Membro da Organização Comunista Marxista-Leninista Portuguesa (OCMLP), Manuela Juncal, hoje com 74 anos, foi também Manuela Gonçalves, ou Nelinha: no 3.º ano do curso, a estudante de Arquitetura do Porto de 22 anos optou por viver clandestina em Brito, Guimarães, fez-se tecedeira, “acartava água a cântaro”, lavava e esfregava como as outras, escondia livros e um copiador para fazer panfletos, distribuía-os na noite, cabelo embrulhado num chapéu, alta e magra, sujava a cara, “passava bem por rapaz”.

No fim do turno, Manuela “fazia as tarefas” domésticas e o companheiro, depois marido (Tito Agra Amorim), ajudava “no que podia”, mas não podia ser muito.

“Ele até queria lavar roupa, eu é que o impedi: Nós já não vamos à missa, tu pões-te a lavar roupa no tanque? Não pode ser. Ia ser o fim do mundo”, recorda Manuela, arquiteta reformada, em entrevista à Lusa no regresso a Brito, a propósito do 50.º aniversário da Revolução dos Cravos.

O casal punha então em prática a implantação defendida pela OCMLP, um “conceito que existiu em todo o lado em que havia maoistas” e que consistia na “deslocação de estudantes, filhos da burguesia, para os meios operários, para viver como os operários”: “A burguesia tem de conhecer os operários se quiser fazer parte da classe que, inevitavelmente, ia tomar o poder, de acordo com as ideias marxistas leninistas.”

Tito fazia o turno da noite, porque ganhava mais 25% de ordenado e “era onde estava a maioria dos homens” das fábricas têxteis, então a laborar “ininterruptamente, 24 horas por dia”.

Recebiam à quinzena e “o salário de ambos dava para ir de Brito a Guimarães, tomar um café, dar uma voltinha a pé e voltar de camioneta”, “já não dava para comer um bolo”.

Em casa, as refeições eram ovos, salsichas, atum, algum peixe, carne de porco, esporadicamente — não havia tantos talhos e, na verdade, “não havia era dinheiro”.

Tinham “batatas num terreno partilhado com a vizinha”, também cebolas e couve-galega. “Havia quem tivesse galinhas, mas eu era incapaz de as matar”, assegura Manuela.

“Lembro-me da filha mais velha da minha vizinha cortar batatas muito fininhas para cozerem depressa, para comermos depressa, porque vínhamos cheias de fome”, lembra.

Manuela jamais imaginou que “a casa tivesse tão más condições, que ia lavar roupa no inverno para o tanque coletivo, a água gelada”, ou tomar “algo parecido com um banho numa bacia grande com um regador”.

Filha de um casal de advogados, cresceu numa casa com duas empregadas, entre os 17 e os 18 anos estudou nos Estados Unidos da América. No regresso, começou “a asfixiar” num país onde “tudo era cinzento e proibido” e “tudo parecia mal”, até “uma menina sozinha num café”, ou “usar biquíni”.

“Fui multada em 25 tostões por dar um beijinho a um namorado num banco de jardim. E foi um beijinho tipo bicada, não foi um beijo à Hollywood. Queria ser arquiteta, mas não havia mulheres arquitetas. Nos livros, todos os heróis eram homens. A minha mãe, advogada, tinha de pedir uma licença especial ao meu pai para ir ao Corte Inglês a Vigo”, relata.

Manuela “não via futuro”, mobilizou-se com um “enorme sentimento de injustiça” por “uma vida que podia ser melhor” e contra a guerra colonial.

“O fascismo foi muita coisa: os presos e os mortos políticos, mas também coisas como só poderem votar os chefes de família. Se eu fosse casada, não votava. O meu primeiro filho nasceu em 1976 e a minha mãe disse logo «vocês têm de casar, senão o bebé vai ser filho de pai incógnito». Assim como a mulher que, estando casada, podia registar o filho como de mãe incógnita. Havia um cidadão, homem, que era o pai, mas a mãe não se sabia quem era. Filho de mãe incógnita”, escandaliza-se.

A jovem, procurada pela polícia política por “atividades estudantis”, sentiu-se “atraída pela possibilidade de encontrar um diálogo” com os operários, no sentido de os sensibilizar para a necessidade de acabar com aquela situação política”.

“Quase não aconteceu, eu trabalhava só com mulheres. Havia conceitos que, no mundo feminino, tinham outra leitura. Uma mulher livre era um insulto. Ainda hoje é”, diz.

No dia 25 de Abril de 1974, no café onde iam comer o caldo, na pausa do turno, a rádio dava ecos do que se passara em Lisboa. Nelinha sussurrou para uma colega: “Será que é a liberdade?”. Resposta? “Para que quero a liberdade? Sou uma mulher séria”.

Uma semana depois, no 1.º maio, Guimarães era “um mar de gente”, todos a gritar “Liberdade”, a colega da fábrica também. “Foi lindo de se ver, foi a coisa mais linda que vi na minha vida”.

Nelinha diz que aprendeu uma lição: “As pessoas não sabem bem o que está mal e um dia têm a oportunidade de o manifestar e manifestam, de um dia para o outro. As Revoluções não se encomendam. São quando os de cima já não podem e os de baixo já não aguentam.”

*Por Ana Cristina Gomes (texto) e José Coelho (fotografia), da agência Lusa