Os resultados da noite passada mostram um país desligado de si. Entre a margem à beira do oceano e os terrenos do interior, há uma dissonância que ainda não foi entendida nos corredores de uma Lisboa balofa, sentada com os pés no Tejo, a ver no rio um espelho para se encontrar uma e outra vez.
Esta eleição presidencial foi feita partindo de um estranho pressuposto: o primeiro lugar estava seguro. Marcelo Rebelo de Sousa venceu (até com mais alguns votos do que em 2016 — ainda que, com menos candidatos, isso fosse esperado) sem qualquer margem para dúvidas. Destacado nas contas, o chefe de Estado mantém assim uma tradição da democracia portuguesa: reconduzir presidentes.
Eanes esteve dez anos no cargo. Soares outros dez. Sampaio mais uma década. Cavaco Silva outra. E Marcelo começa, em março, a segunda metade da sua era em Belém.
Idiossincrático, Marcelo Rebelo de Sousa trouxe à presidência uma aproximação às pessoas, uma estrutura leve, sem os pesos institucionais que assustam. Nada disso. Marcelo parece um homem como nós, ainda que tenha hábitos pouco nossos. Mergulha cedo no mar, dorme pouco, lê muito. Mas também abre a porta de casa e mostra-se cidadão: pede um bife em take-away, que isso de esperar para se saber se vai ser o comandante supremo das Forças Armadas de um país não deixa paciência para cozinhar.
O que esperar agora? Se há um ano alguém dissesse que hoje o tempo era este, ninguém acreditaria. Assim, não vale a pena conjurar o futuro do presidente reeleito. No tempo de agora, ainda no cumprimento do mandato de 2016, Marcelo tem de fazer frente a uma das mais graves crises que Portugal atravessou.
Quando assumiu o cargo, o presidente chegou numa confluência de felicidades. O governo (da primeira legislatura de António Costa) proclamou o fim da austeridade e Mário Centeno era o Cristiano Ronaldo da Europa, à frente do Eurogrupo. O outro Cristiano era campeão em França, trazendo o título europeu para Portugal (título que se vai mantendo, enquanto a pandemia adia novo campeonato). António Guterres era o secretário-geral do mundo e, rasgando o enguiço, com o Papa em Fátima, Salvador Sobral finalmente ganhava a Eurovisão.
Foram meses de graça, de um país que acreditava finalmente ter um lugar no mundo. De repente, não era só o Aeroporto Francisco Sá Carneiro a ganhar prémios: o país todo era trendy, andava na moda, nas bocas do mundo. As praias cheias, as praças completas, os apartamentos todos fracionados e ocupados por good mornings, guten Tags e bonjours.
Depois, num verão, o Portugal que não aparece ao lado do Chiado nas brochuras ardeu todo de alto a baixo. Morreu mais de uma centena de pessoas — queimadas, sufocadas — e tantas outras perderam tudo o que lhes era a vida.
Marcelo Rebelo de Sousa encabeçou aí o luto do país. Fez-se senador dos esquecidos, foi conhecê-los e procurar-lhes a voz, enquanto os media se divertiam antes com as “marcelices”, com o “Marcelo a ser Marcelo”, levando os holofotes de terra em terra, sem iluminar outro rosto que não o do que toda a gente já conhece e já ouve muito antes do dia em que foi eleito.
Emídio Rangel, histórico da comunicação social, foi ouvido nos anos 1990 a dizer: “uma estação que tem 50% de share vende tudo, até o presidente da República. Vende aos bocados: um bocado de Presidente da República para aqui, outro bocado para acoli, outro bocado para acolá, vende tudo! Vende sabonetes!”
Era então director-geral da SIC, o superpoderoso canal de televisão da altura. Estas palavras foram ouvidas pelo documentário “Esta Televisão é a Vossa”, realizado por Mariana Otero para o canal francês ARTE e emitido também pela SIC, num manto de grande polémica com uma entrevista de Baptista Bastos.
Se em 2016 a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa foi a defesa da dissertação dos sabonetes presidenciais, o resultado deste domingo é a tese completa. A televisão — os media em geral — tornaram o candidato do terceiro lugar no vencedor, chegando ao cúmulo de cortar a conferência de imprensa da mulher mais votada de sempre para ouvir os gritos da suposta vitória do candidato Ventura.
A televisão vende presidentes e vende fenómenos. André Ventura nasceu à frente das câmaras e são elas, com os seus holofotes cintilantes, que lhe iluminam o caminho. Mesmo tendo os jornalistas, reunidos em congresso, em 2017, decidido lutar contra as conferências de imprensa sem direito a questões, não houve problema em abandonar as perguntas a Ana Gomes para apresentar a candidatura que, ao longo da campanha, ameaçou, insultou, denegriu e atacou os jornalistas.
As luzes, uma vez mais, viraram-se para o lado errado da questão. O país que ardeu foi o país que votou em André Ventura, clamando por soluções. Beja, literalmente o maior distrito do país, com 11,1% do território continental e mais de 12 mil quilómetros quadrados, tem um aeroporto gigante vazio, mas não tem sequer uma ligação decente a Lisboa — ou a Faro, mesmo ali ao lado.
Há de haver fascistas. E Portugal tem, sim, um problema com o racismo e um passado colonial mal resolvido. Mas os problemas de que André Ventura fala existem também. Nós, do litoral infinito, andamos aqui a falar uns com os outros, a falar uns para os outros, a pagar uns aos outros para gastar o dinheiro uns dos outros. Às vezes vamos à província, vamos às beiras buscar cerejas, a Trás-os-Montes comer alheira, ao Alentejo ver sobreiros. Porque é só isso que lá há, dizem-nos as televisões e as suas bonitas novelas, onde o país todo fala com o sotaque seco de Lisboa; ou os noticiários, que só vão lá para trás dos montes quando morre um certo número de gente.
Uma tempestade em Lisboa chama-se quarta-feira nos Açores. Uma greve no Porto chama-se serviços públicos habituais em Portalegre.
Marcelo Rebelo de Sousa, que votou em Celorico, recebeu inequivocamente um novo mandato. Com o suposto dinheiro a rodos que há de chover de Bruxelas, talvez valha a pena olhar para fora da bacia do Tejo e escutar o grito do resto do país. Portugal não quer ser a paisagem que se vê de Lisboa.
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