Na noite de 12 de maio de 1982 , o Papa João Paulo II (1920-2005) subia a escadaria do Santuário de Fátima — onde peregrinou para agradecer a Nossa Senhora por ter sido salvo do atentado, um ano antes, na Praça de São Pedro, em Roma — quando o padre espanhol Juan Fernández Krohn o tentou matar.
Passaram 40 anos deste episódio e Krohn falou à RTP sobre o sucedido, num documentário de Rita Marrafa de Carvalho e Miguel Teixeira, considerando que o Papa João Paulo II "foi uma espécie de estrela pop, e um exemplo sem comparação na história do 'Star Power'".
"Eu fui a única pessoa que colocou esse 'power', esse poder, em discussão, não é verdade? Portanto, alguma coisa eu consegui, mesmo sem matar, sem ferir", apontou.
De seguida, em conversa telefónica, disse responder àquilo que "o público quer saber". "Eu não me arrependo de nada, quer dizer, não voltaria a fazer o mesmo", garantiu Krohn.
"Aquilo não foi um crime, foi um ato violento, sim. Foi incorreto, politicamente incorreto e fora dos critérios ou normas da democracia e da ideologia em vigor, da democracia e dos direitos humanos", acrescentou.
Sobre a noite que passou na Polícia Judiciária, em Lisboa, Juan Fernández Krohn garantiu ser "a melhor noite de sono" que teve na sua vida. "Estava muito cansado e dormi como um bebé".
Quanto ao julgamento, o ex-padre diz que julga ter demonstrado que não é um criminoso como foi "tratado em Portugal e nos meios de comunicação social em Portugal, em Espanha e no mundo inteiro". Todavia, diz que o tratamento recebido nas instalações da polícia "podia ter sido muito pior" e que a PJ o respeitou durante o interrogatório.
"Não havia provas [da tentativa de atentado]. A única prova era a confissão da minha parte, e isso juridicamente causa problemas", evidenciou. "Os polícias que me seguiram não me viram a segurar a arma. Fui condenado porque confessei".
"Eu tinha uma etiqueta de direita, de extrema-direita, e naqueles anos era algo muito pesado. Com a Revolução de Abril, estávamos ainda mais próximos dela do que estamos agora e isso teve influência", frisou.
Referindo as "suspeitas de loucura" abordadas na altura, Krohn lembrou que esse facto "pesou muito" na sua vida, assim como os problemas judiciais que teve "como resultado da condenação em Portugal", tendo sido "submetido várias vezes a exames psiquiátricos e detenção num anexo psiquiátrico em condições muito duras".
"Devo dizer que, num dos exames que fizeram, declararam expressamente que, se bem me lembro das palavras exatas, eu não era um perigo público", afirmou.
Quanto ao tempo na prisão, em Vale de Judeus, o ex-padre diz que "foi um inferno horrível", mas não guarda rancores.
"Há portugueses que lá conheci, pessoas de honra e dignidade, e não guardo rancores contra Portugal ou os portugueses", disse. "Os piores problemas que lá tive foram com reclusos espanhóis":
Confessando que, até agora, não foi perdoado em Espanha, Juan Fernández Krohn garante que secularizar-se "teve muito mais peso do que ter querido matar o Papa mais santo do mundo".
No fim da conversa, o ex-padre afirma que teve "mulher e um filho", de quem se "orgulha muito". "Ele não me censura por nada, sabe tudo o que aconteceu, sobre o meu passado e quem eu sou", remata.
Um ataque que não chegou a acontecer
No livro "João Paulo II - Peregrino de Fátima", lê-se que eram 22:40 quando "um 'padre' (julgou-se que fosse um terrorista vestido de sacerdote!) tentou forçar a multidão e saltou para se lançar contra o Papa".
"Empunhava um sabre afiado, de 37 centímetros de comprimento (…) e pretendia trespassar o coração" do Papa, relata o livro, explicando que Krohn aderiu, em 1974, ao movimento tradicionalista e anticonciliar do arcebispo Marcel Lefebvre (que foi suspenso do exercício das ordens sacras por Paulo VI), mas "não tardou a radicalizar as suas posições".
Explicando como o atentado foi abortado por elementos da segurança, o autor, padre José Geraldes Freire, descreve que João Paulo II foi avisado de que "um sacerdote tinha caído doente", pelo que voltou para trás.
"Ao microfone, o reitor do Santuário de Fátima esclarece a multidão de que o Santo Padre desceu para ver um sacerdote que caiu na escada, mas vai regressar ao altar", adianta o livro.
Ao "padre doente", João Paulo II lançou um "gesto de bênção" e, quando fazia uma segunda bênção, aquele gritou, entre outras coisas, "Acuso-te de destruíres a Igreja!" e "Morra o Concílio Vaticano II".
Na altura com 32 anos, Krohn foi levado para as instalações da Polícia Judiciária, onde foi inquirido no dia seguinte, no primeiro de vários depoimentos, nomeadamente manuscritos (um deles contendo vários croquis da sua versão sobre o que se passou na noite de 12 de maio de 1982), que se foram juntando ao processo.
Nascido numa família católica tradicional de Madrid, Krohn formou-se em Economia e Direito, tendo aderido à igreja tradicional de Lefebvre (1905-1991), arcebispo francês contrário às reformas iniciadas com o Concílio Vaticano II (1962).
Nos depoimentos que constam do processo, Krohn disse ter-se inspirado no assassínio do Presidente do Egito Anwar Al Sadat (em 1981), por fundamentalistas islâmicos, querendo, com o seu gesto, “salvar a Igreja católica” da “demolição” anunciada por Paulo VI (1897-1978), na sequência das reformas iniciadas pelo seu antecessor, João XXIII (1881-1963), e prosseguidas por João Paulo II (1920-2005).
Queria "tornar-se um mártir, usando o argumento teológico de que, com isso, terminaria a agonia da Igreja”, lê-se no registo da inquirição, na qual declarou ser o “único responsável” e não ver nisso pecado nem crime, pois agia “em legítima defesa da Igreja”.
Para Krohn, a viagem de João Paulo II a Fátima (onde o Papa se deslocou para agradecer à Virgem o ter salvado de um atentado um ano antes, em Roma) visava “conquistar uma legitimidade (…) contestável em muitos aspetos”.
No interrogatório realizado no dia 14 de maio de 1982, no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, assumiu que queria transformar-se “no primeiro mártir da fé e da caridade”, considerando a sua atitude “legalmente justificada”.
No exame realizado ao sabre com o qual disse ser sua intenção atingir o coração do Papa, o Laboratório da Polícia Científica da PJ concluiu que tinha inscrito, em caracteres tailandeses, a data de 2445 do calendário budista (1902 da era cristã), data do fabrico pelas forças armadas do Sião, apresentando “apreciável poder de corte”.
Krohn acabou por ser acusado, em agosto de 1982, pelo Ministério Público, da prática dos crimes de homicídio voluntário qualificado, na forma tentada, na pessoa de um chefe de Estado, e de uso, detenção e porte de arma de crime proibida.
Em 7 de fevereiro de 1983, os peritos concluíram que Krohn era imputável e que o seu crime foi determinado “por uma evolução mística e política individual”.
A segunda audiência do julgamento realizou-se em 21 de abril de 1983, para alegações do Ministério Público e do advogado de defesa oficioso, José Maria Lopes Perdigão, tendo Krohn voltado a prestar depoimento.
O coletivo leu o acórdão em 2 de maio de 1983, condenando Krohn a uma pena única de seis anos e seis meses de prisão pela prática dos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, e de detenção e uso de arma proibida.
A reação de Krohn, que dirigiu ao coletivo as palavras “fantoches, assassinos, comunistas”, valeu-lhe novo processo sumário, no mesmo dia, numa sessão de que esteve ausente, devido ao seu comportamento “marcado por repetidas atitudes de perturbação dos trabalhos”.
Pelos três crimes de injúrias, foi condenado a mais três meses de prisão e um total de 90 dias de multa (ou 60 dias de prisão), levando a uma pena única de sete anos de prisão e 90 dias de multa (ou 60 dias de prisão).
Colocado no Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus, em Alcoentre, em 9 de agosto de 1983, Krohn obteve liberdade condicional em 21 de novembro de 1985, tendo obtido a liberdade definitiva, com expulsão do país, em 21 de maio de 1989. Depois disso, proibido de exercer o sacerdócio, Krohn fixou residência na Bélgica.
* Com Agência Lusa
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