Nas largas artérias que cruzam o centro da capital ucraniana, vagueiam pessoas isoladas, como espetros numa cidade fantasmagórica, na rotina diária de abastecimento de bens elementares nos supermercados, razoavelmente abastecidos apesar de carências pontuais de alguns produtos frescos, um raro setor que mantém portas abertas, além de algumas farmácias, agências bancárias, e pouco mais.

Tudo o resto fechou nos primeiros dias após a invasão da Rússia, em 24 de fevereiro: restaurantes, esplanadas, cadeias das multinacionais de ‘fast food’, lojas de moda, telecomunicações, cabeleireiros…

Os autocarros e os elétricos estão parados. O metro também e as suas estações mantêm-se abertas para servirem de abrigo em caso de ameaça de bombardeamento. As sirenes foram ouvidas ao início da tarde de hoje, mas na vasta rua Bohdana Khmel'nyts'koho, no coração da cidade, as escassas pessoas que circulavam não aceleraram passo nem procuraram proteção. Em menos de cinco minutos o alarme calou-se.

Na mesma rua, surge uma rara imagem de aglomeração de uma dezena de civis. Foram ao banco pagar contas. “Está tudo fechado, não há trabalho. As pessoas ficam em casa, saem para ir ao supermercado, à farmácia, eu vim ao banco”, lamenta Anna, 29 anos, artista e fotógrafa natural de Kharkhiv, no leste do país e que fixou morada há quatro anos em Kiev, “a capital da liberdade”.

Na sexta-feira, Anna planeia partir para a Eslováquia, de onde seguirá para Alemanha ao encontro do filho de 10 anos, que fugiu de Kharkhiv com os avós. “Desde o início dos bombardeamentos, não consigo dormir, tomo sedativos, mas nem isso funciona, comecei a ter ataques de pânico e vou sair uns dias. E a seguir volto”, promete, num compromisso que assumiu com o seu país e as cidades de Kharkhiv, que traz no sangue, e de Kiev, no coração, ambas tatuadas nos seus braços.

Muitos pensam como Anna e no dever coletivo de fazer o que for preciso para preservar a vida no país, no seu caso num projeto espontâneo de uma cozinha, nos arredores da capital, que distribui comida para desprotegidos, sobretudo os idosos, que se recusaram a abandonar as suas casas e ficaram sem apoio familiar, e que lhe custa tanto ver.

Depois vem o apelo patriótico de defender o país “daquele completo sacana doido”, diz, referindo-se ao Presidente russo, Vladimir Putin, e à sua presunção de que a Ucrânia será parte da Rússia. “Isso nunca acontecerá, não somos neonazis, não queremos ser russos, somos livres, eles não, estão a tornar-se na Coreia do Norte e até tenho pena deles”. Menos de Putin: “Acredito em Deus, mas espero que morra e quanto mais depressa melhor”.

A cidade ausente encontra eco nos números hoje divulgados pelo presidente da Câmara de Kiev, dando conta de que metade da população já fugiu. “Segundo as nossas informações, um em cada dois habitantes de Kiev deixou a cidade. Hoje, restam pouco menos de dois milhões de habitantes”, afirmou Vitali Klitschko, em declarações à televisão ucraniana.

No entanto, "Kiev transformou-se numa fortaleza”, sublinhou o autarca, no 15.º dia da invasão russa. “Cada rua, cada edifício, cada posto de controlo foi fortificado”, disse o autarca.

Sob as asas da deusa eslava Berehynia, no topo dos 40 metros de altura deste monumento da independência, um grupo de voluntários enche sacos de areia em plena praça Maidan, onde ocorreram alguns dos principais acontecimentos da história recente ucraniana. Era um dos locais mais vibrantes da cidade, agora convertido num majestoso deserto, que apenas um raro dia de sol e uma bailarina ocasional a produzir um "tik-tok" conseguem dar alguma alegria.

É para este lugar, que testemunhou a Revolução Laranja, em 2003 e 2004, e os protestos do Euromaiden, dez anos mais tarde, que se dirige de bicicleta dos arredores da cidade Roman, engenheiro de transportes de 36 anos, que, ironia das circunstâncias, deixou de poder usar.

Passa três a quatro horas por dia de pá na mão a encher pesados sacos brancos e a colocá-los junto de obstáculos anticarro metálicos em cruz no imponente controlo militar da rua Khreshchaty, que atravessa a praça. Num deles está assinalado que é proibido estacionar, como uma metáfora associada às pretensões russas na Ucrânia, no local mais simbólico da sua capital.

“Faço isto desde o oitavo dia de guerra. Estou sem trabalho e é a minha forma de ajudar”, declara o voluntário, lamentando que Kiev se tenha transformado numa “cidade-fantasma”. Ao mesmo tempo espera que “pequenos contributos como este possam levar a que o Exército vença os russos” e assim ter a sua vida de volta.

Para Bohdan, 19 anos, que se encontra no mesmo grupo, “não se trata apenas de defender o território, mas os valores”, uma ideia tão partilhada entre os ucranianos como uma divisão em relação àquilo que os separa do que chamam “ditadura russa”.

“Todos devem estar orgulhosos por aquilo que estamos a fazer, mostrando o melhor de nós e o Governo russo deve estar louco, porque ainda não percebeu que não está a lutar contra um pedaço de terra, mas contra uma nação inteira”, observa o jovem produtor de filmes, entretanto registado nas Forças de Defesa Territoriais.

E num salto no tempo, cita o célebre discurso do ex-primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, exortando à resistência e à luta, achando-o “bastante adequado” à realidade da Ucrânia, do mesmo modo que sente como verdadeiras e proféticas as Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no início da invasão, quando disse que “a luz vencerá a escuridão”.

Se os russos algum dia ultrapassarão aqueles sacos de areia que hoje encheu, Bohran pede tempo para pensar. Levanta os olhos na direção do colossal Hotel Ucrânia - originalmente Hotel Moscovo, de arquitetura estalinista -, depois do céu para por fim responder: “Vamos dar o nosso melhor”.

Em Kiev e arredores foram erguidos ‘checkpoints’ em toda a parte, que, no centro, entre os edifícios monumentais antigos, igrejas de cúpulas douradas e parques sem crianças, controlam um trânsito quase inexistente. Vem dos militares, das forças de segurança e territoriais, dos voluntários de roupas civis escuras de braçadeiras amarelas o principal sinal de que a cidade não se ausentou por completo.

É para eles, hospitais e cidadãos vulneráveis que mais voluntários cozinham e oferecem bens e calor, uma missão que outro Bohran, 37 anos, abraçou desde que perdeu o seu trabalho como empregado de mesa, no esforço repetido a cada conversa. de “fazer o que é preciso” neste momento crucial.

O diálogo é interrompido por uma mulher, também voluntária, que inicia um comício para um público invisível, queixando-se

Dos países europeus que enviam jornalistas em vez de ajuda militar. “Os bombardeamentos e esta situação deixaram as muito nervosas”, justifica Bohran. Não é caso único e frequentemente os profissionais de comunicação social destacados para Kiev são abordados para apresentarem a sua identificação a meros civis, que apenas estão desconfiados e seguem indicações de denunciarem eventuais sabotadores pró-russos.

No dia em que os chefes da diplomacia ucraniana e russa se avistaram na Turquia, mas sem avanços na resolução do conflito, Anastasia resolveu partir. “Tenho medo, acabou-se”.

Na estação de Kiev, prossegue um vaivem constante de comboios que chegam quase vazios e partem cheios para as rotas de saída do país. A decoradora de interiores de 41 anos, o seu cão Benjamin e o gato Hedrik vão juntar-se à filha na Eslováquia, uma decisão tomada há cinco dias, após uma noite de pesados bombardeamentos nos arredores da cidade, onde reside.

“Não sabíamos que as coisas iriam ficar tão más, tínhamos a ilusão de que podíamos preservar alguma segurança”, lamenta Anastasia, junto de dois amigos gémeos, de 52 anos, que não têm para onde ir. Yuri é funcionário numa empresa de ‘catering’, que suspendeu a atividade, e ignora se vai receber o próximo salário, Igor preserva o emprego numa operadora de telecomunicações em teletrabalho.

“Já nos habituámos a viver grandes mudanças, desde o período soviético à Perestroika, a revolução ucraniana e agora isto”, afirma Yuri, apontando que este passado “deveria fazer indicar que é muito difícil dobrar este povo”.

Ao mesmo tempo, está consciente de que, apesar da calma que hoje se viveu na cidade, “os russos virão para aqui com tudo, porque é o objetivo deles, talvez amanhã, depois de amanhã…”, prevê, numa guerra que admite ser prolongada, como a crise na região de Donbass, que se arrasta desde 2014. Tal como é a incerta a duração da ausência de Anastasia e Igor vai-se preparando para ela: “Talvez para sempre”.

* Por Henrique Botequilha (texto) e Miguel A. Lopes (fotos), agência Lusa em Kiev, Ucrânia