“Riscos de catástrofes — incêndios, terramotos, inundações — existem sempre e, apesar de ainda não conhecermos com detalhe o que se perdeu, esta é já uma das maiores tragédias da história dos museus a nível mundial”, disse ao SAPO24 Marta C. Lourenço, subdiretora do Museu Nacional de História Natural e de Ciência (MUHNAC), da Universidade Lisboa.

“Nenhum museu consegue recuperar de uma tragédia destas — o património é insubstituível”, acrescenta.

“Os riscos podem e devem ser minimizados. Dada a importância do nosso património, esta tem sido uma prioridade há vários anos quer do MUHNAC quer da Universidade de Lisboa. O nosso plano de segurança foi integral e rigorosamente atualizado em 2016” e inclui múltiplos dispositivos de segurança, como “detetores, portas corta-fogo onde são necessárias, saídas de emergência”, e outros.

“O MUHNAC tem relações de trabalho com o Museu Nacional e temos recebido ocasionalmente investigadores e estudantes de pós-graduação vindos de lá”, destaca Marta C. Lourenço.

“O MUHNAC tem estado a acompanhar muito de perto o incêndio que destruiu esta noite parte do magnífico acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro. A ligação do Museu Nacional a Portugal é histórica, por ter sido criado em 1818 por D. João VI e por ter sido um palácio que originalmente albergou a família real”, explica a subdiretora do museu português.

“O MUHNAC lamenta profundamente e expressa a sua completa solidariedade com o diretor e todos os funcionários e colaboradores do Museu Nacional”. Alexander Kellner, o diretor do Museu Nacional no Rio de Janeiro, afirmou esta segunda-feira que ainda não foi possível avaliar a totalidade dos danos no acervo provocados pelo incêndio, mas já apelou à mobilização da sociedade para a recuperação.

“Mas mais importante ainda, o Museu Nacional alberga uma das maiores coleções do mundo — cerca de 20 milhões de exemplares — cobrindo as áreas da história natural, arqueologia, paleontologia antropologia, arquivos e bibliotecas históricas”.

Recorde-se que a 18 de março de 1978, parte do museu do edifício na Escola Politécnica também ardeu.

O museu, na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, tem hoje um espólio que passa os três milhões de exemplares, “entre espécimes de história natural, instrumentos científicos históricos, manuscritos, desenhos e livros históricos”, conta a subdiretora.

O Museu Nacional do Rio de Janeiro era o maior museu de História Natural e Antropologia da América Latina e o edifício tinha sido residência da família Real e Imperial brasileira.

Entre os milhões de peças que retratavam os 200 anos de história brasileira estavam igualmente um diário da Imperatriz Leopoldina e um trono do Reino de Daomé, dado em 1811 ao príncipe regente D. João VI.

Nas coleções de Etnologia estavam expostos objetos que mostravam a riqueza da cultura indígena, cultura afro-brasileira, culturas do Pacífico.

Segundo a edição brasileira do 'El País', o acervo tinha ainda o maior e mais importante acervo indígena e uma das bibliotecas de antropologia mais ricas do Brasil.

A instituição, ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), era alvo de cortes orçamentários há pelo menos três anos.

Os alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da universidade chegaram mesmo a criar ‘memes’ (imagens ou vídeos que se espalham de forma viral) em que mostravam fósseis à espera de verba, ironizando os cortes.

Em 2015, o museu chegou a ficar fechado por dez dias após uma greve de funcionários da limpeza, que reclamavam salários atrasados.

Nas redes sociais, investigadores, alunos e professores brasileiros partilham depoimentos, lamentando o ocorrido e atribuindo a tragédia aos cortes orçamentais dos últimos anos.

O vice-diretor do Museu Nacional considerou o incêndio uma "catástrofe insuportável".

"O arquivo de 200 anos virou pó. (…) São 200 anos de memória, ciência, cultura e educação, tudo transformado em fumo por falta de suporte e consciência da classe política brasileira”, afirmou o responsável, sublinhando: “O meu sentimento é de imensa raiva por tudo o que lutamos e que foi perdido na vala comum".

Segundo disse, no aniversário de 200 anos da instituição nenhum ministro de Estado aceitou participar da comemoração: "É uma pequena mostra do descaso", sublinhou.

O responsável adiantou ainda que a instituição estava aprestes a fechar uma negociação com o Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES) que incluía um projeto de prevenção de incêndios.

Antes destas declarações, o Ministério da Educação brasileiro já tinha lamentado as consequências do incêndio no Museu Nacional, sublinhando que serão feitos todos os esforços para auxiliar a Universidade Federal do Rio de Janeiro, que geria o museu, a recuperar o património histórico.

Segundo a informação disponibilizada no site do museu, a atividade de memória da instituição estava representada sob a forma de acervo bibliográfico, científico e documental.

Do acervo bibliográfico faziam parte livros, folhetos, obras raras, mapas, teses e dissertações pertencentes à Biblioteca do Museu Nacional e da Biblioteca Francisca Keller, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), e do acervo científico diversos exemplares representativos da biodiversidade, fósseis, objetos etnográficos e arqueológicos, pertencentes aos Departamentos de Antropologia, de Botânica, de Entomologia, de Geologia e Paleontologia, de Invertebrados e de Vertebrados.

Já o acervo documental era constituído por material de arquivo detido pela Seção de Memória e Arquivo (SEMEAR) e pelo Centro de Documentação em Línguas Indígenas (CELIN).

O Presidente do Brasil, Michel Temer, reagiu, em comunicado, considerando a perda "incalculável".

"Incalculável para o Brasil a perda do acervo do Museu Nacional. Hoje é um dia trágico para a museologia do nosso país. Foram perdidos duzentos anos de trabalho, pesquisa e conhecimento. O valor para a nossa história não se pode mensurar, pelos danos ao prédio que abrigou a família real durante o Império. É um dia triste para todos brasileiros", afirmou.