livro que o marcou profundamente, uma edição de bolso sobre a revolução industrial inglesa. "Era muito convincente, porque mostrava como um país que vivia na miséria - esgotos a céu aberto, epidemias constantes, revoltas em que a cavalaria entrava a malhar nos trabalhadores -, era uma potência mundial um século e meio depois, não só pelo poder económico, mas pelo avanço tecnológico e civilizacional".

Impressionado, João Salgueiro passou a interessar-se pelas questões do desenvolvimento. "O meu raciocínio era: se um país atrasado se pode transformar e desenvolver, é como dizer que as doenças podem ter cura. Aqui não é bem uma cura, mas, se o desenvolvimento está ao nosso alcance, é uma obrigação trabalhar para isso. Claro, cada um na sua esfera própria: um médico na saúde pública, um engenheiro nas estradas ou na indústria. Mas, se é possível, temos obrigação de colaborar nisso".

Nas Ciências Sociais, o curso mais parecido com o que queria era a licenciatura na única Faculdade de Economia, o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, atual ISEG.

No Quelhas aprendeu que há países com vocação agrícola, como Portugal - produzia bem cortiça, azeite e vinho -, e países com vocação industrial, como Inglaterra - que tinha ferro e carvão.

"Se o desenvolvimento está ao nosso alcance, é uma obrigação trabalhar para isso"

E aprendeu também o princípio das vantagens comparativas. "A teoria das vantagens comparativas, uma teoria respeitável de comércio internacional, diz que se um país tem uma vantagem em determinado setor, deve especializar-se nisso. No meu entender, era uma teoria fraudulenta: ao especializar-se na alimentação, onde o consumo é menor do que o de vestuário, por exemplo, um país fica em desvantagem, porque tem um mercado menor e que cresce mais devagar".

"Portanto, tínhamos obrigação de não tomar como bom aquilo que nos ensinavam no Quelhas, uma teoria obsoleta", defendia.

Quando acabou o curso, os convites que recebeu não o atraíram, a não ser o que, na prática, o levaria aos Planos de Fomento. Recusou tudo o que lhe parecia de carreira, "empresas que pagavam mais salário" ou "bancos comerciais que acreditavam que dar crédito ao consumo ou fundo de maneio a empresas era excitante". E começou o seu percurso profissional como economista no Banco de Fomento Nacional, onde esteve entre 1959 e 1963.

Foi então que foi especializar-se em Desenvolvimento Económico para os Países Baixos. Jan Tinbergen, que viria a ser prémio Nobel em 1968, era o orientador da pós-graduação. "Era preciso criar as condições para o país se desenvolver, e isso inspirou todo o meu trabalho", afirma o economista.

O objetivo era criar cá o gabinete de estudos do Banco de Fomento Nacional. Quando regressou, veio também Roberto Fernandes, filho do embaixador português em Washington, que acabaria por voltar para os Estados Unidos por não se adaptar a Portugal - "não percebia porque éramos tão atrasados".

João Salgueiro recorda que quando foi ao enterro do avô, perto de Braga, foi preciso parar cinco vezes pelo caminho "porque o rio saiu do leito e não havia pontes. Fomos obrigados a esperar que o nível das águas baixasse".

"Os grandes projetos de hoje são todos do Estado Novo"

Nos últimos anos, João Salgueiro não começava nenhuma conversa sem antes dizer "estamos melhor do que antes", não fosse cair o Carmo e a Trindade. Mas, como avaliamos se estamos melhor? "Escolhemos o pior ano da nossa história recente, um ano desastrado, do tempo do Eng. Sócrates, para nos comparar". Por isso, preferia colocar o problema de outra maneira: "Nas últimas décadas estamos a desenvolver-nos menos do que devíamos".

As causas? Mais ou menos as mesmas de sempre, "não resolvemos os problemas". "Já tivemos uma boa estratégia de desenvolvimento, mas que não foi continuada. Entre 1951 e 1963, Portugal teve o mais alto crescimento da economia europeia, seguido de perto por outros dois países que estavam a recuperar, a Grécia e a Espanha. A Irlanda, que agora é uma estrela, estava a ficar para trás".

Os exemplos do que fomos incapazes de resolver são diversos. João Salgueiro escolhe o dos salários baixos. "Os salários são baixos porque os trabalhadores não podem ser despedidos. Se um trabalhador é mau, tem de se conservar, não se pode substituir por outro. Obrigar a manter um trabalhador que não colabora não é grande solução - e tem um preço".

Os espanhóis resolveram a questão. "A lei espanhola também proíbe o despedimento individual sem justa causa, mas depois acrescenta: se tiver lugar, a indemnização tem de ser em dobro. E fica resolvido, porque ninguém vai para tribunal para receber aquilo a que tem direito".

"Nas últimas décadas estamos a desenvolver-nos menos do que devíamos"

Ao contrário, "nós mantemos umas ficções que tornam as situações mais complicadas. Essa revisão em Espanha foi feita pelo Laureano López Rodó [comissário do Plano e Desenvolvimento e ministro dos Negócios Estrangeiros]. Que é do meu tempo. E não percebia porque é que nós, tendo liberalizado a economia antes deles, estávamos a ficar para trás. Foi porque deixámos de fazer reformas, coexistíamos com situações que eram onerosas. Basta ir à fronteira para perceber que alguma coisa não está bem: a gasolina é mais barata, os produtos alimentares são mais baratos e eles ganham salários mais altos".

Para João Salgueiro a questão ainda se torna mais incompreensível por haver um consenso em relação aos objetivos dos portugueses: ter empregos mais bem pagos e mais qualificados e menos precários, ter uma vida melhor sem ter de emigrar. "Ninguém discorda disto. Então, porque não lutamos por isso?", questionava. "Às vezes publicamos notícias de página inteira nos jornais, não acontece nada. O último que tinha alguma audiência, sem ser a fazer comentários sobre futebol, era o Medina Carreira. Que faz falta, até por isso".

E voltamos lá atrás. Em 1948, Portugal assina o pacto fundador da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE) e integra as estruturas de cooperação previstas no Plano Marshall. A participação na OECE reforça a necessidade de um planeamento económico, que conduz à elaboração dos Planos de Fomento do Estado Novo.

Só no II Plano de Fomento, coordenado por Marcello Caetano, então ministro da Presidência, surge a preocupação de definir um modelo de desenvolvimento para Portugal. A elaboração e acompanhamento dos Planos de Fomento é da responsabilidade do secretariado técnico da Presidência do Conselho, para onde, entretanto, João Salgueiro é destacado pelo banco.

Em 1968, Marcello Caetano é o novo presidente do Conselho de Ministros e o III Plano de Fomento (1968-1973) evidencia o reforço de uma nova política económica do Estado Novo: confirma a internacionalização da economia portuguesa, o desenvolvimento da indústria privada como setor dominante da economia nacional e a consolidação dos grandes grupos económico-financeiros.

"Quando se fala de grandes projetos em Portugal, são os mesmos projetos que Marcello Caetano decidiu nos últimos anos: Alqueva, Sines, Aeroporto de Lisboa, eletrificação dos caminhos-de-ferro, rede de autoestradas. Os grande projetos foram decididos por ele", não esquece João Salgueiro.

A intimação: "Ou a SEDES, ou o governo"

Em março de 1969, João Salgueiro é nomeado subsecretário de Estado do Planeamento Económico (e José Luís Nogueira de Brito subsecretário de Estado do Trabalho e Previdência). O economista não se lembra da primeira conversa que teve com Marcello Caetano, "ia lá a casa por causa dos filhos, do Miguel em especial, que tinha estado comigo no Banco de Fomento, e da Ana Maria também, em certa medida. Nunca tive com ele muitas conversas em termos profissionais, não era preciso".

"Quando o Dr. Marcello Caetano veio [para a Presidência do Conselho de Ministros], eu tinha uma opinião favorável sobre ele. Sabia que tinha contribuído para o desenvolvimento do país, achava que era um homem do lado certo. Quando me convidou, fiquei um pouco de pé atrás, não acreditava muito no regime da altura, mas aceitei". Os dois viam-se praticamente todos os dias. 

A determinada altura é constituída a SEDES, e Marcello Caetano não gostou. Miguel Caetano também se lembra: "Casualmente, eu e João Salgueiro começámos a conversar sobre o que poderíamos fazer pelo país, dentro do sistema político em que vivíamos. E propõe-me constituir um pequeno grupo de reflexão. Por iniciativa do João Salgueiro, um pequeno grupo começa a reunir-se regulamente na CODES – Cooperativa para o Desenvolvimento Económico e Social, para propor a criação de uma associação cívica de reflexão e intervenção, a Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES)".

O processo de criação não foi pacífico, porque o presidente do Conselho aceitou a ideia inicial de João Salgueiro, mas não concordou com a forma como foi desenvolvida, conta Miguel Caetano, que começou a trabalhar com o João Salgueiro em 1960.

"Fizemos a SEDES de propósito, porque achámos que aquilo não estava a andar para trás nem para diante, as reformas estavam empatadas, e estávamos a ver que a oportunidade de liberalizar, de fazer evoluir politicamente o regime, estava a esboroar-se", explica João Salgueiro.

"Bastava serem 20 ou 30 pessoas, mas acabámos por ser 147. O [Joaquim] Silva Pinto e o Rogério Martins tinham dito que assinavam, porque pensaram que Marcello ia gostar, que era um empurrão a pedido dele. Quando perceberam que não, retiraram a assinatura. Nessa altura não havia a dependência política que há hoje, as pessoas pensavam pela sua cabeça. Achávamos que defendendo a coisa claramente, o governo seria forçado a tomar posição", acrescenta. "Tínhamos assumido apenas um compromisso, não discutir a Guerra Colonial, porque isso ia baralhar tudo, os militares iam falar em traição". 

"Nessa altura não havia a dependência política que há hoje, as pessoas pensavam pela sua cabeça"

Mas, a certa altura, o presidente da República, Américo Thomaz, terá dito que não é possível alguém estar no governo e estar na SEDES ao mesmo tempo, uma vez que o regime não defendia os pontos de vista da associação.

É então que Marcello Caetano tem esta conversa com João Salgueiro: "Olhe, há aqui uma coisa, até gostava que você fizesse parte do Conselho de Ministros, pudesse ser ministro também, em vez de continuar como meu adjunto. Mas tem de abandonar a SEDES, porque o presidente da República acha isto incompatível".

Ao que João Salgueiro responde: "Senhor professor, mas isso é garantido, tira-me um peso de cima: opto pela SEDES. Estava com vontade de lhe pedir para sair do governo, acho que está a fazer uma obra meritória, mas está a perder tempo. Além disso tenho a minha carreira, os Planos de Fomento".

Marcello Caetano pede tempo ao economista, para não ter de fazer uma remodelação por causa de uma pessoa só, até porque Dias Rosas, ministro das Finanças, também queria sair.

Passam dois ou três meses até o presidente do Conselho voltar ao assunto. "Não queria que me afastasse muito e então nomeou-me para a Sacor. Disse-lhe que não queria ir para os petróleos, não era a minha vocação, regressaria ao posto anterior, na Presidência do Conselho de Ministros, na Av. D. Carlos. 'Então, era secretário de Estado, tinha um diretor-geral, e agora vai ficar abaixo do diretor-geral e vai para lá outro secretário de Estado? Isso não pode ser, é uma trapalhice. Vou pedir-lhe para ir tomar conta da Junta de Investigação Científica e Tecnológica', onde estava o professor Leite Pinto. 'Mas eu não sei nada de investigação...' 'Já sei que as Ciências Sociais não investigam nada, mas é para fazer o que fez com os Planos de Fomento, um programa para investigarmos mais e melhor'. 'Ah, isso já pode ser'. E sou nomeado para lá".

A 30 de outubro de 1971, é publicado no Diário da República: "Hei por bem, sob proposta do Presidente do Conselho, conceder ao Dr. João Maurício Fernandes Salgueiro a exoneração, que me pediu, de Subsecretário de Estado do Planeamento Económico, lugar que me apraz declarar exerceu com zelo, inteligência e acendrado patriotismo".

A falta de projetos na investigação

Marcello Caetano criou um gabinete perto da D. Carlos e João Salgueiro passou a despachar com ele todas as semanas, em vez de praticamente todos os dias.

Depois, foi saber o que se investiga em Portugal. Pediu uma lista, mas "ninguém tinha". Toca a fazer um inventário. "Ponto número dois: o que se está a fazer e o que pode ser feito. Ponto número três: como se criam condições para trabalhar melhor?" 

Para isto, considerou, três pessoas chegam. E foi buscar uma pessoa para fazer o inventário - "notável, veio da Holanda, e o primeiro computador de secretária que vi era dele, nós cá ainda fazíamos as circulares com stencil, ficávamos todos sujos, quando havia um engano a datilografar tinha de se fazer tudo outra vez -, Henrique Granadeiro, para a área de investigação/empresas, e Nandim de Carvalho, para a comunicação.

"O Henrique Granadeiro veio porque um dia o professor Marcello Caetano me pediu para o ir representar no encerramento do ano escolar na Universidade de Évora, que era católica. E o reitor de lá, que eu já conhecia, disse-me: 'Não precisa de um rapaz lá para o seu gabinete? Foi o melhor aluno, teve um prémio'. Era o Granadeiro. Era muito organizado e trabalhava muito bem, arranjou-me dois ou três projetos bons".

João Salgueiro queria dar o exemplo. O Estado pagava 95% das despesas de investigação aos laboratórios ou universidades públicas para projetos que viessem a encomendados pelo setor privado. "Não havia projetos, tínhamos de andar com uma candeia. Hoje inventam-se candidaturas para os fundos europeus", nota.

Depois de muito procurar, lá se arranjaram dois projetos. "Um era da Vidago, proibida de entrar nos Estados Unidos porque tinha escrito 'água de nascente naturalmente gasosa', mas as análises não batiam certo. É burla, diziam eles, não entra. Afinal, os valores mudavam de acordo com a intensidade da chuva. O outro foi Carlos Portas [tio de Paulo Portas] que arranjou. Estávamos a falar e perguntei: 'Porque é que não mecanizam a cultura do tomate, andam as pessoas de cócoras a fazer a apanha?' - havia 32 fábricas de concentrado de tomate. E meteu-se um projeto. Se na Califórnia era possível, aqui também. E fez-se", conta o economista.

João Salgueiro recorda que ainda se tentou um terceiro, uma história mirabolante: pastagens de regadio no Alentejo. "Foi uma barraca, porque o Instituto Superior de Agronomia arrematou aquilo, mas depois dizia não dava. Então, soube-se que na Austrália havia pastos que aguentavam o verão todo e mandou-se alguém ir lá ver. Sabe o que nos disseram? 'Mas porque é que vêm cá se estas sementes são apanhadas em Portugal?'"

"Nesta altura João Salgueiro despachava com Marcello Caetano todas as semanas". "No fundo, queria trocar impressões sobre o que estava a acontecer no país, sobre como era a economia europeia e o futuro da economia mundial. Gostava de saber como estava o país, como ia a indústria, a agricultura, o ensino. E depois perguntava: "Então, temos coisas para assinar?" 

"Não havia projetos, tínhamos de andar com uma candeia. Hoje inventam-se candidaturas para fundos europeus"

Já em 1974, depois do Carnaval, João Salgueiro é surpreendido pela secretária: "Sotôr, vai ter de ir ao senhor presidente, telefonaram do gabinete a dizer que há audiência hoje". "Mas eu não pedi...". Fui, levei os papéis para despacho, e ele disse: 'Arrume lá essa papelada que não foi por isso que o chamei. Chamei-o para lhe dizer que me vou embora, o Coutinho Lenhoso foi entregar o pedido de exoneração agora. Não continuo'. Deu-me a entender que já tinha pedido a exoneração duas vezes, ou coisa do género. Saí de lá na convicção de que ele já não era presidente do Conselho".

Pedro Feytor Pinto confirma: "Quando saiu o livro [de Spínola] "Portugal e o Futuro", Marcello Caetano chamou duas pessoas, João Salgueiro e eu. Ele foi primeiro".

Mas Marcello ficou. João Salgueiro especula: "O presidente da República disse-lhe: se acha que tem de fazer uma política diferente, faça. O senhor é o responsável, tenho confiança em si, não vou substituí-lo. Se acha que deve fazer outra política, faça, mas informe o país de que vai mudar". Entretanto, veio o 25 de Abril".

O regresso ao governo e o país "tosco"

João Salgueiro regressaria ao governo como ministro de Estado, das Finanças e do Plano, pela mão de Francisco Pinto Balsemão, que em 1981 liderou a coligação PSD/CDS/PPM, que durou menos de dois anos.

Antes disso, em agosto de 1974, tornou-se vice-governador do Banco de Portugal. E depois disso, e durante quase dez anos (1982 a 1992), regressou à base, e foi presidente do Banco de Fomento Nacional (depois Banco de Fomento Exterior). E foi por este motivo, aliás, que se viu envolvido no negócio das privatizações.

"Estava presidente do Banco de Fomento Nacional quando se chegou à conclusão que o setor bancário estava a precisar de uma reestruturação, porque havia bancos inviáveis" - João Salgueiro ainda é do tempo em que se "estava ministro" ou se "estava presidente", por oposição a "ser ministro" ou a "ser presidente".

Aproximava-se o tempo da Moeda Única e, antes disso, Cavaco Silva (contra quem João Salgueiro concorreu à liderança do PSD e perdeu por 57 votos), agora no poder, tinha criado uma linha para reprivatizar as empresas nacionalizadas. "Havia uma conjugação de fatores, a inviabilidade do setor bancário como estava, tinha de ser modernizado, e a intenção de reprivatizar empresas", conta o economista. "O que me veio parar às mãos foi uma decisão já tomada: dois bancos inviáveis seriam absorvidos por outros bancos nacionais seguros. Assim, a Caixa Geral de Depósitos comprou o Ultramarino e o Banco de Fomento comprou o Banco Borges".

Para João Salgueiro, fazia sentido o Ultramarino ficar na CGD, mas a compra do Banco Borges pelo Banco de Fomento "não fazia sentido nenhum, não éramos um banco comercial. Então, foi inventada uma história de que era preciso remodelar, dando aos bancos nacionais uma vocação: a Caixa passaria a trabalhar para as pequenas e médias empresas, o Banco de Fomento ia trabalhar para a exportação e o investimento no estrangeiro, daí a transformação em Banco de Fomento Exterior", conta.

"Acreditei naquela balela e fui ver onde devia haver prolongamentos do Banco de Fomento. Depois, o governo seguinte mudou de opinião, de maneira que... Achei que já chegava de aturar aquilo e vim-me embora. É o país que temos, não é? Um bocadinho tosco. Se calhar são todos", desabafa. 

"Por que motivo havíamos de comprar um banco no Brasil se não era para termos uma política geral nesse sentido? E, se era para isso, também o Ultramarino tinha de ficar ligado ao Banco de Fomento" - e acabou por ficar.

A propósito de estratégias, João Salgueiro lembra uma "cena gaga". "Quando Timor se tornou independente da Indonésia [2002], o Banco Nacional Ultramarino abriu lá uma sede. Era preciso mandar para lá pessoal e dinheiro. Mas não havia carreiras daqui para Timor e o governo, que estava a tratar disso a partir de Macau, perguntou à Austrália se poderia ajudar a pôr lá dinheiro. Disseram que sim senhor, colocavam um helicóptero à disposição, desde que assinássemos um papel a dizer que, se por qualquer razão de segurança o dinheiro tivesse de ser deitado borda fora, estávamos de acordo. Por sorte estava lá uma fragata estacionada e conseguimos que levasse o dinheiro a Timor. A Austrália foi muito amigável no meio daquilo tudo [ri]".

Passados todos estes anos, a pergunta mantém-se: afinal, o que aprendemos, o que mudou? "Produzimos vários papéis, não tiveram impacto nenhum. Porque os portugueses não se importam. Que é uma coisa que me faz impressão: porque é que não se interessam por uma vida melhor? Porque está ao seu alcance. Mas preferem engolir sapos gigantes. Foram educados a acreditar que têm direitos e que alguém há de tratar deles. Os pais são obrigados a tratar dos filhos, óbvio. Se não houver pais, os avós têm essa obrigação. Se não, há de ser o presidente da câmara ou da junta de freguesia".

"Conto-lhe uma história: o meu motorista tinha uma filha a estudar em Campolide. Perguntava-lhe sempre: 'Então, Rui, como está a sua miúda?' Ótima aluna, boas notas. A última vez que perguntei respondeu-me: 'Ah, um desastre. Os alunos gritam, não deixam os professores falar, atiram-lhes coisas, até houve casos de professores agredidos'".

"Na altura, por acaso, cruzei-me com a ministra e contei-lhe a conversa: 'Isso é uma coisa gravíssima', disse ela com ar sério. 'Estou a acompanhar isso com todo o cuidado. Mas está muito empolado, sabe? Este ano só houve 63 casos'. 63 casos?! Um chegava para ser alarme nacional. Então um aluno bate num professor porque não quer aprender? Estamos a tramar a vida aos miúdos".

"Parece que estamos a repetir o que foi durante anos as lutas liberais e depois a República, que se desagregou e veio o Estado Novo."

Bom, Portugal está mais rico, há mais dinheiro, tem chegado rodos de dinheiro de Bruxelas, não é assim? "Não é para investir, é para consumir. E para pagar salários. Já nos passaram à frente uma quantidade de países. Mas é o que eu digo, os portugueses não se importam. Resta saber onde é que os mais novos põem a causa". E faz uma parêntesis para contar: "Já lhe disse que outro dia estive divertidíssimo a defender as touradas? Um grupo de bem pensante, senhoras cheias de pena do touros, coitadinhos e tal. E sugeri: "Mas podem fazer um clube para proporcionar condições confortáveis aos touros de lide. Porque os touros de lide têm as melhores condições que se pode ter, ao contrário dos animais engordados para a matança. Vão lá visitar os porcos, as vacas e as galinhas e vejam como são tratados. Faziam um clube de paliativos. As senhoras ficaram a olhar para mim".

"Enfim, já não tenho vida nem idade para isso, mas sempre defendi que os recursos ao nosso alcance são ilimitados". Por isso, repito, os portugueses não se importam. Vamos ver onde esta geração põe a sua causa".

João Salgueiro morreu na passada sexta-feira, dia 17 de fevereiro, aos 88 anos, e vai hoje a enterrar no cemitério do Alto de São João, pelas 15h15.