“Só agora que se perdeu é que parece que surgiu uma consciência nacional da perda; aquilo que não foi cuidado, não foi prezado enquanto existia, agora é lamentado nesse momento de perda”, atira Otávio Velho, professor emérito do Museu Nacional e presidente de honra da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).
O cenário tem pouco de animador. Do ar, das janelas, veem-se apenas as entranhas carbonizadas de um importante pedaço da história da humanidade. A culpa, diz quem trabalhava de perto, é da incúria, do descaso a que ficou deixado o antigo paço imperial, virado museu que contava a história da natureza e dos homens — do Brasil, de Portugal, mas também do mundo.
“Havia um problema crónico de falta de verbas”, diz o antropólogo brasileiro. “Isso é um problema geral dos museus no Brasil e alcançou o nosso com muita agudeza”.
O “nosso museu” é o Museu Nacional do Brasil, o maior na área da História Natural e Antropologia da América Latina, com um espólio de vinte milhões de peças, cujas coleções começaram a ser reunidas ainda pelos monarcas portugueses, que no século XIX se mudaram para o Brasil em fuga aos franceses.
“Este descuido com o património é muito endémico aqui entre nós”, diz Otávio Velho. “E o Museu, que era o maior museu, evidentemente o que daria mais trabalho para ser bem cuidado, foi muito sacrificado por isso tudo”, lamenta o antropólogo.
O descaso não é de agora. Já em 1901 faltava dinheiro para o Museu Nacional, que na altura ainda estava há menos de uma década no Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista. “A riquíssima secção de mineralogia muito tem sofrido”, escrevia o ‘Correio da Manhã’ brasileiro sobre a situação do Museu Nacional, em 20 de outubro de 1901, hoje citado por Bruno Boghossian, na ‘Folha de S. Paulo’, enumerando já então críticas à falta de manutenção ou às opções feitas na gestão do lugar e do espólio.
“Há uma certa preferência dos políticos por inaugurar coisas novas, do que cuidar do que já temos”, diz hoje Otávio Velho, em conversa por telefone.
O descaso é “um problema sobretudo dos sucessivos governos, mas especialmente deste último, que agravou uma tendência que já havia”, acusa. “Por outro lado, também não se pode deixar de reconhecer que há uma falta de cuidado da parte da própria sociedade civil, não é? Os empresários brasileiros não têm o hábito de doações, de preocupação com os bens do património brasileiro”.
“Acho que isso aí também é horrível; as universidades também não recebem doações, não recebem atenção dos nossos empresários e das fundações particulares. Então, há também uma responsabilidade, eu acho, do empresariado brasileiro — mas sobretudo dos governos e sobretudo deste governo atual” — “este governo golpista, depois do impeachment da presidente Dilma”.
A destituição da presidente Dilma é uma ferida pouco sarada nesta discussão, que já ia exaltada pelas eleições de outubro deste ano. Reavivada pelo fulgor das chamas, a luta trava-se agora entre duas visões distintas de um Brasil futuro e de um Brasil passado. E a posição oficial do que é o Brasil passado levou carimbo presidencial quando, em 2016, o financiamento de áreas como a educação, saúde e cultura foi limitado.
Em causa, o chamado PEC do Teto, de 2016, que travou os gastos do governo federal por duas décadas. “Por causa desse decreto, em que congelaram todas as verbas públicas, toda essa parte da educação, ciência e tecnologia ficou muito sacrificada. Então, as verbas do Museu, que já eram poucas, ficaram muito mais reduzidas”, explica Otávio Velho. “E a burocracia também, dificultando as liberações de verbas”.
O governo defende-se e aponta o dedo à gestão do museu. É que o Museu Nacional não estava diretamente debaixo da alçada do governo federal, liderado por Michel Temer. Antes, era (é) gerido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ainda não há certezas sobre o que esteve por trás do incêndio. Vão sendo avançadas teorias. Sérgio Sá Leitão, ministro da Cultura brasileiro, fala na queda de um balão de papel a ar quente (desses que se acendem no São João), ou num curto-circuito.
“Uma das coisas que estava programada era exatamente uma reforma de toda a parte elétrica do museu, toda a parte de prevenção de incêndio, e isso tudo não chegou a tempo, porque antes disso, o Museu foi sacrificado realmente”, lembra Otávio. “É uma lástima, é uma perda realmente lastimável”, insiste o irmão do conhecido antropólogo do Museu Nacional, Gilberto Velho.
“A minha única esperança é que este sacrifício do Museu possa de alguma maneira reverter para uma tomada de consciência profunda a respeito da importância de cuidarmos da nossa história, e de que os governos sejam realmente mais competentes e mais honestos no cuidado com a causa pública.”
Porque o mais, já não regressa. “Existem perdas que não é possível recuperar, perdas terríveis”, diz Otávio Velho. “Eu sou antropólogo, o material indígena em geral é muito delicado, então tudo o que envolve madeira, que envolve penas, acho que se perdeu. E isso é uma perda inclusive para as próprias sociedades indígenas, que hoje estão cada vez mais ciosas de recuperação das suas tradições e que o museu poderia servir justamente de referência para os próprios índios nesse trabalho de recuperação das suas tradições e se perdeu. Isso aí é impossível se recuperar”.
Enquanto as contas oficias não chegam, prevê-se que se tenham perdido registos únicos de culturas, músicas e línguas de tribos já extintas da América do Sul.
“Não sou especialista em museologia, mas o que eu já ouço falar é que através de novos recursos tecnológicos se poderá de alguma maneira tentar resgatar a memória disso que se perdeu, embora isso evidentemente fique muito aquém do que nós tínhamos antes. É possível que isso crie uma nova atitude de veneração diante desses bens, tão preciosos, que tenha algum efeito para as novas gerações”, diz Otávio.
“As duas palavras que me ocorrem mais, são quase sinónimas e têm contornos diferentes: incomensurável e incalculável, embora às vezes diga também infinito”, diz Cristiana Bastos, antropóloga do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), que passou pelo Museu Nacional durante o doutoramento.
“Como é que uma instituição desta magnitude ficou tão vulnerável e foi consumida?”, questiona a investigadora portuguesa. A imprensa brasileira dá conta de congelamentos, fundos que não chegaram a ser aplicados (quer há vinte, quer há quatro anos, ainda com o anterior governo) e de uma redução gradual do orçamento do museu.
Agora, há que tirar lições, afirma Cristiana: “é um alerta para a vulnerabilidade das instituições e para a prática de uma cultura de prevenção e de atenção ao risco sistemática. Não se admite, como em mais lugares há, haver vulnerabilidade a fogos quando se pode ter um sistema de prevenção em ação, quando se podem ter modos de mitigar os efeitos de azares, acasos… É com grande tristeza ver que isto acontece por um grande descaso, falta de atenção e uma quase matança da ciência e do que ela representa por parte de poderes que são cada vez mais obscurantistas, que infelizmente estão a dominar grandes partes do mundo”.
Taxativa, para a investigadora, “o ideal era que o governo caísse”, mas não tem fé nas palavras: “não acredito que uma instituição cultural como esta, por mais indignados que estejamos com isto, tenha capacidade para fazer cair o que muitos de nós, muitos colegas brasileiros, designam por governo golpista — desculpe, isto é com franqueza aquilo que eu penso”, confessa, reconhecendo, porém, que “não é de agora o descaso e a falta de apoio ao museu, vários foram os governos cúmplices nessa falta de apoio”.
Mas reforça as acusações ao presidente Temer: “este governo em particular, tem sido da maior desatenção às instituições de conhecimento. No Rio de Janeiro está a ser literalmente desmantelada uma instituição que era de grande prestígio, de grande qualidade e que servia um larguíssimo número de estudantes com um ensino de qualidade, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ, que nos últimos meses tem estado em desmantelamento total”, denuncia.
“Há uma prática, entre o descaso e o propósito de diminuir a importância das instituições que libertam o conhecimento, que produzem mais emancipação, mais perceção de nós, mais conhecimento do mundo, cujas políticas desmanteladoras infelizmente estão à vista”.
“O património não é só um conjunto de coisas bonitas que estão ali guardadas a que se tem de tirar o pó e guardar em vitrines; são peças fundamentais, que ligam o passado ao futuro, através do presente, e que no presente temos a responsabilidade de aprender maximamente com elas para melhorarmos as nossas perspetivas de vida em conjunto como humanidade, como convidados do planeta Terra que estão aqui durante um período, enquanto não o destruirmos. Pode ser que seja o momento para as instituições internacionais fazerem pressão sobre o Brasil para que os seus imensos recursos — o Brasil é um país riquíssimo, tem a renda super mal distribuída — sejam usados na cultura e no conhecimento”, apela a investigadora portuguesa.
Um manifesto conjunto da Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira para o Progresso e Ciência, assinado por trinta entidades, apela primeiro à intervenção da própria sociedade brasileira. Pedem que participe na “defesa do património cultural e científico da nação brasileira”. Mas as perdas do Museu Nacional vão muito além das fronteiras do Brasil ou do Portugal que o colonizou.
“A morte do Museu Nacional tem um significado simbólico que vai além dessa imensa perda para a cultura brasileira. Pois outros ativos também estão perecendo: com muita preocupação acompanhamos a desindustrialização do país, a precariedade da educação científica no Ensino Médio, o sucateamento de laboratórios de pesquisa de universidades e de outras instituições de ciência e tecnologia e o êxodo de jovens pesquisadores, fruto de uma política económica que ignora o papel essencial da ciência, da educação, da cultura e da inovação no desenvolvimento de um país. Que trata recursos para ciência e tecnologia como gastos, e não como investimentos com alto poder de retorno, contribuindo para aumentar o PIB e o protagonismo dos países no mundo contemporâneo”, denuncia o manifesto divulgado no rescaldo do incêndio.
“As chamas que devoraram o Museu Nacional enviaram uma mensagem de alerta para a sociedade brasileira. Para salvar o património histórico, cultural e científico do país são necessárias medidas concretas e o estabelecimento efetivo de políticas públicas, como aquelas propostas no Livro Azul da IV Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. É fundamental que sejam tomadas ações adequadas e urgentes para salvar a ciência, a tecnologia e a inovação no País. Urge impedir que essas chamas se alastrem e consumam o futuro do Brasil”.
Mas as perdas vão além do país sul-americano. "Nós, humanidade, perdemos”, diz Cristiana Bastos. “Tenho ouvido muita gente falar do património português —, é da humanidade, é um património geral, de todos e incalculável. Tinha muitas peças extraordinárias, únicas, e não há como tê-las outra vez”, lamenta.
“As peças valiam pelo que elas valem esteticamente, pelo seu valor histórico, pelas histórias que estão agarradas a elas, mas também pelo que nos podem ensinar, podemos ir muito mais longe ao entrar em contacto com as peças, se forem sujeitas a uma boa curadoria — e muito estava por fazer”, diz Cristiana Bastos.
“O museu deve ser um lugar não só para colecionar e armazenar coisas, mas um lugar onde estão disponíveis algumas coisas — objetos, histórias, memórias, legados —, que nos permitem chegar a um conhecimento mais amplo e mais complexo, sobre nós, no conjunto, a humanidade, o espaço, até”.
“O seu alcance era tal que tinha desde coleções ímpares de povos indígenas que já não existem, como tinha coleções de história natural, de botânica, fauna, e mineral, até tinha um meteorito”. “Há uma perda de património incalculável em muitas frentes”, lamenta a investigadora portuguesa.
“Como quando morre um grande bailarino ou uma pessoa da música extraordinária, penso no que não se compôs, no que ficou por fazer por ter sido levado antes do que tinha para dar. Isso é a primeira coisa que me ocorre”, diz Cristiana Bastos.
“Espero que isso seja um impacto e tenha importância. E que não seja também instrumentalizado politicamente, eu já estou vendo que os políticos agora estão num jogo de acusações mútuas. Não faz sentido isso. Todos os partidos que passaram pelo governo são corresponsáveis pelo que aconteceu, embora, evidentemente, este atual governo seja o maior responsável — mas não é o único”, acusa Otávio Velho.
“Acho que para quem é do museu, para quem tem ligação com o museu, o nosso interesse maior é tentar reinventar o museu e não que ele seja utilizado e instrumentalizado politicamente”, acrescenta.
“Sabemos que o fogo é um meio por excelência de oferenda sacrificial, pelo qual se pode santificar o objeto sacrificado fazendo sua fumaça chegar ao destinatário”, escreveram esta terça-feira no ‘Jornal do Brasil' Lindoberg Campos e André Magnelli.
“Infelizmente”, prosseguem, “estamos privados de crer, em má consciência, que a consumação do Museu Nacional tenha sido um dispêndio sagrado. Mas, diante da vertigem da falta de sentido, podemos buscar refúgio em uma fábula de formação nacional: que creiamos que o museu se pôs a autoimolar-se para nos despertar do sono de nossa desmemória, orientando-nos a uma reconciliação consciente com nossa história e com um projeto de país. Desesperadamente, creiamos que aí está o bom fim de nosso museu, feito como sinal de alerta para uma autêntica Independência nacional.”
E a imolação vem no princípio de uma campanha eleitoral que vinca o confronto entre duas ideias diferentes do que é o Brasil e a respetiva história. Um dos lados valoriza cada marca de diversidade que cabia entre as cerca de vinte mil peças do museu; outro, garante que o que vale é a homogeneidade de tudo.
É o que explica Susana de Matos Viegas, antropóloga também do do ICS-UL, que passou pelo Museu Nacional. Para a investigadora portuguesa, o Brasil atravessa um momento de "divisão brutal" do ponto de vista político, com dois lados “divididos, até, no que diz respeito à história do país: de um lado, o representado pelo atual governo de Michel Temer, há a ideia de que o Brasil deve ser pensado e visto como um país mestiço, que a história da sua diversidade deve ser apagada e não deve ser considerada central na conceção do que é o Brasil; e a visão oposta, que cada vez mais quer que sejam reconhecidas as diferenças e que elas sejam respeitadas, seja do ponto de vista social, diferenças de género, seja do ponto de vista sociocultural, dos índios, das quilombolas, tudo o que tem a ver com a diversidade é constitutivo da vida e da história do Brasil e existe hoje e deve ser reconhecido".
O fogo vem, assim, “num momento em que o país está dividido sobre a própria conceção da sua história. São publicados livros inteiros a refazer a visão da história, com base na ideia de que esse espólio que dá conta da diversidade não é relevante — não há nenhuma razão para imaginar que tenha havido alguma coisa orquestrada, mas o resultado disto, inevitavelmente vai ter consequências políticas gravíssimas, porque no fundo está a contribuir para uma das histórias que é defendida e que não valoriza tanto este legado cultural e histórico”.
"Aquilo era um espólio da história de um Brasil diverso, de um Brasil que nasceu de uma complexidade de situações de diversidade social e cultural e que continuou neste trajeto”, diz a investigadora. "Não havia ali um departamento de história, mas de antropologia, de paleontologia, de zoologia... Ou seja, precisamente aquilo que permite manter essa memória viva, como parte da história contemporânea e não como uma coisa de um passado remoto", acrescenta.
Ao Brasil, mas também ao mundo, resta agora esperar que o sacrifício do Museu Nacional tenha o poder de obrigar à reflexão. Perceber a importância do património, não apenas no seu valor estético ou histórico, mas também no legado a haver: no conhecimento que aqueles objetos ainda permitem retirar — seja para perceber o presente, ou para escrever o futuro.
“Impõe-se um esforço concentrado para reconstruir o Museu Nacional. O objetivo não será certamente a impossível reconstrução das coleções perdidas ou dos irrecuperáveis tesouros históricos e científicos que têm alimentado a pesquisa nessa instituição. Será, sim, a reconstrução de uma ideia que o fogo não devora, de um Museu que sirva de referência para as futuras gerações, repetindo a fórmula que esteve presente na sua história, de um acervo histórico e científico apoiado na pesquisa científica, reunindo assim indissoluvelmente a memória e a investigação, o passado e o futuro”, termina o manifesto dos cientistas brasileiros.
A metáfora do palácio imperial que arde quando a política está em polvorosa é aqui substituída pela metáfora da história que o lume leva quando as comunidades andam à procura de saber quem são, guiadas por visões diversas, também opostas, disso que houve — e cujas provas estão agora perdidas, entre as cinzas e os escombros de um museu, de uma escola, de uma cidade e de um país.
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