Calor, pragas, falta de água e de uma rede de frio para conservar a fruta fora da árvore formaram a tempestade perfeita e o resultado é que a laranja nacional não chega para as encomendas e já há distribuidores a ter de importar, pelo menos até à próxima campanha, que arranca na segunda quinzena de novembro.

A falta de laranjas foi detetada em lojas do Continente, Auchan e Pingo Doce, mas também em algumas mercearias locais. Fonte oficial do Pingo Doce confirmou a falha ao SAPO24, embora não tenha registado "ruturas assinaláveis" e adiantou que "é expectável que em Outubro volte a haver laranja produzida em Portugal". O Continente e Auchan não responderam às perguntas, mas nas lojas em causa os repositores explicaram que "não há fornecedores".

Embora a agricultura esteja longe de ser uma ciência exata e dependa em larga escala de fatores imprevisíveis como o clima, muito do que está a acontecer foi antecipado. "Na altura em que foi fixado o IVA 0%  tivemos o cuidado de avisar que o preço da laranja não ia baixar, porque a produção prevista das variedades de Verão fundamentais, a 'Valência' e a 'Dom João', era de menos 50%, o que veio a confirmar-se", recorda o presidente da direção da AlgarOrange - Associação de Operadores de Citrinos do Algarve.

Além disso, explica José Oliveira, "os produtores querem vender rapidamente a sua produção, porque com este calor pragas como a mosca da fruta são quase incontroláveis para a fruta supermadura que está nas árvores. A falta de uma rede de frio no Algarve inviabiliza a possibilidade de colher a laranja e de a manter em temperatura controlada durante um mês ou um mês e meio".

Quando acaba o produto nacional, e o Algarve já representa perto de 90% da produção total, os distribuidores recorrem à importação, nomeadamente da África do Sul e do Uruguai, "o que este ano aconteceu mais cedo". E os preços de venda ao público ficam mais caros.

Acontece que a África do Sul está a desviar a sua produção para outros mercados, não só porque teve uma quebra na quantidade produzida, como também porque a União Europeia impôs um controlo fitossanitário apertado para evitar a entrada de novas pragas em Portugal e na Europa.

"Tudo junto faz com que nesta altura já não haja laranja nacional para vender e haja um défice de laranja no mercado", resume José Oliveira. Agora, só na próxima campanha, "que normalmente acontece depois da segunda quinzena de novembro e poderá prolongar-se até Fevereiro, voltará a haver condições para abastecer o mercado" com produto nacional.

A produção de laranja distribui-se basicamente por três ciclos: a época de Inverno, com a 'Newhall' como variedade principal, a época da Primavera, onde a variedade rainha é a 'Lane Late', e a época de Verão. Neste momento, no entanto, "não seria credível antecipar preços ou quantidades de produção para a época de Inverno".

Uma coisa é certa, diz José Oliveira, "se não chover fortemente no Inverno, naturalmente que a região vai ter problemas graves. E esses problemas, certamente, irão ter um forte impacto na produção e na existência de alguns pomares", garante.

"Neste momento há pomares que estão em regime de sobrevivência, ou seja, a receber quantidades de água apenas para as árvores não secarem e morrerem, para quando estivermos numa situação em que se possa regar normalmente seja possível recuperar essas árvores. Portanto, já não estamos a falar de produção, estamos a falar de salvar as árvores", avisa. "Com estas dúvidas todas, sem nenhuma garantia de ter água no curto/médio prazo, vamos fazendo navegação à vista", lamenta o presidente da AlgarOrange.

Espanha investe 25 mil milhões no uso eficiente da água, Portugal fica-se pelos 390 milhões

Com as temperaturas cada vez mais elevadas e uma falta de água crescente a pergunta impõem-se: faz sentido continuar a apostar em culturas de regadio (como a laranjeira, que consome entre 6.000 e 6.500 metros cúbicos de água por hectare/ano) ou é preciso fazer uma transição para culturas de sequeiro? "Mudar de produção não é como estalar os dedos", diz José Oliveira. "E neste momento não há no Algarve culturas de sequeiro que possam garantir a sobrevivência de um produtor", assegura.

No Algarve existem "duas culturas de sequeiro: a amêndoa e a alfarroba. Há dois anos a alfarroba teve um aumento de preço inacreditável, devido a fatores externos e pontuais, mas atualmente o preço não dá garantias que um produtor consiga viver dessa cultura. A amêndoa ainda pior, o preço não paga a mão-de-obra da apanha e o tipo de pomar, ao contrário do Alentejo, que é plano e tem grandes extensões, com árvores pequenas, não permite a apanha mecânica".

Posto isto, "ninguém vai mudar de uma cultura de regadio como a laranja para culturas de sequeiro. Isso poderá acontecer apenas para as pessoas não deixarem os campos ao abandono".

"Aquilo que continuamos a reclamar é que tem de se estudar e ponderar a criação de novas origens de água superficial, seja a construção de uma barragem, sejam transvases de outras regiões hidrográficas, nomeadamente do Alqueva. O que não concordamos é que se gira apenas aquilo que há, porque temos a noção de que aquilo que há será cada vez menos. Isto independentemente dos cuidados na forma como se gasta água, que é um fator fundamental nisto tudo. Não podemos pôr para trás das costas a possibilidade de arranjar novas origens de água".

José Oliveira diz que os produtores têm mantido "um contacto normal" com o Ministério da Agricultura e da Alimentação, com "reuniões regulares da região hidrográfica do Algarve e entidades oficiais com entidades ligadas à agricultura, ao turismo e aos campos de golfe, para fazer o controlo e monitorização da situação da água. Mas, neste momento, não se pode fazer mais do que isso".

Não pode ou não quer. O secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Luís Mira, diz que "os políticos têm de perceber que têm de dar condições para se continuar a produzir - já não é para produzir mais, é só para continuar a produzir. Enquanto as questões relativamente ao fator água andarem envoltas em ideologia e não se ouvirem os cientistas e não se tomarem decisões para que Portugal tenha mais captações de água, mais reservas de água", o problema não será resolvido.

"Temos de encarar as questões do ponto de vista técnico e de forma pragmática", defende. "Se fizemos auto-estradas de Bragança até ao Algarve, também podemos fazer auto-estradas da água. Que, aliás, já estavam concebidas na década de 50. Mas há sempre o argumento "não há dinheiro". Agora houve dinheiro do PRR e não as fizemos na mesma".

"Os espanhóis utilizaram 25.500 milhões do PRR para o uso eficiente da água. Têm uma visão diferente. O PRR em Portugal não é nenhum Plano de Recuperação e Resiliência, é um orçamento suplementar. E os portugueses vão pagar isto caro", antecipa.

O secretário-geral da CAP lembra o que aconteceu com o Alqueva, projeto do tempo de Marcello Caetano, que ficou à espera de fundos comunitários e demorou 25 anos a fazer. "Mas é preferível isso a não fazer nada, porque agora nem essa pequena vontade existe. Portugal abandonou completamente esta questão", diz Luís Mira.

A gestão hídrica está inserida no pilar "resiliência" do PRR e prevê uma dotação de 390 milhões de euros para "mitigar a escassez hídrica e assegurar a resiliência dos territórios do Algarve, Alentejo e Madeira aos episódios de seca".

A CAP tem chamado a atenção para a necessidade de realizar obras e "ter a água como um desígnio nacional. Que não é". "A Espanha faz transvases há mais de 20 anos e nós não andamos sequer a pensar nisso, porque quando se fala em transvase parece que se fala em veneno. Os políticos só querem coisas fáceis e o país vai-se afundando cada vez mais", desanima. "Estas obras de longo prazo são pouco apetecíveis para os governos, que querem ver resultados nos seus ciclos políticos".

Mas outras coisas podiam ser feitas: "O país só aproveita uma percentagem da água que chove, a outra deixa ir para o mar. A água que chove no território nacional, se fosse aproveitada e gerida de uma forma eficiente, era suficiente e que dava para expandir a nossa capacidade produtiva", afirma.

Por outro lado, é preciso alterar o objeto das concessões das barragens. "No ano passado só se falava nas barragens sem água. E as pessoas ficaram convencidas que tinha sido a seca. Não foi. Acontece que as barragens a Norte servem para produzir energia, não para reter água nem para fins múltiplos. E os concessionários dessas barragens turbinaram a água toda até há última gota para facturarem o máximo que podiam - pagaram uma concessão para produção de energia. A primeira coisa que o governo tem de fazer é alterar essas concessões", considera Luís Mira.

O SAPO24 fez estas e outras perguntas à ministra da Agricultura e da Alimentação, Maria do Céu Antunes, mas não obteve qualquer resposta até à data de publicação deste artigo.

Quanto à transição para outro tipo de culturas, o secretário-geral da CAP considera que não é preciso ser tão radical e garante que os agricultores, individualmente, já estão a mudar as coisas. "Mas depois, quando querem adaptar-se, cai-lhes o mundo em cima, como acontece com a questão da pêra abacate. A pêra abacate gasta tanta água como a laranja, mas falar nesta cultura - que não leva praticamente agroquímicos - é falar no diabo. Mas se vierem do hemisfério sul já não há problema nenhum, todo o ambientalista come pêra abacate. Assim não vamos a lado nenhum".

Portugal é o quarto maior produtor de laranja da União Europeia, depois da Espanha (56%), da Itália (24%) e da Grécia (14%). Em 2021, de acordo com a Agroges - Sociedade de Estudos e Projetos, o paºis tinha 17.252 hectares de laranjeiras e uma produção de 363,9 mil toneladas - por um preço médio de 0,64€/Kg.

Em 2020, últimos dados disponíveis, havia 991 empresas de citrinos (laranja, limão e tangerina), 50 organizações de produtores certificadas e o setor gerava um volume de negócios de 72 milhões de euros.