Médico, cirurgião ortopédico, democrata-cristão e benfiquista - a única afinidade com o primeiro-ministro, António Costa.

João Varandas Fernandes, vice-presidente do CDS, é responsável pelo programa do partido para a área da Saúde e estará este sábado na Escola de Quadros do CDS-PP, a decorrer em Espinho, onde irá moderar um debate que junta o ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes (PS) e o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães (PSD), sob o mote ‘Um Diagnóstico da Saúde em Portugal’.

Ex-director de Urgência do Hospital de São José, onde ainda trabalha, e administrador da primeira parceria público-privada na saúde em Portugal, o Hospital de Cascais, põe o dedo na ferida e critica as opções do governo. 

Diz que "a reforma do Serviço Nacional de Saúde não pode esperar" e considera "uma falta de respeito para com os cidadãos" este compasso de espera a que António Costa submete o país. "A prerrogativa é do senhor primeiro-ministro", mas "existe uma prepotência em relação à situação".

A conversa decorreu na X-Clinic, centro de prevenção e diagnósticos avançados, onde também exerce, mas não se ficou pelo tema da saúde. O futebol, Luís Filipe Vieira e a fé também vieram à baila.

"No final de 2021 havia 1,2 milhões de utentes sem médico de família"

Se esta fosse uma entrevista para o jornal "The New York Times", como descreveria o que se passa na Saúde em Portugal?

A Saúde em Portugal está num colapso que já vinha sendo anunciado desde há algum tempo. Está com sinais de degradação. São pequenas notas, mas repare que no final de 2021 havia 1,2 milhões de utentes sem médico de família, e este número tem vindo a aumentar significativamente. Ou seja, tem havido um agravamento da situação e um distanciamento cada vez maior dos objetivos prometidos pelo governo do Partido Socialista, que era dar cobertura plena em medicina familiar à população. E isto é um sinal de fala de planeamento e de falta de investimento, quer em meios profissionais, quer em meios técnicos. 

"Esta falha faz com que Portugal seja o país da OCDE com mais episódios de urgência per capita"

É uma promessa falhada do PS, mas porque é que ter médico de família é tão importante? A mobilidade hoje é muito diferente de há 20 anos, uma pessoa tanto está um Lisboa como em Pequim, tanto está no Porto como em Aveiro ou em Londres.

Esta falha faz com que Portugal seja o país da OCDE com mais episódios de urgência per capita. Ou seja, daqui resulta a sobrecarga dos serviços de urgência e os atrasos na marcação das consultas hospitalares, das intervenções cirúrgicas e dos exames complementares de diagnóstico, a todos os níveis, internamento e ambulatório. Esta falta de planeamento e de organização e de investimento está a originar um colapso do Serviço Nacional de Saúde, bem patente em todas as notícias.

Se o médico de família é importante numa lógica de prevenção, a verdade é que ninguém vai a um centro de saúde a não ser que se sinta doente.

É porque não existe essa cultura, não há essa informação, não há essa pedagogia, não há essa obrigação.

E médicos, há?

E não há médicos, obviamente. Não é em todas as áreas, mas há áreas onde faltam esses médicos, onde há uma falta muito grande de profissionais.

Disse que há muitos anos se adivinha a situação que estamos a viver.

Sim, só que nunca foram tomadas medidas objetivas e concretas, quer pelo governo, quer pelas administrações regionais de saúde, para que este problema pudesse ser minorado. Repare, não temos um pacto de urgências, um pacto de reorientação dos serviços de urgência. As pessoas vão às urgências que entendem, há uma liberdade de escolha muitíssimo grande. Se uma urgência fecha por falta de recursos humanos, há outra urgência na periferia ou relativamente próximo que vai ter de observar esses doentes. Mas os recursos que ainda existem na urgência que encerrou não vão reforçar a urgência para onde os doentes são reencaminhados.

O que ficam a fazer esses médicos?

Provavelmente em atividade de internamento, em atividade programada no seu próprio hospital. Não ficam é a colmatar as urgências. Os doentes são transferidos, mas os profissionais não têm mobilidade. E esse é um dos problemas, porque há zonas do país onde, provavelmente, não há necessidade de haver tantas urgências abertas, nomeadamente no período nocturno nas grandes cidades. Isto merece reflexão, merece decisão.

É responsável pelo programa do CDS para a área da Saúde. Como seria o seu SNS ideal?

Tenho para mim que não podemos adiar por muito mais tempo a reforma da Saúde. Que só será feita se se quebrarem as amarras ideológicas. Quanto mais politizada for a Saúde, pior é para todos. Precisamos de um ministro, ou ministra, que integre o setor público, o setor privado e o setor social. Todos os sectores são importantes, o CDS defende isto há muito tempo.

"O médico de Medicina Geral e Familiar que está no setor privado ou no setor social podia ter o seu grupo de utentes. Não é preciso estarem todos nos centros de saúde ou nas unidades de saúde familiares"

Como é que essa articulação entre público, privado e social pode e deve ser feita?

É preciso ter uma estratégia, um planeamento, e é daí que pode resultar uma gestão eficaz. Porque há muitas áreas onde já se faz esta complementaridade. Quando se diz que os utentes não obtêm resposta no tempo adequado no serviço público de saúde para uma intervenção cirúrgica, já há possibilidade de esses doentes irem fazer essa intervenção cirúrgica ao sector privado e ao sector social. Mas é preciso ligá-los mais. Isto viria, por exemplo, colmatar uma das falhas que existe nos especialistas de Medicina Geral e Familiar. Provavelmente, o médico de Medicina Geral e Familiar que está no setor privado ou no setor social podia ter o seu grupo de utentes. Porque não? Não é preciso estarem todos nos centros de saúde ou nas unidades de saúde familiares, pode haver uma interligação entre os três sectores. Estes assuntos têm sido detalhadamente discutidos, tem de haver coragem para reformar. Enquanto continuarmos a olhar a saúde com lentes de direita ou de esquerda teremos sempre visões parciais que só subtraem à saúde.

Na mesma avenida temos o Hospital dos Lusíadas, o Hospital da Luz e Hospital de Santa Maria. Todos podem ir ao Santa Maria, mas só uma parte dos portugueses pode ir aos outros dois: os que têm ADSE, os funcionários públicos (alguns deles trabalham no Santa Maria), os que têm seguros privados ou dinheiro para pagar. Isto é justo? Como se pode mudar?

De facto, devia haver essa liberdade de escolha, não só em relação ao setor público, como em relação ao privado e ao social. O Estado devia ter um plafond para atribuir às famílias consoante o seu rendimento e a partir daí as pessoas eram livres de gerir a sua própria saúde. Estamos a centrar a nossa política na organização, quando o centro da política deve ser o doente.

Qual foi o pecado capital de Marta Temido?

[Ri] O pecado de Marta Temido foi ter sido a ministra da Covid. Penso que o espírito do Ministério da Saúde, como de outros ministérios, não é um espírito reformista. E há muitos anos que não se vê esse espírito reformista. O SNS vai fazer 43 anos, e para o preservar temos de o reformar, temos de o modernizar. Enquanto isso não acontecer, não conseguimos nada. Por exemplo, criam-se comissões em cima de comissões e mantêm-se as administrações regionais de saúde. Então para que servem as administrações regionais de saúde? Às ARS compete orientar e organizar todo o mapa de saúde de uma região, mas vemos regiões, como a grande Lisboa, que são altamente carenciadas, não só na sua organização como também no seu investimento. Marta Temido pôs-se a lançar medidas avulsas, pensou que a Saúde se tratava com mezinhas e pensos rápidos - quando a Saúde é uma ferida maior, trata-se com intervenção. Sei que não é fácil, mas esse passo não foi dado.

Acha que a ministra da Saúde deve aceitar defender o Estatuto do SNS e a nova direção executiva ou deve deixar isso para quem vier?

Penso que quanto mais rapidamente a equipa da Saúde estiver constituída, melhor para o país. A política é do governo, não é da ministra. A ministra representa a política para a Saúde do Partido Socialista. Se a ministra entendeu não ter condições, se o primeiro-ministro aceitou a sua demissão, a nomeação de uma nova equipa deve ser feita o mais breve possível, até para o setor não entrar num impasse. A equipa que tomar posse à frente do Ministério da Saúde é que deverá ter a responsabilidade de nomear a direcção executiva do SNS.

"Temos este hábito: quando há um verdadeiro problema cria-se uma comissão"

Como olha para esta direção executiva do SNS, é necessária ou é um erro?

Percebo a ideia, mas acho que o ministro com a pasta da Saúde e a sua equipa devem ter funções executivas. E as administrações regionais e saúde também têm competências executivas. Já há muita gente no SNS com funções executivas, não era necessária uma direcção executiva para o SNS, assim como não era necessário ter uma comissão para a reorganização das urgências de obstetrícia e ginecologia. Não veio resolver o problema, as faltas continuam a existir. Mas temos este hábito: quando há um verdadeiro problema cria-se uma comissão.

"Ninguém pode governar contra os profissionais de saúde, contra médicos, enfermeiros, auxiliares, técnicos de diagnóstico"

Uma maneira de dizer "vamos estudar o assunto", que é como que diz vai ficar tudo na mesma?

É, vamos estudar o assunto. E os assuntos em saúde estão todos estudados, só é preciso que alguém os ponha em prática. E que os fiscalize e faça auditorias. E, acima de tudo, uma coisa: os profissionais de saúde precisam de ser ouvidos sobre as políticas de saúde, não podem ser postos de lado. Ninguém pode governar contra os profissionais de saúde, contra médicos, enfermeiros, auxiliares, técnicos de diagnóstico. São parceiros do SNS, é com eles que temos e contar para reformar e modernizar o SNS. 

E tem-se governado contra?

Obviamente. Quando quando os médicos no setor público, quer trabalhem muito, quer trabalhem pouco, têm todos as mesmas remunerações, ou quando um governo que aumenta o preço/hora para se prestar um serviço de urgência além de um determinado limite, está tudo dito sobre a incapacidade do actual Ministério da Saúde. Ainda por cima, sabemos de antemão que há um mercado de prestadores de serviços, e a dependência desse mercado é de tal maneira que não podemos acabar eles de um momento para o outro. Os médicos vêm de um combate à pandemia, estão cansados, exaustos. Os profissionais de saúde têm família. O maior desejo de um profissional de saúde é trabalhar no seu hospital de manhã até ao final da tarde ou até à noite e ter o índice de remuneração suficiente para poder viver. E poder realizar-se cientificamente, em termos académicos e profissionais. Porque os profissionais de saúde gostam de trabalhar, mas não têm incentivos.

João Varandas Fernandes
João Varandas Fernandes créditos: Paulo Rascão | MadreMediA

Portugal pode dar-se ao luxo de estar sem ministro da Saúde durante este tempo, enquanto o primeiro-ministro viaja?

Pois, a equipa do Ministério da Saúde devia ser rapidamente substituída. A prerrogativa é do senhor primeiro-ministro, mas isso é uma falta de respeito para com os cidadãos. Isso é aquilo a que eu chamo uma das vicissitudes da maioria absoluta. Ter um governo geringonça já era mau, ter um governo de maioria absoluta é nisto que dá. Dos governos de maioria absoluta resulta muitas vezes este tipo de decisões, que podem ser adiadas até quando apetecer. Existe uma prepotência em relação à situação. E, portanto, é no tempo que entenderem e da maneira que entenderem. Como têm maioria absoluta, têm o poder absoluto. Mas, como já disse, a saúde não pode ter poderes absolutos.

"O problema da Saúde em Portugal continua a ser empurrado para a frente com a barriga. Esta expressão é o protótipo da acção dos governos socialistas"

E o presidente da República, tem feito tudo o que pode, está a cumprir o seu papel?

Tenho imenso respeito pelo senhor presidente da República, como tenho imenso respeito pelo senhor primeiro-ministro e pelos membros do governo. Isso não me inibe de criticar e de analisar o que se passa. O senhor presidente da República, a dado passo, teve uma expressão que decorei e que dizia o seguinte: a questão de fundo é que o problema da Saúde em Portugal continua a ser empurrado para a frente com a barriga. Esta expressão é o protótipo da ação dos governos socialistas. 

Mas se os governos não fazem, o que deve fazer o presidente da República?

Não sei o que se passa nos bastidores. O que posso garantir é que o senhor presidente da República tem ao seu alcance meios para pressionar o governo, nomeadamente em relação ao setor da Saúde. Se o faz ou não, não sei. Que tem tido expressões públicas de algum desagrado, tem. Se isso corresponde, na sua política privada com o senhor primeiro-ministro, no seus diálogos, a alguma situação objetiva de sensibilização, isso não sei porque não estou nesses encontros privados.

O ministro ou ministra da Saúde que aí vem deve ser um gestor ou um médico? Porquê?

O ministro que aí vem deve de ter um conhecimento absoluto do setor da saúde. Pode ser um médico ou um gestor, não tenho preferência por aí. Tenho preferência pela acção que possa vir a desenvolver. O que é fundamental é chegar ao ministério com uma equipa escolhida por si e conseguir pôr em prática uma acção que deve ser reformista e executiva, fazer o que já existe na lei, o que vem nos livros publicados aos milhares, aquilo de que toda a sociedade precisa. Isso é que é importante. É preciso é rematar à baliza. E marcar golo.

E temos nós um benfiquista à frente do governo, já viu?

Sabe, ao primeiro-ministro não compete rematar muito, ele é o treinador. A quem compete rematar é aos elementos da sua equipa, nomeadamente à senhora ministra da Saúde. Mas a senhora ministra da Saúde não rematou.

E pronto, lá vieram os lenços brancos. Mas já vamos ao futebol... O que o levou a ser médico e porquê a Ortopedia?

Venho uma família numerosa: sete tios da parte materna, oito tios da parte paterna, somos dezenas de primos. Tenho origem provinciana, beirã, numa aldeia recôndita, um sossego autêntico, Vale de Espinho, concelho do Sabugal - onde há falta de médico. Vim cedo para a cidade de Lisboa, mas sou visita permanente - tenho lá uma casa reconstruída, antiga, onde a minha mãe nasceu e onde passo alguns dias isolado. A minha ida para lá é uma ajuda solidária e quando passar lá mais tempo vou fazer consultas gratuitamente. Mas o que me levou a seguir Medicina foi a parte moral, da cultura humanística. Sou muito participativo, gosto de ajudar.

Há quantos anos é médico?

Desde 1984.

O que mudou na Saúde desde então?

Tecnologicamente evoluiu muito, em termos de exames complementares de diagnóstico, de caracterização da doença. As técnicas cirúrgicas progrediram muito, como os materiais necessários para as cirurgias... Na parte informática avançou-se de forma estrondosa.

Ainda assim podíamos aproveitar muito melhor as tecnologias, até para consultas online. Concorda?

Temos de aproveitar todos os meios tecnológicos ao nosso dispor para ajudar a reformar a relação entre os profissionais de saúde e os doentes. 

Mas se existem centros de saúde, como o de Oeiras, onde nem o telefone nem o email funcionam...

Pois, isso é lamentável.

A que centro e saúde pertence e qual o hospital da sua área de residência?

O hospital é o Beatriz Ângelo e o meu centro de saúde é o de Loures. E tenho médico de família.

O respeitinho é muito bonito.

[Ri]

João Varandas Fernandes
João Varandas Fernandes créditos: Paulo Rascão | MadreMediA

Alguma vez utilizou os serviços do Beatriz Ângelo ou do centro de saúde de Loures?

Nunca precisei, felizmente tenho sido saudável. Sei por familiares que a resposta do centro de saúde é demorada, muitas vezes não é conseguida, tem de se ter alternativas. E as alternativas são fora do centro de saúde.

Um ex-secretário de Estado do PS contou-me que, noutras funções, quando fazia um reparo a um médico mais influente recebia um telefonema do presidente da República ou de alguém do governo. É desse tempo? E é dos que telefonavam a queixar-se ou dos que recebia telefonemas?

Nem uma coisa nem outra. Há aqui um equívoco, é que o trabalho no SNS é um trabalho de equipa. Um médico não atua sozinho, está dentro de um conjunto de profissionais de saúde e também entre colegas. E uma equipa que demora anos a formar. 

Mas o privado funciona e não é necessariamente assim...

Não conheço a maneira como o privado está desenhado em Portugal. O que sei é que não é positivo que essas equipas sejam sucessivamente desmanteladas no SNS. Como também não é positivo o SNS estar a formar especialistas e ao final de uns meses esses médicos irem trabalhar exclusivamente para o setor privado. Deviam ter obrigatoriedade de se manter no setor público pelo menos nos primeiros cinco anos. Isso era fundamental. Mas tornam-se especialistas, o sector público não dá aos mais jovens a resposta que ambicionam, e vão para o setor privado. 

Os reparos de que falava atrás tinham a ver com os médicos não estarem no seu posto de trabalho as horas contratadas ou não assegurarem determinados serviços nos hospitais.

Mas aí a responsabilidade não é do conselho de administração nem é da senhora ministra da Saúde. A responsabilidade é das direcções locais. As direções de serviço é que são responsáveis pelo planeamento e pela organização do trabalho, quer no internamento, quer no ambulatório. Há regras sobre isso.

"As escusas de responsabilidade são porque as pessoas estão exaustas, entraram em burnout e já não conseguem mais. E não querem ter a responsabilidade de uma organização ou de um planeamento em que não foram ouvidos"

A questão é que as regras não são cumpridas...

Não são cumpridas e não acontece nada. Não há responsabilização. Mas as carreiras dos médicos estão profundamente ultrapassadas, têm de ser revistas, e as remunerações correspondentes às carreiras estão ultrapassadas e as condições que dão aos médicos para trabalhar estão ultrapassadas. Há aqui um conjunto de reformas que têm de ser feitas, o que leva muitas vezes ao laxismo, à desresponsabilização. Uma das partes deste caos que estamos a viver também tem a ver com isso. As escusas de responsabilidade são porque as pessoas estão exaustas, entraram em burnout e já não conseguem mais. E não querem ter a responsabilidade de uma organização ou de um planeamento em que não foram ouvidos.

"Fala-se no serviço de urgência porque é aquele o front office, mas existe esta carência de recursos humanos em muitas especialidades, não é só em Obstetrícia e Ginecologia. Em Pediatria, em Anestesia, por exemplo, há um problema gravíssimo e ninguém fala nisso"

Fiquei admirada quando soube que um terço dos médicos nos hospitais são internos, estão em formação para especialistas, por isso não têm autonomia para fazer muita coisa.

Os internos ainda estão em formação e é obrigação da nova equipa do Ministério da Saúde criar condições para que esses internos se mantenham no serviços Nacional de Saúde. Porque já no início dos anos 2000 se previa que no ano 2020 iria suceder esta discrepância entre médicos com mais idade e médicos com menos idade, havia um intervalo enorme entre os especialistas mais diferenciados e os recém-especialistas, que não podem fazer serviço de urgência, por exemplo. Não é uma comissão que vai resolver isto. Além disso, a atividade médica não se resume ao serviço de urgência; tem urgência interna, tem atividade cirúrgica, programada e de ambulatório, tem consultas, tem visitas aos doentes no internamento, tem a sua formação científica e profissional, congressos, simpósios, publicações. Fala-se no serviço de urgência porque é aquele o front office, mas existe esta carência de recursos humanos em muitas especialidades, não é só em Obstetrícia e Ginecologia. Em Pediatria, em Anestesia, por exemplo, há um problema gravíssimo e ninguém fala nisso. Isto só se resolve com a fixação dos médicos no SNS.

Faz sentido continuar a haver numerus clausus deixando de fora tantos alunos com vocação?

As universidades têm as suas limitações financeiras. Há uma falta de investimento no nosso ensino. As universidades estão a formar médicos em número adequado para exercerem no seu país. O problema reside nos locais de trabalho. As pessoas vão para esses locais e encontram ambientes inacivos, sem eficiência. Muitas vezes chegam cheios de força para trabalhar e vão desanimando, porque não têm remunerações adequadas, não têm incentivos, ao final de um, dois, cinco anos é a mesma monotonia. E as pessoas precisam de estímulos, sejam científicos, sejam profissionais, sejam remuneratórios.

Foi administrador da primeira parceria público-privada em Portugal, o Hospital de Cascais. Um sonho ou um pesadelo?

Um sonho, porque sempre entendi que as parcerias público-privadas eram uma maneira de gestão flexível. Neste caso em concreto, como depois foi possível em Braga, em Loures, em Vila Franca de Xira. As PPP vieram trazer serviços assistenciais que nunca tinham sido dados àquelas populações, vieram trazer especialidades que as populações desses concelhos e limítrofes não tinham acesso. E com uma poupança para o Estado da ordem dos 200 milhões de euros. As PPP eram auditadas com regularidade, tinham de responder perante as administrações regionais de saúde e outras entidades de saúde, tinham parâmetros de qualidade previamente contratualizados com o Estado, eram contratos de dez anos negociáveis. Se estavam a funcionar, porque é que se extinguiram? Foi uma opção ideológica. Que, no meu entender, foi profundamente errada. Estávamos a andar para a frente e demos dois passos atrás.

Porque é que as PPP são tão diabolizadas em Portugal?

As PPP da saúde não se enquadram nas parcerias público-privadas de que tanto se falou e que estavam a custar todos os anos mais dinheiro ao Estado.

"As PPP na saúde eram altamente lucrativas. Só porque a esquerda em Portugal, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, exigiu que os privados não pudessem participar na reforma do Serviço Nacional de Saúde, extinguiram-se as PPP"

Essas eram sobretudo na área dos transportes, as concessões e subconcessões rodoviárias e ferroviárias e também aeroportos.

As PPP na saúde eram altamente lucrativas. Só porque a esquerda em Portugal, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, exigiu que os privados não pudessem participar na reforma do Serviço Nacional de Saúde, extinguiram-se as PPP. Isto foi um retrocesso e é um atraso brutal. Colou-se às PPP da Saúde um odioso que não correspondia à realidade.

Trabalhou em Espanha e nos Estados Unidos. Quando, porquê e que diferenças sentiu em relação a Portugal?

Estive em Barcelona, no Hospital Sant Joan de Déu, a fazer ortopedia infantil durante três meses. Depois estive num hospital universitário em Nova Iorque, quase dois meses, nas próteses da anca e do joelho. Estive a estagiar - nos Estados Unidos já era especialista, em Barcelona ainda era interno. Não fiquei no estrangeiro a trabalhar por questões familiares.

E ficava longe de Vale de Espinho...

Ia perder o convívio com os meus amigos, e tenho um espírito de tertúlia bastante vincado.

Que diferenças encontrou entre lá e cá?

A organização e a liberdade de escolha, já naquela época. 

Foi diretor de urgência do Hospital de São José. Como era um dia normal?

Fui diretor de urgência do Hospital de São José entre 2003/4 e 2008, implementei a Triagem de Manchester - na altura criticada por muitos médicos, porque tinha posto os enfermeiros a fazer a triagem. Antes disso os doentes nos hospitais eram atendidos por ordem de chegada, mas passaram a ser atendidos por ordem de gravidade. E agora criei o Centro de Responsabilidade Integrada de Traumatologia Ortopédica do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central. O dia-a-dia no serviço de urgência era um dia normal clínico, tinha de observar os doentes e marcar mais emergentes ou mais urgentes para as cirurgias. O São José é um hospital de fim de linha, o serviço de urgência recebe os doentes mais graves, os acidentados, os politraumatizados, que são doentes complicados, complexos, que necessitam da intervenção de várias especialidades. A Traumatologia Ortopédica e a Ortopedia era uma das prioridades, portanto estava muito frequentemente no bloco operatório.

"Em Portugal estamos a envelhecer com pouca qualidade"

Como é que vai a saúde ortopédica dos portugueses?

Não tenho o diagnóstico preciso, mas o aumento da longevidade, o envelhecimento da população, que traz mais problemas do ponto de vista da osteoporose e da osteoartrose, das fracturas: mais complicações, mais tempo de internamento, maior número de doentes a intervencionar, o que não é bom. Em Portugal estamos a envelhecer com pouca qualidade. A longevidade tem aumentado, o que é positivo, mas precisamos de mais qualidade de vida. Há muita gente que tem 70, 75, 80 anos e que é muito útil à sociedade, e essas pessoas devem ser aproveitadas.

João Varandas Fernandes
João Varandas Fernandes créditos: Paulo Rascão | MadreMediA

E em relação aos mais novos?

Os mais novos têm menos problemas, praticam muito mais desporto, têm uma alimentação muito mais saudável, têm ao seu alcance uma informação que não existia há 20 ou 30 anos. 

"Fui vice-presidente do Benfica durante dez anos, na presidência de Luís Filipe Vieira. E orgulho-me muito, fizemos um trabalho magnífico"

Gosta mais de ser conhecido como ortopedista ou como vice-presidente do Benfica?

Gosto mais de ser conhecido como médico. De facto, fui vice-presidente do Benfica durante dez anos, na presidência de Luís Filipe Vieira. E orgulho-me muito, fizemos um trabalho magnífico. Criámos o movimento "Benfica vencer vencer", eu e o José Eduardo Moniz, e estivemos para ser candidatos às eleições em 2009, mas as eleições foram antecipadas e nós, em prol da estabilidade e do desenvolvimento, entrámos na lista do Luís Filipe Vieira em 2012, e mantivemo-nos até 2021, altura em que o Luís Filipe Vieira saiu. Mantive-me como vice-presidente do Rui Costa no período de transição, até ele ser eleito presidente, e entendi não continuar por opção própria.

E a saúde do clube, como está?

A saúde financeira não sei, porque já lá não estou. A saúde desportiva, neste momento, é positiva.

"Enquanto estive no Sport Lisboa e Benfica, nesses dez anos, nunca senti nem nunca vi qualquer irregularidade, qualquer gestão que fosse prejudicial ao clube"

A corrupção no futebol é uma doença difícil de curar?

Enquanto estive no Sport Lisboa e Benfica, nesses dez anos, nunca senti nem nunca vi qualquer irregularidade, qualquer gestão que fosse prejudicial ao clube. Os dirigentes, com o presidente à cabeça, a liderar, davam o seu melhor para que o Sport Lisboa e Benfica fosse cada vez melhor, cada vez mais vitorioso, tivesse cada vez mais saúde financeira, mais infra-estruturas. A formação das camadas jovens era uma preocupação, achávamos que era importante para a continuidade do clube. Não nos podemos esquecer  que o clube passou um momento grave no ano 2000 e que Luís Filipe Vieira libertou o clube desse problema, o clube recuperou, equilibrou-se, profissionalizou-se, modernizou-se. Portanto, nos dez anos em que lá estive, o que verifiquei foi um grande empenho de todos, quer dos dirigentes, quer do presidente. Nunca vi nada disso acaba de dizer.

Então é tudo uma inventona, não há corrupção no futebol?

O futebol é uma atividade que gere muitas emoções e gere muito dinheiro. Por isso, à frente tem de ter pessoas de bom senso e que saibam fazer coisas. Nunca vi nada no Sport Lisboa e Benfica concretizado em actos condenatórios. Estou cá para ver o que vão dar os processos de que o Benfica foi alvo. Eu não estava na gestão desportiva, não estava na SAD, era vice-presidente do clube, não tinha a ver diretamente com os negócios do futebol. 

Tem alguma coisa a ver com Frederico Varandas, do Sporting?

Não, somos colegas. Ele é fisiatra, eu sou ortopedista. E conheço bem o pai dele, também. Por acaso há quem nos relacione parentesco familiar, mas tenho a dizer além de colegas de profissão não somos mais nada. E depois temos uma grande diferença, é que um é verde e outro é encarnado. 

Pelo menos tem essa afinidade com António Costa. Já assistiram a jogos junto?

Já assistimos a jogos juntos e corre sempre bem [ri]. As vezes que tive oportunidade de estar com ele, vi que é uma pessoa de fácil trato e de fácil diálogo. Gosto muito de futebol, e agora comecei a escrever uns artigos para o Record em que falo do correlacionamento entre a medicina e o futebol.

No inicio do próximo ano há eleições para a Ordem dos Médicos. Já escolheu o seu bastonário?

Aceitei integrar a comissão de honra do professor Jaime Branco, candidato a bastonário. Sou candidato a presidente da Assembleia Regional Sul.

Este sábado vai estar na Escola de Quadros do CDS a moderar um debate sobre Saúde. É mais difícil fazer política fora do parlamento?

Entendo que o CDS/PP faz falta à sociedade portuguesa. É um partido equilibrado, não defende radicalismos nem extremismos. Predispus-me a fazer parte da direção e a coordenar o grupo de saúde com outras pessoas - no meu partido há várias correntes de opinião, mas que podem conviver perfeitamente: liberais, democratas-cristãos, conservadores. Sempre defendi que o CDS devia estar disponível para recuperar os nomes credíveis de sempre, mas também muito apostado em dar voz à gente mais jovem e diversa: conciliar a experiência e a maturidade dos mais velhos e a ousadia dos mais novos. Infelizmente não estamos no parlamento nacional, mas estamos no Parlamento Europeu, estamos nas autarquias e estamos na Madeira e nos Açores.

Vai "contracenar" com o ex-ministro da Saúde do PS, Adalberto Campos Fernandes, e com o bastonário da Ordem dos Médicos, conotado com o PSD. O que tem para lhes dizer?

Vamos tratar do que se tem vindo a passar com a Saúde em Portugal. Todos conhecemos o problema das urgências, o problema da referenciação, das consultas em atraso, das listas de espera para cirurgia, dos cuidados continuados, da falta de vagas nos paliativos. É isso que vamos debater. E temos uma coisa em comum: todos defendemos que o SNS é um pilar da democracia e um pilar fundamental para saúde dos portugueses. Temos de o preservar, mas não o podemos preservar como estava há 40 anos, tem de haver reformas profundas. 

Como Marta Temido, Adalberto Campos Fernandes não saiu pela porta grande. O PS não tem gente competente na área da Saúde?

O PS pode ter gente competente para a Saúde, o problema é que se tem, não aparecem.

Três objetos de que não abdica no seu dia-a-dia e porquê?

Caneta, livros e um diário.

Tem um diário?

Sempre, já há muitos anos. Que escrevo regularmente ao final do dia; a minha opinião sobre o dia, o que fiz, os problemas que tive e os que solucionei. E ajuda-me a fazer uma revisão do que fiz bem e menos bem de uma forma mais independente, mais fora do buliço. E isso leva-me a refletir e a corrigir.

Se fosse congelado e o acordassem daqui a 100 ou a 500 anos, qual a primeira coisa que iria querer saber?

[Ri] Sou católico, portanto, não acredito muito que seja descongelado daqui a uns quantos anos. Ou congelado, também. Acho que teria grandes dificuldades em adaptar-me à realidade, se não a rejeitasse. Preferia não saber.