A Fundação José Neves foi fundada pelo “dono” da Farfetch, unicórnio português cotado na Bolsa de Nova Iorque. Carlos Oliveira, ex-secretário de Estado de Empreendedorismo (governo de Passos Coelho), fundador da MobiComp (vendida à Microsoft em 2008) e atual membro do Conselho Europeu de Inovação é o presidente executivo da FJN e António Murta, diretor-geral da Pathena e investidor em capital de risco, assume o cargo de administrador não executivo.
Na FJN há um compromisso e uma ambição: José Neves acordou doar dois terços da sua fortuna e o seu objetivo é transformar Portugal numa sociedade de conhecimento nas próximas duas décadas (até 2040).
Sentados lado a lado, José Neves e Carlos Oliveira falaram ao SAPO24. Discorreram sobre os caminhos da educação, da formação e do conhecimento — um conhecimento do mundo externo, que leva ao desenvolvimento económico, e do mundo interno, de nós próprios, que culmina na felicidade. Falaram sobre Razão e Emoção, um campo já explorado por António Damásio, neurocientista português.
É normal um Unicórnio fundar uma fundação?
José Neves: Penso que é normal em algumas sociedades e está a ficar mais normal na Europa, que tem uma tradição filantrópica menor do que os Estados Unidos da América. Mas é também algo que motiva todos os colaboradores da Farfetch. Penso que existe uma interdisciplinaridade entre empresas e filantropia. Por exemplo, anunciámos uma iniciativa para o conhecimento pessoal que é a 29KFJN, que tem o apoio, desde o primeiro dia, da Farfetch, mas também da Bial, da Galp, da Elétrica Nacional, Accenture e de outras empresas.
Filantropia a funcionar como um hub?
José Neves: Sim. E como forma de trazer soluções para as empresas, e de as empresas poderem aumentar, com os recursos que têm, aquilo que estamos a fazer. Acho que há uma conexão muito importante e que se verá cada vez mais.
Porquê a aposta na educação e não, por exemplo, na saúde — da qual muito se tem falado nos últimos tempos?
José Neves: A missão da fundação é sobre conhecimento. Tem a ver com educação, mas não só. Portugal pode tornar-se numa sociedade do conhecimento, aquele conhecimento do mundo exterior, de como funciona a economia, a tecnologia, as leis da química e física. Isso vai levar ao desenvolvimento económico sustentável e sustentado do país. Mas depois é preciso trabalhar o conhecimento de nós próprios. São estas duas vertentes do conhecimento, do mundo lá fora e do mundo cá dentro, que juntos podem contribuir para que os seres humanos possam ser mais felizes. E que para uma sociedade se possa desenvolver harmoniosamente. Portanto, não é só educação. Nem é só economia. É o desenvolvimento em geral.
É a única Fundação portuguesa a integrar a The Giving Pledge
José Neves: A The Giving Pledge foi fundada por Bill e Melinda Gates e Warren Buffet, no sentido de criar uma comunidade de filantropos, 212, que partilham entre si as melhores práticas. Eu e o Carlos (Oliveira) já estivemos em vários eventos The Giving Pledge. Isso permitiu-nos trocar impressões sobre o que realmente tem impacto. A filantropia tem a ver com impacto e o impacto tem de ser medido. No setor privado é fácil medir [o impacto] pelos resultados das empresas. No setor da filantropia, é mais difícil, mas é importante medir. O The Giving Pledge foi para nós uma oportunidade de trocar ideias com alguns dos maiores filantropos a nível mundial.
É uma cimeira de Davos dos filantropos?
José Neves: É uma comunidade em que se partilham as melhores práticas, trocam-se ideias e inspirações de pessoas que estão a fazer filantropia a uma escala enorme, até muito superior ao que estamos a fazer. Temos ambições de alargar o espetro da fundação, mas temos também consciência e a humildade de saber que estamos a começar.
Um unicórnio que cria uma fundação para através do conhecimento ajudar a criar novos unicórnios. É também um dos objetivos?
José Neves: Com certeza. Portugal tem no tecido das startups tecnológicas muitos exemplos de sucessos. Temos a OutSystems, a Feedzai e tantas outras. E temos condições de criar muito mais. Se perguntar a todas essas empresas e aos empresários sobre o que faz falta... fazem falta mais competências. O acesso ao mercado de trabalho está cada vez mais complicado para estas empresas. Esse é o limite. O limite não está no talento, os portugueses têm um talento extraordinário a nível técnico, empresarial e criativo. O limite está realmente nas competências com que estamos a dotar a nossa juventude, que não estão sempre alinhadas com o que se está a passar no mundo. E é esse o contributo da nossa fundação.
“O tema da educação é a base. É a transformação mais estrutural e fundamental da sociedade portuguesa” Carlos Oliveira
Pego nessa deixa e questiono o Carlos Oliveira (presidente executivo da Fundação). Há um desfasamento entre competências e expetactivas salariais?
Carlos Oliveira: Sem dúvida. Portugal fez um enorme progresso nas últimas décadas ao nível da educação dos portugueses, mas esse progresso não é suficiente. Portugal tem uma taxa muito elevada de adultos (no mercado trabalho) com baixas qualificações. As mais baixas da União Europeia. Cerca de 50% não completaram o ensino secundário.
Na última década, o perfil do mercado de trabalho em Portugal evoluiu positivamente. Está mais envelhecido, mas mais qualificado. A criação de emprego ocorre não apenas nas áreas tecnológicas, mas também de serviços. E isso reforça a importância de qualificar jovens e adultos. É esta aposta que o país tem de fazer, na requalificação e qualificação ao longo da vida. Apenas um em cada dez portugueses faz formação ao longo a vida. Quando temos este quadro de baixa qualificação dos adultos, os menos qualificados são os que menos fazem. É um problema complicado e tem de ser resolvido. Por isso, projetamos uma ambição de longo prazo para o país nas próximas duas décadas: transformar Portugal numa sociedade do conhecimento, que é a base do desenvolvimento individual, mas também a base para que as empresas sejam mais produtivas, melhor geridas e, por resultado, o país se desenvolva mais.
E isso significa ...
Carlos Oliveira: Significa que os jovens muito mais qualificados estão a entrar no mercado de trabalho e deparam-se com empregadores com o 9º ano. Muitos poderão querer ter esses jovens mais qualificados a ajudar nas suas empresas e muitos poderão não ter os mecanismos de perceber as novas dinâmicas do mercado trabalho, aplicar inovação às suas empresas e negócios. Por isso, o tema da educação é a base. É a transformação mais estrutural e fundamental da sociedade portuguesa. E que traga o tal bem-estar, realização pessoal e felicidade.
Nesse programa de aposta de Educação não se limitam aos mestrados, vão à base?
Carlos Oliveira: Na FJN, nesta fase inicial, em menos de um ano, lançámos programas muito operacionais. Focámo-nos naquilo que vai de uma formação de ciclo normal - uma formação técnica, um mestrado ou um bootcamp. Acreditamos que este alinhamento e o mercado de trabalho têm de ocorrer com novos formatos de educação, novos cursos que não têm obrigatoriamente de conceder grau. É evidente que o grau é importante para dar estabilidade ao conhecimento, mas acreditamos em cursos de curta duração, muito profundos, que atribuam competências especificas e tenham aplicabilidade no mercado trabalho. Necessitamos desse alinhamento entre educação e mercado de trabalho. E precisamos que haja formação mais adequada a alguém menos qualificado no mercado trabalho. Grande parte das pessoas não vai poder parar de trabalhar para fazer uma requalificação. É necessário esta nova formação em todas as áreas do saber, na economia e gestão, umas mais trabalhadas que outras.
“Estamos no início e, de forma muito humilde, temos consciência que somos apenas um agente em dez milhões de agentes. Cada português, cada um de nós, é um agente de mudança. Todos os contributos individuais são essenciais e mais poderosos do que imaginamos”José Neves
A digitalização é um dos trampolins que podem ser usados para a formação?
Carlos Oliveira: No Estudo sobre o Estado da Nação concluímos isso com os dados: houve uma perda generalizada de emprego durante o ano 2020, fruto da pandemia, que travou o crescimento do emprego que vinha desde 2013, da última crise. Mas, efetivamente, as áreas mais protegidas são as áreas das pessoas mais qualificadas e as áreas da tecnologia. A crise veio acelerar uma tendência que se verificava nos últimos anos. O emprego que mais se criou foi para pessoas mais qualificadas e muito baseado em tecnologias. A educação protege o emprego, mesmo em momentos de crise. E também assegura melhores remunerações. Alguém licenciado em Portugal ganha em média mais 750 euros do que alguém só com o ensino secundário.
“O Professor António Damásio fala de como o mundo esqueceu que somos primeiro emoção e depois razão. A razão não funciona bem sem a emoção. Pensamos que é inimiga da emoção, como se tivéssemos duas cabeças internas que andam à pancada. Não é verdade. A razão é construída sobre o substrato da emoção”José Neves.
Pergunta que deveria ser a primeira. Quando é que se lembrou de criar uma fundação.
José Neves: Na verdade quis fazer filantropia há muitos anos. Fui dos primeiros signatários da Founders Pledge, que tende a trazer empresários de startups tecnológicas, numa altura em que não têm cash, para o mundo da filantropia. Há cerca de 8 anos fui um dos signatários e comecei a aprender o que resulta e não resulta. Não se trata só de dar dinheiro, trata-se de dar o nosso talento. Eu, o Carlos e o António Murta viemos todos do digital e muito claramente seria por aí que os produtos, ferramentas e as soluções — e até a própria sede, que não existe uma sede física, é digital — andariam. Quis focar-me no meu país, Portugal, onde poderia ter impacto maior e por amor ao país e aos portugueses. Depois, mais perto do lançamento em bolsa da Farfetch, perspetivou-se esse potencial de liquidez, o que levou a que tivéssemos uma conversa, em que eu, o Carlos e o António percebemos que era o momento certo. Estamos no início e, de forma muito humilde, temos consciência de que somos apenas um agente em dez milhões de agentes. Cada português, cada um de nós, é um agente de mudança. Todos os contributos individuais são essenciais e mais poderosos do que imaginamos.
Onde entra a componente da psicologia, não tanto para a criação da empresa, mas para a fundação?
José Neves: Foi muito claro na criação da fundação, e da sua missão, esta ideia do conhecimento. O Professor António Damásio fala de como o mundo esqueceu que somos primeiro emoção e depois razão. A razão não funciona bem sem a emoção. Pensamos que é inimiga da emoção, como se tivéssemos duas cabeças internas que andam à pancada. Não é verdade. A razão é construída sobre o substrato da emoção. Mas isso é algo que não conhecemos. O conhecimento deste mundo interno permite que tomemos melhores decisões e funcionemos melhor no mundo externo. Para mim, desde o primeiro dia, e para os fundadores da fundação, que esta questão do quarto pilar da formação, o conhecimento pessoal, através da psicologia, psicanálise, através de muitas ferramentas... Já agora, o homem conhece mais sobre as origens do universo do que conhece sobre a mente humana, e isso é incrível. A mente humana é ainda uma caixa de surpresas, que nos surpreende constantemente. E esse conhecimento de nós próprios faz parte da missão da fundação.
E nessa caixa de surpresa da cabeça do José neves. Há mais emoção ou razão?
José Neves: Tem de ser sempre as duas coisas. É algo que todos temos de trabalhar. Todos temos um percurso individual e ninguém se pode substituir. É um trabalho que é feito diariamente com ajuda dos outros.
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