Com um sorriso de orelha a orelha, Ana abre a porta de sua casa, um T1 impecavelmente limpo e arrumado, e convida o SAPO24 a entrar. Ainda nem as apresentações tinham acabado e atira imediatamente "nunca pensei que ainda pudesse vir a ser tão feliz, isso é que é um facto." Depois disto resume a história num ápice, como se o processo de viver na iminência de ter que dormir na rua e encontrar casa tivesse sido tão simples como qualquer outro.

"Nunca pensei que ainda pudesse vir a ser tão feliz, isso é que é um facto."Ana, inquilina da Crescer

"Nós estamos aqui há dois anos as coisas têm corrido bem e, realmente, venho de um albergue que pronto... Tive que arranjar o mais rapidamente possível porque nunca vivi na rua. Mas estive num albergue da Câmara, aquilo era tudo muito complicado. E depois entrei naquela coisa de dizer "eu vou ter a minha casa". E, realmente, a Crescer ajudou-me imenso. Deram-nos uma casa, no albergue eu e o Miguel estávamos juntos, mas era mulheres para um lado, homens para o outro."

Quando pedimos mais pormenores e perguntamos porque ficou sem casa responde apensas, "fui toxicodependente. Está tudo dito. Não está?"

"Ao vir para aqui [para uma casa] consegui largar a metadona."Ana, inquilina da Crescer

Ana dá às pausas o tom de quem acha que qualquer um as pode completar. Como se a sua história fosse conhecida de todos e igual à de tantos outros que já foram toxicodependentes. Mas, no fundo, Ana sabe bem que a história é só dela e tem as suas nuances próprias, nem que seja pelos laivos de otimismo, tão típico seu, e que nunca a abandonou. Mesmo sendo Ana uma pessoa direta, ao longo da conversa foi necessário ir interpretando as pausas e pintando o cenário com aquilo que achava escusado contar.

Esteve dez anos a tomar metadona, só depois de um teto conseguiu deixar. Orgulhosa do feito, exibe-o "ao vir para aqui consegui largar a metadona. Não tem problema nenhum, pode escrever. Nestas coisas sou franca. Consegui-me livrar, acho que fui valente. O Miguel empurrou-me imenso porque ele também tomou metadona, mas livrou-se ainda antes de mim e eu fui ao fim de três meses de estar aqui que consegui largar."

"Estive dois anos num albergue e é muito complicado. É muito difícil. A maior parte são sem abrigo, toxicodependentes e vale tudo."Ana, inquilina da Crescer

Mas esclarece, "eu tive a força para largar a metadona, e o Miguel também, mas só quando vim para aqui. Foi depois da primeira semana aqui que comecei. Fiz logo uma diminuição e durante um mês fui diminuindo até acabar." Esta é a sua coroa de glória, e repete-o para que fique claro, "foi por minha iniciativa." Embora refira que foi "acompanhada pela psicóloga do albergue. Muito competente, acompanhou-me a mim e ao Miguel. Foi impecável."

O Miguel, que Ana vai referindo a cada minuto na conversa, é o seu namorado. "Conhecemo-nos num albergue e nunca mais nos largámos." O Miguel é mesmo a única parte positiva da vida em albergues, que Ana recorda com o alívio de quem já está longe. "Estive dois anos num albergue e é muito complicado. É muito difícil. A maior parte são sem abrigo, toxicodependentes e vale tudo. Compreende? É um bocado isso."

"Eu parecia uma miúda, desatei a chorar, foi assim que eu recebi a noticia [que passaria a ter uma casa]. Parecia uma madalena."Ana, inquilina da Crescer

"Compreende" é código do acordo tácito que Ana fez com o SAPO24. Cada vez que faz esta pergunta, percebe-se que é por não querer explorar mais o tema e aquela interrogação carrega todas as respostas necessárias. Continua, contando que quando chega ao albergue já não era toxicodependente, estava só a depender da metadona. As memórias de Ana começam aí, antes, no momento em que fica sem casa são difusas, o vício não lhe permitiu perceber o que estava a acontecer.

A Crescer aparece na sua vida na altura certa, a primeira vez foi no albergue "foram imensamente atenciosos". Passados uns dias um colega do albergue disse-lhe que ia à Crescer para uma entrevista porque lhe iam dar uma casa e convenceu-a a acompanhá-lo, "mas nesse momento não acreditei que fosse assim ter uma casa". É já na sede da organização que conhece Cristiana, a coordenadora do projeto, "e eu disse-lhe que estava desesperada principalmente pela idade que tinha (60 anos). Não tinha sítio para onde ir, e realmente o que eu pretendia era uma casa. E ela foi extraordinárias".

"Todos os problemas que eu tenho eu, geralmente, peço ajuda à Crescer e tenho tido uma panóplia de bem estar."Ana, inquilina da Crescer

A Crescer começou por ver como a podiam ajudar e "a perceber o que era importante", explica que a coordenadora passou o seu processo a uma assistente social, Cátia, "mas fui chata e teimosa, e duas vezes por semana telefonava à Cristiana".

"Consegui nunca ter vivido na rua durante o processo de receber uma casa, mas ainda estive dois anos à espera." O motor para a espera foi a fé cega no sucesso de um programa que não conhecia e na certeza que a sua vida dependia disso.  "Eu comecei a pensar "já tenho uma certa idade até gosto do Miguel, vou fazer de tudo para arranjar a casa com este projeto. E a primeira coisa que eu tratei foi de dizer a verdade: éramos um casal e que queríamos estar juntos. E estou muito satisfeita por ter feito isso."

"O nosso objetivo é autonomizar as pessoas. O nosso trabalho é fazer com que o nosso trabalho não seja mais necessário. Nesta ligação aos serviços sociais, aos apoios e aos serviços de saude."Ema Rosário, gestora de habitação

Ao longo dos dois anos a Cristiana ia sempre assegurando-lhe que não estava esquecida, e que podia estar descansada. Mas a espera começa a intensificar-se vai sendo necessário reunir mais forças para lidar com a ansiedade. E como é que se lida? "Com força. Eu pensei, "ou vou daqui para uma casa ou vou daqui para a quinta das tabuletas. E, por isso, o melhor é arranjar uma casa." E, realmente, lutei imenso. O miguel tem menos força. Aliás, ele tem uma personalidade um bocadinho difícil porque ele comigo é ótimo, mas não é um bom comunicador e eu sou. Os extremos tocam-se, não é?"

O otimismo de Ana provou ser realismo, lembra-se do dia em que Rafael, o seu primeiro técnico, a chamou para lhe dizer "a Senhora fique descansada que vai ter casa". A reação: "Eu parecia uma miúda, desatei a chorar, foi assim que eu recebi a noticia. Parecia uma madalena. E ele até me disse, "venha cá que eu dou-lhe um abraço" porque via as lagrimas a saltar. E eu só dizia "ai que vergonha, como é que eu paro isto?" E quanto mais pensava nisso mais chorava."

"Daqui não saio, nem pensar. Acho que os próximos anos da minha vida vão ser muito agradáveis, bons."Ana, inquilina na Crescer

Ainda se emociona a contar a história, e se hoje Miguel é pessimista, na altura não era diferente. "Fui logo ter com o Miguel e disse-lhe que íamos ter a casa. Ele, claro, disse "não faças contas, porque às vezes estas coisas..." E eu disse, "pois é, tu és um pessimista, mas eu sou uma optimista."

Agora, na sala de estar da sala que há dois passou a chamar de sua, olha em volta, feliz, e diz "gosto imenso da casa, é muito acolhedora e sinto-me aqui tão bem." E, depressa, associa aquele teto tudo o que de bom hoje tem. "O Miguel está a trabalhar, eu deixei a metadona e vou trabalhando. O dinheiro não é muito mas não me posso queixar."

"Há um estigma em relação a estas pessoas. Diz-se que as pessoas estão em situação de sem abrigo devido à doença mental, e aos comportamentos aditivos. Nós defendemos que estas pessoas só estão em situação de sem abrigo porque não têm acesso à habitação".Américo Nave, diretor executivo Crescer

O dinheiro vem do RSI que Ana vai completando com trabalho. "Agora ajudo uma senhora que faz limpezas, às vezes vou com ela e ajudo-a." Já o namorado, depois de uma formação, "começou a trabalhar para o refeitório da Crescer. Quiseram ficar com ele, no outro dia até me estava a contar que ouviu o chefe a dizer que ia ficar efectivo. Mas o Miguel disse-me logo "eu não sei..." Ó homem, não sejas assim, tens que ser optimista."

Com a Crescer fizeram um acordo, 30% dos rendimentos são pagos à organização, o remanescente das despesas a Crescer trata, " A Crescer deve pagar uma fortuna". Mas para Ana a casa, ter recuperado a vida, não tem preço. Dos tempos da droga as memórias são poucas, dos do albergue são más. Mesmo já não consumindo nessa altura não conseguia uma estrutura que lhe permitisse ter uma vida.

"Não tinha vontade, não tinha espírito, não tinha..." Deixa no ar como quem diz que no espaço se pode completar com o que se quiser e vai estar certo. Continua, "é muito pesado. Rouba-se tudo. Compreende? Tudo é difícil." E exemplifica, "tivemos imensos percevejos lá. Teve que ir uma equipa de desinfestação." E repete, "viver num albergue é muito difícil."

"O housing first vem demonstrar as respostas existentes não são adequadas às pessoas. Porque dá respostas individuais. É uma resposta por pessoa. E é uma pessoa, uma casa."Américo Nave, diretor executivo Crescer

Depois de ter um teto, Ana ganhou uma amiga. Olha para a gestora da casa, Ema Rosário, com um carinho quase maternal e, ao mesmo tempo, com o ar de quem está a receber o colo de uma mãe.  "Todos os problemas que eu tenho eu, geralmente, peço ajuda à Crescer e tenho tido uma panóplia de bem estar. Têm sido ótimos para mim, mas a mais competente é a Ema." E discorre em elogios,  "é tão organizada. Eu, às vezes, não sei da minha vida e ela sabe."

Ema, nesta história é o pivot. Explica que é a pessoa de referência dos inquilinos no projeto, e "depois é apoiá-los nestas ligações à comunidade no geral. Porque o nosso objetivo é autonomizar as pessoas. O nosso trabalho é fazer com que o nosso trabalho não seja mais necessário. Nesta ligação aos serviços sociais, aos apoios e aos serviços de saúde."

"A individualidade faz com que a pessoa se aproprie da própria casa. E quando são respostas partilhadas as regras não se aplicam individualmente a cada um. As pessoas não têm um sentimento de pertença e não têm também privacidade"Américo Nave, diretor executivo Crescer

Todo o projeto 'É uma casa' está assente em dar um apoio, mas Ema, lembra que "não é uma resposta habitacional. Portanto não se esgota no momento em que fazemos a entrada das pessoas. Inclusive, há uma regra do projeto, que a Ana já disse, que é o pagamento dos 30% de qualquer tipo de rendimento que tenham para comparticipar as despesas relacionadas com a casa, mas também das visitas domiciliarias. Uma vez por semana eu venho - num momento já marcado com os inquilinos, portanto nunca de surpresa -, fazer a visita e nessas visitas o nosso apoio é naquilo que as pessoas precisarem. Sejam as consultas, marcações, coisas que não se lembra bem, como há-de ir para determinado sítio... Eu estou aqui para a apoiar".

Ana confirma, "realmente ajuda-me em tudo". Lembra-se da primeira noite nesta casa vazia, mas tão cheia de promessas. "Não estava cá nada disto [referindo-se aos móveis]. Foi tão bom. Foi mesmo." Conta que os móveis e a decoração foram "arranjando aos bocadinhos", mas imediatamente diz "ainda não está".  Explica que faltam candeeiros e tapetes para as mesinhas de cabeceira. Não o diz, mas percebe-se que o resto, o que importa, agora tem tudo.

Ter uma casa ajudou-a a recuperar a relação com a família. "Já tinha contactado com eles, mas não era a mesma coisa. Vêm cá muito frequentemente. Mesmo para eles isto foi um passo gigante. Adoram vir cá ver-me e dar-me beijinhos e abraços. São todos muito carinhosos, a minha família é ótima".

"O direito à habitação confunde-se com o acesso a abrigos. Direito à habitação é direito à privacidade, a uma casa com segurança, com umas certas estruturas, uma certa localização."Américo Nave, diretor executivo da Crescer

A curto prazo, os planos para a consoada são ali, naquela mesa onde conversa com o SAPO24. O dia de Natal será em casa do pai, como tem acontecido nos últimos dois anos. A longo prazo, não tem dúvidas. "Daqui não saio, nem pensar. Acho que os próximos anos da minha vida vão ser muito agradáveis, bons."

Américo Nave, o homem por trás do projeto

Psicólogo, Américo Nave começou a trabalhar na área dos comportamentos adivitivos em 1982, no antigo Casal Ventoso, e "nessa altura, com outros dois psicólogos decidimos criar uma organização que trabalhasse com crianças e jovens. Mas mais na prevenção, para que as pessoas não chegassem aquela situação extrema de vulnerabilidade."

Explica que "abriu um concurso para equipas de rua, as pessoas mais velhas incentivaram-nos a que candidatássemos a Crescer. E nunca mais saímos desta área, de trabalhar com pessoas em situação de sem abrigo, de trabalhar com pessoas que consomem e, desde 2017, com refugiados e migrantes".

"É sempre o mesmo técnico a acompanhar a mesma pessoa. A equipa tem um telefone que está ligado 24h por dia, 365 dias por ano, portanto há sempre um técnico disponível para se dirigir à habitação e tentar resolver qualquer problema que esteja a acontecer."Américo Nave, diretor executivo da Crescer

No ano em que a Crescer faz 22 anos e o 'É uma casa, Lisboa Housing First' celebra o 10.º aniversário do projeto, a Crescer organizou o, 'É um congresso, Housing First & Harm Reduction', o SAPO24 falou com Américo Nave que, antes deste evento, foi às raízes destes 22 anos e olhou para o futuro.

O projeto 'É uma casa' surge "porque há um estigma em relação a estas pessoas. Porque se diz que as pessoas estão em situação de sem abrigo devido à doença mental, e aos comportamentos aditivos. Nós defendemos que estas pessoas só estão em situação de sem abrigo porque não têm acesso à habitação".  Américo continua, "se as pessoas tiverem uma habitação nós deixávamos de falar desta temática dos sem abrigo, independentemente de haver pessoas com problemas de saúde mental ou de comportamentos aditivos." Para o diretor executivo da Crescer isso diz respeito a uma segunda etapa, "que deve ser tratada e resolvida, mas dentro de uma casa. Com uma habitação digna e uma resposta efetiva à situação de sem abrigo."

"O que é importante é se as pessoas estabelecem relação com a vizinhança, se aderem às estruturas da comunidade, se estão inscritos no centro de saúde da área de residência, porque isso é que é a verdadeira inclusão na comunidade."Américo Nave, diretor executivo da Crescer

O estigma relacionado com os comportamentos aditivos, segundo Américo Nave, é muitas vezes uma desculpa para que não se olhe, e não se arranjem, soluções para as pessoas em situação de sem abrigo. "Pessoas com doença mental e comportamentos aditivos são transversais a toda a sociedade, não acontece só às pessoas em situação de sem abrigo." Admite que "a prevalência até possa ser maior, mas isso também é a origem da situação de sem abrigo. Eu costumo sempre dizer se eu ficasse amanhã em situação de sem abrigo dificilmente manteria a minha saude mente, e dificilmente não recorreria a consumo de substancias psicóticos para suportar a agressividade e a violência que é viver na rua."

A vida de rua, que conhece bem, ficou menos cinzenta em 2011 quando António Costa, então Presidente da Câmara de Lisboa, mudou o seu gabinete para a zona do Intendente. Nessa altura foi constituído um gabinete que reportava diretamente ao, autarca, e que reunia com todas as organizações que trabalhavam naquele território, e a Crescer era uma delas. "Portanto, começou a haver uma pressão de cima para baixo. No fundo, havia uma pressão muito grande porque havia pessoas que estavam numa situação de grande exclusão social e em situação de sem abrigo. E eram casos conhecidos não só pelo próprio Presidente, como por todos os comerciante, ou pelos Presidentes da Junta e pela Polícia."

Na altura acreditava-se que "não havia solução. As pessoas ou não aderiam às respostas que havia, ou entravam muitas vezes nas respostas e voltavam à situação de sem abrigo passado pouco tempo. E a certa altura esse gabinete reúne connosco, e questiona se tudo fosse possível, e se não houvesse limite, o que é que propunhamos para ajudar estas pessoas." A resposta? "O modelo de housing first (habitação primeiro, em tradução livre)." Que, no fundo, acredita que qualquer solução para ajudar pessoas em situação de sem abrigo, passa por lhes dar uma casa.

A aceitação não foi imediata, "ficaram muito na dúvida do que poderia ser estas pessoas viverem em casas. Se agora continua tanta gente com esta dúvida, imaginemos ha 10 anos."

A forma de provar que o projeto tinha pernas para andar foi "fazer um piloto com sete casas e testar o modelo. Porque, na realidade, este modelo já existe desde o inicio dos anos 90 nos EUA, e tem crescido muito no Canadá." Américo, diz que em ambos os casos os resultados têm sido muito bons, "principalmente com pessoas em situação de sem abrigo crónica. E, realmente, quando fizemos esse piloto, ali na Mouraria, abordámos as situações mais complexas. Os casos que estavam há mais anos em situação de sem abrigo e, logo aí, este modelo do housing first mostrou um grande sucesso na recuperação daquelas pessoas em situação de sem abrigo."

Até então, e ainda hoje, muitas vez as pessoas em situação de sem abrigo eram encaminhadas para abrigos ou albergues. Américo não tem dúvidas, "o housing first vem demonstrar que esse tipo de respostas não são adequadas às pessoas. Porque o housing first dá respostas individuais". E é aqui que vai pondo a tónica ao longo da conversa, "é uma resposta por pessoa. E é uma pessoa, uma casa. E são casas dispersas pela cidade portanto não temos um prédio onde colocamos todas as pessoas. Ora, isto tem duas regras muito importantes do projeto" explica, "eu posso ter 120 casas e atuar de 120 formas diferentes, ter 120 casas diferentes adequadas a cada pessoa porque naquela casa só vive uma pessoa."

"Muitas vezes vêem-se as pessoas em situação de sem abrigo, como se fossem cidadãos diferentes dos outros todos. É um cidadão que tem que ser tratado como qualquer outra pessoa."Américo Nave, diretor executivo da Crescer

E continua, "por outro lado, esta questão da individualidade faz com que a pessoa se aproprie da própria casa. Essa pessoa pode pendurar um quadro da família, pode mudar o sofá, pode desligar a televisão à hora que quer. Pode fazer o seu almoço e o seu jantar ao seu gosto. E quando são respostas partilhadas as regras não se aplicam individualmente a cada um. As pessoas não têm um sentimento de pertença e não têm também privacidade. No fundo as pessoas são obrigadas a fazer as suas atividades diárias junto de outras pessoas e isto confunde o direito à habitação com o acesso a abrigos. Direito à habitação é direito à privacidade, a uma casa com segurança, com umas certas estruturas, uma certa localização, tudo isto são factores que devemos ter em conta."

A conversa de Américo com o SAPO24 vai dando conteúdo e forma às vivências de Ana, como se um ciclo se fechasse. E permite perceber que a experiência de Ana não foi obra do acaso, é o resultado dos procedimentos da organização. Explica que "quando uma pessoa entra numa casa assina um protocolo com a Crescer, e tem que receber seis visitas por mês por parte do gestor da casa. É nessas visitas que o técnico pode fazer atividades - desde a limpeza da casa,  a ajudar a que a pessoa tome banho. isto para pessoas não estão autónomas. Ou até na ajuda de procura de trabalho, quando as pessoas têm essa autonomia, ou inscrevê-las no centro de emprego. Isso é uma obrigação dos técnicos. Quando uma pessoa entra na casa a primeira coisa que o técnico faz é inscrevê-la no centro de saude da área de residência. Ter uma reunião com a Junta de Freguesia e perceber se há atividades, se há respostas que vão ao encontro daquelas pessoas."

Todo este processo acontece, tal como Ema explicou para que "essa pessoa esteja na comunidade como qualquer outro cidadão, tantas vezes em situação de pobreza ou com necessidades de saúde, ou com necessidades sociais. Há também uma tentativa de por parte destes técnicos de que as pessoas tenham a acesso a qualquer tipo de apoio financeiro, de suporte social que possam ter. Desde o RSI a uma reforma, há pessoas que às vezes podem ter direito a uma reforma e nem sabiam. Ou até pessoas com capacidade de arranjar uma atividade laboral."

"Tentamos cada vez mais que estas pessoas exerçam o seu direito de voto, também para que os decisores políticos percebam que estas pessoas votam."Américo Nave, diretor executivo da Crescer

A presença da Crescer nunca se esgota, e é " sempre o mesmo técnico a acompanhar a mesma pessoa. A equipa tem um telefone que está ligado 24h por dia, 365 dias por ano, portanto há sempre um técnico disponível para se dirigir à habitação e tentar resolver qualquer problema que esteja a acontecer."

Resolução de problemas e quebrar estigmas estão entre as missões primordiais da Crescer. Mas a missão de Américo é acima de tudo que se perceba, de uma vez por todas, que o principal problema das pessoas sem abrigo é não terem um abrigo. "Muitas vezes dizemos que estas pessoas estão na rua porque têm doença mental, ou porque consomem droga. Este estigma é um mau diagnóstico, e esse mau diagnostico faz com que criemos respostas desadequadas às necessidades e às características destas pessoas."

Para Américo Nave é importante o  facto de as casas serem dispersas porque faz com que não se crie um novo estigma.  "evita-se o pensamento, de que naquele prédio vivem pessoas em situação de sem abrigo. As pessoas que estão nas casas não estão identificadas. São pessoas como quaisquer outras daquele prédio, ou daquela rua." E não tem dúvidas, "o que é importante é se as pessoas estabelecem relação com a vizinhança, se aderem às estruturas da comunidade, se estão inscritos no centro de saúde da área de residência, se frequentam o supermercado da área onde vivem, porque isso é que é a verdadeira inclusão na comunidade."

"O problema da habitação é um problema para todos os projetos, e para todas as pessoas. Aliás isso está a fazer com que muitas mais pessoas cheguem à situação de sem abrigo."Américo Nave, diretor executivo da Crescer

Reconhece que a experiência com as Juntas tem sido positiva, e que têm tentado disponibilizar também os seus serviços. Mas depressa, guina o ponto da conversa para lembrar que "também não podiam reagir de outra  maneira. Muitas vezes vêem-se as pessoas em situação de sem abrigo, como se fossem cidadãos diferentes dos outros todos. É um cidadão que está a viver naquela Freguesia e que tem que ser tratado como qualquer outra pessoa."

Fazer com que não sejam tratados - nem se sintam - como cidadãos de segunda é uma prioridade. E os meios para atingir esse fim são vários, "tentamos cada vez mais que estas pessoas exerçam o seu direito de voto". Aqui o modus operandi resulta em duas frentes, "também para que os decisores políticos percebam que estas pessoas votam. Porque estas pessoas estão tantas vezes tão excluídas, que os decisores políticos sabem que não é com o voto deles que vão ser eleitos e isso às vezes é um problema e nós tentamos sensibilizar estas pessoas para que votem. Seja em quem for, mas que exerçam esse direito."

A crise da habitação podia ter sido evitada, não fosse o estigma

A Crescer "trabalha no mercado imobiliário normal", Américo Nave explica "procuramos casas como se fosse para qualquer cidadão. Tanto nas imobiliárias, como no arrendamento privado." Mas reconhece que tem sido cada vez mais difícil por causa da especulação imobiliária. "Dificulta muito o projeto, mesmo muito." Conta que há cada vez mais senhorios a rescindir contratos, mas que os mesmos estão disponíveis para aumentar rendas e fazer de novo o contrato. "O problema da habitação é um problema para todos os projetos, e para todas as pessoas. Aliás isso está a fazer com que muitas mais pessoas cheguem à situação de sem abrigo."

"Se não fosse este estigma em relação às pessoas sem abrigo, e se nos tivéssemos centrado no que é o problema da habitação, há 30 anos, hoje não estaríamos como estamos."Américo Nave, diretor executivo da Crescer

Orgulhoso conta que "hoje em dia há senhorios que nos procuram para arrendar casas, porque nestes dez anos de atividade a relação com os senhorios tem sido muito boa." Explica que muitas vezes pagam rendas adiantadas "pagamos às vezes 6 meses ou um ano." Por outro lado, "se há um problema na casa, há uma equipa que vai gerir, o senhorio nem tem que se preocupar".

Abre um parênteses para uma reflexão e um regresso ao passado, arriscando que "se não fosse este estigma em relação às pessoas sem abrigo, e se nós tivéssemos centrado no que é o problema da habitação, se há 30 anos tivéssemos pensado que o problema destas pessoas era a habitação, eu arrisco-me a dizer que a sociedade hoje não estaria a viver aquilo que está. Porque no fundo aquelas pessoas já eram sintoma do problema da habitação, mas nunca quisemos olhar para elas como tal."

"Quase diariamente chegam-nos emails de pessoas que ainda têm casas e estão na iminência de ficar na situação de sem abrigo. Nós vemo-nos de mãos atadas e não temos respostas para estas situações, nunca tivemos tanta procura."Américo Nave, diretor executivo da Crescer

Nos últimos tempos a Crescer deixou de trabalhar apenas com pessoas em situação de sem abrigo, mas passou a trabalhar com pessoas que antecipam esse fado. "Quase diariamente chegam-nos emails de pessoas que ainda têm casas e estão na iminência de ficar na situação de sem abrigo. Nós vemo-nos de mãos atadas e não temos respostas para estas situações, nunca tivemos tanta procura. Sempre fomos uma organização de pessoas que sempre trabalhou na rua com pessoas que ja estão, muitas vezes, ha muitos anos em situação de sem abrigo e hoje em dia deparamo-nos com muitas pessoas a contactar a crescer que estão na iminência de ficar em situação de sem abrigo."

A experiência permite-lhe perceber o que tem corrido mal nestes mais de 30 anos de rua.  "Eu acho que em Portugal, nós não podemos estar a resolver este problema pela rua. Temos que ter uma política efetiva pela prevenção. Temos demonstrado que não é difícil que as pessoas saiam da situação de sem abrigo. Nestes 10 anos de projeto nunca encontrámos ninguém que não quisesse sair da rua. Dizer que as pessoas estão na rua porque querem é um mito."

Mas como em tudo, "para as pessoas saírem da rua é preciso que haja investimento das entidades públicas. E isso é possível, agora o que é complexo é que as pessoas não cheguem à rua, mas é aí que se tem que investir. O que está em causa são questões mais complexas, mais estruturais como a habitação, o emprego a pobreza, o estigma. Muitas vezes são falhas do suporte social, ou são questões individuais, ou têm problemas de saúde, ou são vítimas de violência, de agressividade (às vezes no seio familiar), e isto é que torna complexo o trabalho. Mas tem que se criar uma estrutura efetiva que tenha uma postura critica que crie conhecimento que tenha capacidade e autonomia de implementar esta política de intervenção é que seria importante."

"Não podemos estar a resolver este problema pela rua. Temos que ter uma política efetiva pela prevenção. Temos demonstrado que não é difícil que as pessoas saiam da situação de sem abrigo."Américo Nave, diretor executivo Crescer

Neste momento a Crescer é responsável pela a habitação de cerca de 140 pessoas, quando se questiona pelo número em lista de espera é perentório: "Estão todos os que estão em situação de sem abrigo." E isso deve-se não só à vontade de ajudar, como também porque as pessoas também cada vez mais, e bem, reclamam por uma habitação." Para Américo esta reivindicação é importantíssima, "porque às vezes quando o mesmo o próprio sistema é um sistema de assistencialismo, de caridade." O que faz com que se acredite que "qualquer ajuda é boa perante a extrema vulnerabilidade em que as pessoas se encontram. E isto é errado." E, segundo o diretor executivo, consegue mudar-se se as pessoas "reclamarem mais pela habitação, reclamarem mais pelos seus direitos e exigirem mais respostas. Isto estar a acontecer para mim significa que estas pessoas não estão tão vulneráveis quanto estão outras que aceitam qualquer resposta e se sujeitam a todo o tipo de atendimento."

Américo Nave usa como exemplo o facto de lhe terem perguntado o que achava de determinadas autarquias estarem a criar "umas casas em madeira, onde as pessoas dormem 24 horas, mas depois têm que sair". A resposta: "eu acho bem se o decisor político que decidiu implementar esse projecto também lá dormir. Porque a questão é que a habitação não é ter direito a um abrigo, é ter direito a uma casa com condições."  Continua a explicar, "e até ter uma casa digna e viver com a expectativa de que poderá estar naquela casa nos próximos anos. Não ter a expectativa de que em 24 horas vai ter que abandonar aquela habitação. Porque aquilo cria uma ansiedade e uma instabilidade naquelas pessoas que não deixa que as pessoas saiam daquela condição de vulnerabilidade. O sistema que ajuda estas pessoas cria muito esta ansiedade e instabilidade."

"Acredita-se que qualquer ajuda é boa, perante a extrema vulnerabilidade em que as pessoas se encontram. E isto é errado."Américo Nave, diretor executivo da Crescer

O trabalho de Américo Nave é acima de tudo um exercício diário de empatia, diz não gostar de traçar um perfil de pessoas em situação de sem abrigo porque "qualquer pessoa pode ficar em situação de sem abrigo". "Haverá de todo o tipo de pessoas, mas a maior parte vem de baixa escolaridade, vem muitas vezes de institucionalização durante o seu desenvolvimento, e muitas vezes em contacto com situações traumáticas ao longo da vida, violência e agressividade. Nós temos que compreender tudo isto quando estamos a trabalhar com as pessoas à nossa frente". E, mesmo que este não seja o caso alerta para o facto de "a situação de sem abrigo ser já por si só uma situação traumática, e isso tem consequências gravíssimas na saúde destas pessoas".

Nas ruas a Crescer trabalha, mas falta mais. Falta, por exemplo, que se produza literatura acerca deste tema. Se Américo concorda com a ideia de que falta um trabalho por parte da Academia, por outro diz que se "falta academia, também, muitas vezes, as ONG - com a Crescer - fazem esse tipo de investigação com as academias. Mas falta acima de tudo meios." Embora reconheça que Portugal "investe muito dinheiro nesta área e isso é uma coisa que é preciso louvar. Tanto o governo como as entidades locais, principalmente as Câmaras, têm investido cada vez mais dinheiro nesta área." Contudo, explica "não tem havido verba nem disponibilidade para investigação e quando se investe tantos milhões nesta área é preciso investigação que acompanhe este investimento".

Portugal investe muito nesta área, mas sem investigação é impossível saber se o investimento é bom ou mau.

Para Américo esta parte é fundamental "porque esta investigação é o que pode ajudar os decisores políticos a dizer o que é um bom investimento ou um mau investimento. Eu presumo que hoje haja bom investimento, mas que também mau. E é preciso que recorramos à base cientifica para percebermos isso."