Felgueiras, no distrito do Porto, regressou hoje às medidas locais para conter a pandemia de covid-19. Depois de em março, a par de Lousada, ter sido um dos primeiros municípios a sofrer restrições, o aumento de casos e a sobrecarga do hospital de referência daquela região levaram o governo a anunciar medidas específicas para Felgueiras, Lousada e Paços de Ferreira.

Estes três concelhos compõem o Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) Tâmega III Vale do Sousa Norte, tutelado pela Administração Regional de Saúde do Norte (ARS-N). A decisão de aplicar as mesmas restrições aos três municípios surgiu depois dos encontros entre as autoridades de saúde, os autarcas e o primeiro-ministro, que nesta quarta-feira se dirigiu a Paços de Ferreira.

Diante do edifício da câmara municipal de Felgueiras, o autarca, Nuno Fonseca, sucede-se em entrevistas à imprensa. Com o concelho de novo debaixo dos holofotes, importa sobretudo perceber o que correu mal para que o caminho tenha desaguado novamente aqui: no crescimento de casos, nas medidas de contenção específicas para este território industrial.

Dos três presidentes de câmara que reuniram com António Costa, Nuno é o único que fala aos jornalistas. É também o único eleito por uma lista independente, embora apoiada pelo mesmo Partido Socialista de Humberto Brito e Pedro Machado.

"Felgueiras aparece neste cenário de uma forma desproporcional", considera Nuno Fonseca. "Aliás, nós estamos metidos neste contexto porque as medidas aplicadas foram do ponto de vista daquele que é a autoridade de saúde que regula toda esta região — estamos a falar do ACeS Tâmega III Vale do Sousa Norte, que engloba estes três concelhos —, e daquilo que foram as reuniões tidas com as autoridades de saúde e com o senhor primeiro-ministro, entre outras entidades presentes, entenderam aplicar a mesma medida para todos os concelhos", explica o autarca.

Nuno Fonseca diz que chamou a atenção para a desproporção, "porque existem outros concelhos aqui limítrofes com muito mais casos do que Felgueiras", afirma. Segundo o autarca, "em Felgueiras estamos a falar de cerca de 30 casos no dia de ontem, andaria com uma média de 25 a 30 casos — e em Paços de Ferreira temos uma média de 100 a 150 casos por dia", diz.

"Existem números bem diferentes, como existem por exemplo noutros concelhos, como Guimarães, que são aqui limítrofes e a que [as novas medidas] podiam ter sido estendidas", defende Nuno Fonseca.

Apesar da desproporção, o autarca garante que a câmara respeita as decisões, "porque o trabalho foi feito, não correu nada mal", diz. "Se calhar, os números que temos hoje seriam muito mais gravosos se nós durante o verão não tivéssemos reunido com tudo o que são entidades, sejam elas as IPSS, as paróquias, os agrupamentos de escolas, as associações de pais, as farmácias, para preparar uma segunda vaga. Foi isso que fizemos".

"Estas medidas vêm também num contexto em que é identificada pelas autoridades de saúde a necessidade de controlar toda a região, uma vez que o hospital de referência e que dá suporte aqui a estes concelhos, o Hospital Padre Américo, em Penafiel, começa a ficar com a sua capacidade lotada; há necessidade de reforço dos meios técnicos e humanos nos nossos centros de saúde", diz Nuno Fonseca.

"As pessoas hoje estão mais maduras, percebem os impactes que estas restrições têm na nossa economia; as pessoas percebem que hoje não podemos parar, conforme muitos pediam para parar naquela primeira fase", explica o autarca.

Hoje, existe "um contexto diferente, há aqui um crescimento de casos depois de uma fase de férias, quando muitos de nós certamente relaxámos; e um início de ano de aulas que não existiam naquela altura", diz. "Todas estas situações levam a que, naturalmente, surjam mais casos".

"Felgueiras continuou a trabalhar, a nossa economia continuou a trabalhar, os milhares de pessoas que vão trabalhar todos os dias, preocupadas, porque também têm filhos e têm medo de chegar a casa contaminadas de uma fábrica, do local onde trabalham, mas continuamos a acrescentar à economia nacional — e não vamos deixar de o fazer, vamos continuar a ser um exemplo e vamos, acima de tudo, acatar aquilo que nos é pedido", garante Nuno Fonseca.

Nesta quarta-feira, Felgueiras tinha registado 50 novos casos de covid-19, adiantou o autarca ao SAPO24. "Na globalidade, desde março estamos com cerca de 1.040 casos. São números que gostaríamos de ver com menos expressão, mas mesmo assim ainda controlados num contexto nacional que expressa já um número de caso bem mais elevado", afirma.

Nuno Fonseca, presidente da câmara municipal de Felgueiras, no salão nobre dos paços do concelho, no dia 12 de março de 2020. créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

"Eles existem em todo o lado"

Questionado sobre a origem dos casos de covid-19, Nuno Fonseca lembra que "os municípios não têm acesso a esse tipo de informação".

"Alertámos [na quarta-feira] o senhor primeiro-ministro para essa necessidade, para perceber onde é que surgem os focos, muitas das vezes até nas próprias freguesias, perceber se há ali alguma situação que a gente possa com facilidade identificar para tentar travar a propagação da pandemia".

Apesar disso, segundo a informação que a câmara recebe das autoridades de saúde, é a de que as infeções "surgem com mais naturalidade dentro daquilo que são os eventos sociais — e quando falamos em eventos sociais falamos dos jantares, de convívios de amigos, de uma festa, seja ela ou não religiosa, de um funeral —, é dentro destes contextos que fomos alertados pelas autoridades de saúde".

Estes são os únicos dados de que a autarquia dispõe sobre a propagação da doença, não sendo apontadas as várias fábricas do concelho, que na primeira fase da doença foram identificadas como o principal foco de contágio neste território.

Ainda assim, Nuno Fonseca admite que os casos "existem em todo o lado: existem nas fábricas, existem dentro da câmara municipal, existem em qualquer organismo público, existem nos mais variados locais".

O autarca respondia assim sobre se acredita que a única explicação para o crescimento da pandemia sejam os eventos sociais nestes três concelhos do interior do distrito do Porto.

"Aquilo que a gente vai percebendo é que a dimensão que muitas das fábricas têm, a quantidade de pessoas concentradas que têm, se não fosse ter havido, por parte das pessoas, enquanto trabalhadores, e por parte dos responsáveis das empresas, uma boa aplicação dos planos de contingência, hoje teríamos uma situação bem mais grave", diz.

Feiras de Felgueiras e da Lixa não deviam ter sido proibidas

O rombo da covid-19 na economia do concelho "vai-se sentindo sobretudo no comércio; o comércio de proximidade ressente-se muito mais com este tipo de situações", admite Nuno Fonseca. "Aquilo que nós preferíamos era que não houvesse restrições, que o comércio pudesse livremente estar aberto e que houvesse a procura por parte dos clientes, é aí que sentimos muita retração", aponta.

Com as novas restrições, as feiras ficam também proibidas num concelho que tem duas feiras semanais (em Felgueiras e na Lixa). "Isso vai ter certamente o seu impacte. É uma medida que eu acho que podia não ter sido colocada em cima da mesa", afirma.

De março até aqui, os impactes socioeconómicos da pandemia "são fulminantes, seja em Felgueiras, seja por todo o mundo", diz o autarca. "Nós vemos isso e temos sentido isso. A predominância do calçado tem o seu reflexo, mas felizmente, com a resiliência e com a forma de estar nos mercados que os nossos empresários têm tido e que os nossos trabalhadores têm produzido, temos conseguido, felizmente, aguentar", conta.

"Quando digo 'aguentar', não quer dizer que se aguenta toda a gente; naturalmente, surgem empresas que não conseguem, que têm dificuldades — por dificuldades na tesouraria, no acesso ao crédito, ou, eventualmente, por dificuldades nas encomendas —, isso vai acontecer, temos de estar preparados, mas temos, acima de tudo, de estar preparados para conseguir dar uma resposta futura, não baixando aquilo que são as nossas armas, para lutar não só contra a pandemia, que é o mais importante neste momento, mas para também lutar contra este flagelo que vai atingir certamente toda a parte económica", alonga.

Sobrecarga nos centros de saúde acende luta política

Após a reunião de António Costa com os autarcas, a distrital do Porto do PSD aplaudiu o encontro, que classificou de "puxão de orelhas" à gestão da pandemia pelos municípios. Nuno Fonseca explica que o primeiro-ministro esteve em Paços de Ferreira a pedido quer das autoridades de saúde, quer dos três autarcas, que pediram o reforço de meios.

"Aqui não há puxões de orelhas. Percebo a abordagem do PSD, mas não é altura para falarmos em política, nem para fazermos política. Estamos a um ano das eleições, percebo o desconforto do PSD, estando-se a tentar aproveitar da pandemia para fazer política", acusa.

"Aquilo que me parece é que há, da parte do PSD Porto, alguma insegurança política, mas não é altura para discutir política", explica Nuno Fonseca, que nas eleições de 2017 concorreu como independente, com os apoios do PS e do Livre.

Já os autarcas de Lousada e Paços de Ferreira, por sua vez, concorreram mesmo pelo PS, cuja federação distrital reagiu logo durante a tarde de ontem àquilo que considera ser um "comportamento ignóbil" da estrutura regional dos sociais-democratas.

Na mensagem, o PS do Porto "reage com surpresa e indignação ao comunicado da sua congénere do PSD que, a propósito da situação sanitária nos concelhos de Paços de Ferreira, de Lousada e de Felgueiras, lança violentos ataques políticos aos autarcas locais e aos responsáveis dos serviços de saúde".

"Esta pandemia atinge todos por igual. Não conhece ideologias políticas nem opções partidárias", lembram os socialistas.

Antes, o PSD Porto denunciava que os centros de saúde deste ACeS "se debatem com dificuldades na resposta à população, quer no atendimento telefónico para marcação de consultas, quer no acompanhamento de patologias crónicas", afirmando que "a reunião que António Costa convocou [na quarta-feira], com caráter de urgência, é a prova inequívoca de uma descoordenação sem paralelo das autoridades de saúde local e da completa desorientação e inoperância dos presidentes das Câmaras Municipais, face ao desenrolar dos acontecimentos".

"Justificar o aparecimento de 944 casos, nos últimos 7 dias, com ligações familiares, é uma justificação bizarra e, no mínimo, pouco séria, de alguém que é o responsável máximo pela gestão da situação pandémica na região e que, no meio de uma emergência, parece estar atarantado a gerir o caos", considera ainda o partido, sobre as declarações do presidente do ACeS Tâmega III Vale do Sousa Norte, Hugo Lopes.

Centro de Felgueiras na tarde do dia 22 de outubro de 2020. créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

Casos cresceram 48% numa semana nestes três concelhos

Apesar das fábricas que povoam este território, a principal tese é de que os casos a surgir nos três municípios se devem sobretudo a eventos familiares, como casamentos e batizados, que juntaram várias centenas de pessoas nos últimos meses. Esta é a perceção quer das pessoas nas ruas, quer a linha oficial apresentada pelas autoridades de saúde e discutida nas reuniões com os autarcas.

Humberto Brito (Paços de Ferreira), Pedro Machado (Lousada) e Nuno Fonseca (Felgueiras) estiveram reunidos com António Costa cerca de três horas, para discutir as medidas apresentadas em Lisboa nesta quinta-feira, após o Conselho de Ministros, e que entraram em vigor às 00h de hoje.

Após o encontro, o primeiro-ministro disse aos jornalistas que "mesmo tendo em conta aquilo que é a previsão de aumento de pandemia na região [interior do distrito do Porto] ao longo das próximas semanas, haverá resposta do SNS para as necessidades de internamento geral e de internamento em cuidados intensivos".

Dos três líderes envolvidos, Nuno Fonseca foi o único que até agora falou à imprensa. O SAPO24 sabe que deste encontro com António Costa saiu uma espécie de "acordo de cavalheiros". Fonte próxima do processo disse que os autarcas acordaram em não falar sobre as medidas, cuja implementação deve caber aos ministérios da Saúde e Administração Interna. Afinal, se foram discutidas pelos autarcas com o chefe do governo, não há muito mais a acrescentar no dia em que são anunciadas pelo próprio primeiro-ministro, explica a fonte.

Após o anúncio do Conselho de Ministros desta quinta-feira, o SAPO24 procurou também esclarecimentos junto da ARS-N, o que não foi possível até à publicação deste texto.

No Palácio da Ajuda, na tarde de ontem, Mariana Vieira da Silva salientou ainda não existir uma cerca sanitária, lembrando que as populações dos três concelhos podem circular entre eles.

Também "não é confinamento obrigatório: é dito para as pessoas estarem em casa, com exceção de algumas atividades", esclareceu a ministra de Estado e da Presidência, frisando que, embora as medidas não sejam iguais para todo o país, a lógica de dever de recolhimento deveria ser adotada por todos.

Segundo os números por concelho da Direção-Geral da Saúde (DGS), divulgados às segundas-feiras, o número de casos de covid-19 aumentou em Paços de Ferreira 76% numa semana, enquanto em Felgueiras a subida é de 24,2% e em Lousada de 39,2%.

Em Paços de Ferreira, concelho que registou o aumento maior, a 12 de outubro o número de infeções era de 738, enquanto esta segunda-feira a DGS atualizou os dados para 1.303 (mais 565), o correspondente a 76,5% de aumento.

Já Lousada registou, entre 12 e 19 de outubro, um aumento de infeções na ordem dos 39,2%, passando de 660 casos para 919 (mais 259). Em Felgueiras o aumento, em igual período de tempo, foi de 24,2%, com o registo de mais 154 infeções pelo novo coronavírus: de 634 para 788 (embora, como atrás dito, Nuno Fonseca tenha adiantado que esta quarta-feira o município já estava a rondar os 1.040 casos confirmados).

Nestes três concelhos há agora o dever de permanência no domicílio e estão também proibidas quaisquer celebrações e eventos com mais de cinco pessoas (salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar). Passa ainda a ser obrigatório o encerramento de estabelecimentos às 22:00, com algumas exceções e o teletrabalho é obrigatório para todas as funções que o permitam, independentemente do vínculo laboral.

Questionado sobre a eficácia destas novas medidas, Nuno Fonseca espera que elas resultem "se não, não faz sentido aplicar este tipo de medidas". "Aquilo que nós pedimos às pessoas é que as acatem com a responsabilidade que têm tido até hoje e, certamente, vamos melhores resultados nos próximos tempos", afirma.

"Naturalmente, a infeção vai continuar a propagar-se pela comunidade, mas se o podermos fazer de uma forma faseada, que não ponha em causa o nosso Serviço Nacional de Saúde, podendo assegurar as respostas, é o que se pretende com este tipo de restrições", termina.

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