A Fundação acusa a Ordem dos Médicos de ter orquestrado um plano para impedir os médicos de prestarem auxílio no Lar e mobilizar a opinião pública através de um relatório falso, que afirmasse a falta de condições na residência para pessoas idosas por culpa da Fundação e do Estado.

A acção conjunta deu entrada no tribunal a 24 de Julho de 2023, confirmou ao SAPO24 o presidente do conselho de administração da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, José Gabriel Calixto. Até ao momento, a Ordem dos Médicos não recebeu qualquer notificação, segundo o bastonário Carlos Cortes.

"De acordo com vasta prova, recolhida de diferentes origens para que fosse bem fundamentada, incluindo documentos internos da Ordem dos Médicos, esta Ordem quis encontrar uma forma de recusar a indicação da ARS [Administração Regional de Saúde] para que os médicos fossem ordenados a prestar serviço no Lar, tendo desenvolvido um plano para esse efeito", disse José Gabriel Calixto ao SAPO24.

O plano, acusa o presidente da Fundação, foi "mobilizar a opinião pública portuguesa através de um relatório falso que atestasse a inexistência de condições por culpa da Fundação e do Estado, o que fez, com sucesso, criando danos irrecuperáveis nas pessoas dos seus trabalhadores e dirigentes e na imagem da Fundação, enganando deliberadamente a sociedade portuguesa com factos inventados, conclusões sem premissas, omissão e censura de provas e testemunhas".

Os factos remontam a 2020, em plena pandemia, depois da morte de 17 utentes e uma funcionária do Lar por infeção com Covid-19. As denúncias de médicos que trabalharam no Lar levaram a Ordem dos Médicos a abrir uma comissão de inquérito, que viria a revelar falta de condições.

O relatório final foi enviado para a diversas entidades oficiais, entre elas a Direcção-Geral de Saúde e a Procuradoria-Geral da República, e levou mesmo o Ministério Público a instaurar um inquérito, que viria a ser arquivado em Junho deste ano. De acordo com a procuradora Ana Margarida Sebastião, quando o surto eclodiu na instituição, a pandemia de Covid-19 estava ainda numa fase inicial e as medidas preconizadas pelas autoridades para o controlo da doença "eram ainda muito exíguas e estavam em constante mutação", o que terá condicionado a tomada de melhores decisões.

O mesmo em relação às dúvidas sobre a atuação das entidades públicas e dos profissionais de saúde. Terá havido "alguma desorganização na implementação das medidas de controlo da infeção", mas os envolvidos apesar da "impreparação de todas as entidades", "conjugaram esforços" para encontrar soluções.

Por último, sobre as acusações de maus-tratos no Lar, o Ministério Público concluiu que os indícios da prática de crime não eram suficientes, ainda que tenha sido detetado falhas com reflexo na qualidade dos cuidados prestados aos utentes.

Oito erros "intencionais" mais graves

"A lista de todos os erros é muito longa, mas são oito os erros intencionais mais graves", diz José Gabriel Calixto. E enumera: "Mentira 1: as causas de morte. A Ordem dos Médicos afirma que não morreram só de Covid, quando não tinha indicação de outro quadro e os relatórios oficiais referiam que todas as mortes se deveram a Covid".

"Mentira 2: a inexistência de plano de contingência. A Ordem dos Médicos sabia que havia plano de contingência desde março de 2020, que tinha sido desenvolvido com a Segurança Social e com uma equipa médica de um estabelecimento de saúde e recebeu-o no email enviado pela Fundação a 06 de agosto de 2020, antes de ter divulgado a sua inexistência à comunicação social".

"Mentira 3: a motivação do relatório. A Ordem dos Médicos afirma que criou uma comissão para investigar queixas de médicos de falta de condições, quando o que motivou, de acordo com os seus documentos internos, foi a necessidade de encontrar razão para os médicos se recusarem a cumprir a ordem da ARS que os ordenava a ir para a ERPI [Estrutura Residencial para Pessoas Idosas]".

"Mentira 4: falta de condições no Lar. A Ordem dos Médicos tinha em seu poder um relatório exaustivo da Segurança Social, do início da pandemia, onde se constata a existência de todas as condições de qualidade como ERPI, cumprindo toda a regulamentação e todos os critérios de qualidade".

"Mentira 5: a Fundação permitiu que a falta de recursos humanos se prolongasse. A falta de pessoal deveu-se a doença e a recusas, sabendo a Ordem dos Médicos e os 24 autores desta ação que há provas de que a Fundação desde o início do surto antecipou que haveria uma quebra de pessoal e que a única forma de ultrapassar essa falha seria retirando os idosos do Lar para uma estrutura de retaguarda ou de saúde, nunca deixá-los num estabelecimento de apoio social que não está pensado para um cenário de surto generalizado".

Segundo o presidente da Fundação, a instituição fez tudo "para conseguir trazer mais profissionais para dentro desde a primeira hora, ativando protocolos institucionais, as forças armadas e até estruturas de voluntários, amigos, familiares e outras entidades privadas. Assim que a Ordem dos Médicos anunciou a mentira da falta de condições, para além dos médicos que se recusavam desde o início, começaram também a recusar-se outros médicos e pessoas, agravando o problema".

"Mentira 6: a Fundação seria responsável por testes lentos. A entidade responsável pela testagem foi o Agrupamento de Centros de Saúde, que não tinha testes suficientes, apesar das insistências da Fundação".

"Mentira 7: o primeiro infetado foi uma trabalhadora. O primeiro caso foi de uma utente, estando bem documentado isto mesmo, mas a Ordem dos Médicos quis criar a imagem que o surto se iniciou por descuido da Fundação, através de uma funcionária, dando mesmo duas datas diferentes para esse facto inventado".

"Mentira 8: sangue no chão. A Ordem dos Médicos chega mesmo a referir a existência de sangue no chão do equipamento de retaguarda, tirando fotografia, quando todos sabiam tratar-se de uma falha no pavimento".

Para a Fundação, e segundo José Gabriel Calixto, a Ordem dos Médicos tem de ser responsabilizada. "Basta ler as provas do relatório da Ordem dos Médicos para perceber: a história não está a ser relatada, está a ser inventada. O que está fora desse relatório, e é a novidade desta ação, é a prova do plano da Ordem dos Médicos, a intenção que levou às mentiras que relatou e divulgou, os danos que causou e o exemplo heróico de um grupo de pessoas que enfrentaram o primeiro grande surto em Portugal, com a adversidade do julgamento público e das recusas que a Ordem dos Médicos egoísticamente causou".

Face às acusações descritas, o SAPO24 falou com Filipa Lança, a médica que coordenou o relatório em causa, que reitera que "tudo o que lá está escrito é verdade" e tem por base a recolha de "testemunhos gravados", de médicos e não médicos, e a ida de especialistas ao local.

O bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, adiantou ao SAPO24 que, até ao momento, a Ordem não recebeu nenhuma notificação do tribunal em relação ao caso. Filipa Lança garante que, na altura certa, "responderemos de acordo".

À data dos factos, o bastonário da Ordem dos Médicos era Miguel Guimarães, que garante que todos os procedimentos normais para a situação foram cumpridos e que nada moveu a Ordem dos Médicos contra a instituição, a não ser o bem-estar e saúde dos utentes e funcionários do Lar.

A Lar de Reguengos de Monsaraz, gerido pela Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, está atualmente "com lotação esgotada", segundo João Silva, diretor de serviços, e tem ainda uma vasta "lista de intenções".