PRIMEIRA PARTE
Descoberta
Nós os dois, o leitor e eu, começámos por ser uma única célula.
Os nossos genes são diferentes, embora as diferenças entre eles sejam mínimas. O modo como os nossos corpos se desenvolvem é diferente. A nossa pele, o nosso cabelo, os nossos ossos, os nossos cérebros, tudo isto foi construído de forma diferente. As nossas experiências de vida variam profundamente. Perdi dois tios, que foram levados pela doença mental. Perdi o meu pai, que foi levado pela espiral mortal que se seguiu a uma queda. Perdi um joelho, que me foi levado pela artrite. Perdi um amigo — tantos amigos — que foram levados pelo cancro.
E, no entanto, apesar de todos os enormes fossos que separam os nossos corpos e as nossas experiências, o leitor e eu partilhamos duas características. Primeira: surgimos de uma única célula, chamada embrião. E segunda: dessa célula formaram-se inúmeras células — as células que povoam o seu corpo e o meu. Nós somos feitos das mesmas unidades materiais e somos como dois fragmentos de matéria constituídos pelos mesmos átomos.
De que somos feitos? Antigamente, algumas pessoas pensavam que aquilo que nos criava era o sangue menstrual, que solidificava até formar um corpo. Outras pessoas acreditavam que aparecíamos pré-formados: que éramos seres minúsculos que se iam expandindo ao longo do tempo, como balões com a forma de seres humanos, que enchemos para um desfile. Outras ainda pensavam que os seres humanos tinham sido moldados de lama e de água de rios. E havia ainda quem acreditasse que nós nos íamos transformando devagar, no ventre, passando de seres semelhantes a girinos, passando por sermos criaturas com boca de peixe até nos tornarmos, por fim, humanos.
Mas se observarmos a sua pele e a minha ao microscópio, ou o seu fígado e o meu, perceberíamos que somos incrivelmente parecidos. E dar-nos-íamos conta de que, na verdade, todos nós somos feitos de unidades vivas: as células. A primeira célula deu origem a mais células, que depois se dividiram para formarem mais células ainda, que, por sua vez, continuaram a dividir-se ainda mais, até que os nossos fígados e as nossas entranhas e os nossos cérebros — e todas as elaboradas arquiteturas anatómicas do nosso corpo — começaram gradualmente a formar-se.
Quando é que compreendemos que os seres humanos eram, na verdade, compósitos de unidades vivas e independentes? Ou que essas unidades estavam na base de tudo aquilo que o corpo é capaz de fazer ou, por outras palavras, que a nossa fisiologia assentava, em última instância, na fisiologia celular? E por outro lado, quando é que concluímos que os nossos destinos e os nossos futuros médicos estavam intimamente ligados às mudanças que ocorriam nestas unidades vivas, e que as nossas doenças eram consequência da patologia celular?
Em primeiro lugar, olharemos para estas questões e para a história de uma descoberta que tocou e transformou radicalmente a biologia, a medicina e o modo como concebemos os seres humanos.
A CÉLULA ORIGINAL
Um Mundo Invisível
O verdadeiro conhecimento é a noção da própria ignorância.
— Rudolf Virchow, carta ao seu pai, por volta dos anos 1830
Primeiro que tudo, agradeçamos à voz delicada de Rudolf Virchow. Virchow nasceu na região da Pomerânia, na Prússia (que hoje está dividida entre a Polónia e a Alemanha), no dia 13 de outubro de 1821. O seu pai, Carl, era agricultor e tesoureiro da cidade. Sabemos pouco sobre a sua mãe, Johanna Virchow, cujo apelido de solteira era Hesse. Rudolf foi um aluno diligente e inteligente; era ponderado, atento e tinha jeito para línguas. Ele aprendeu alemão, francês, árabe e latim e recebeu honras pelo seu trabalho académico.
Aos 18 anos, Virchow escreveu a sua tese de liceu, intitulada «Uma Vida Preenchida por Trabalho e Fadiga não é um Fardo, mas uma Bênção», e começou a preparar-se para uma vida profissional no clero. Virchow tentou tornar-se pastor e pregar a uma congregação, mas a sua voz era fraca e isso causava-lhe ansiedade. A fé nascia da força da inspiração, e a inspiração nascia da força da elocução, mas o que fazer se ninguém conseguia sequer ouvi-lo enquanto ele tentava projetar a voz do púlpito? A medicina e a ciência pareciam ser ramos profissionais mais clementes para um rapaz introvertido, estudioso e de fala delicada. E então, em 1839, quando se formou, Virchow recebeu uma bolsa militar e escolheu estudar Medicina no Instituto Friedrich-Wilhelms, em Berlim.
Poderíamos dividir o mundo da medicina no qual Virchow entrou em meados da década de 1800 em duas metades: anatomia e patologia. A primeira estava relativamente avançada, mas a segunda era ainda uma trapalhada. No século xvi, os anatomistas começaram a descrever as formas e as estruturas do corpo humano com uma precisão cada vez maior. O anatomista mais conhecido de todos era o cientista flamengo Andreas Vesalius, professor na Universidade de Pádua, em Itália. Vesalius, que era filho de um boticário, chegou a Paris em 1533 para estudar e praticar cirurgia, e pareceu-lhe que a anatomia cirúrgica estava em total desalinho. Os manuais eram poucos e não havia nenhum mapa esquemático do corpo humano. A maior parte dos cirurgiões e dos seus alunos recorriam, vagamente, aos ensinamentos de anatomia de Galeno, o médico romano que viveu entre os anos 129 e 216 a. C. Os tratados seculares de Galeno acerca da anatomia humana baseavam-se em estudos feitos em animais, tinham-se tornado muitíssimo ultrapassados e, para ser franco, estavam muitas vezes errados.
A cave do Hospital Hôtel-Dieu, em Paris, onde se dissecavam cadáveres humanos em decomposição, era um espaço mal iluminado, sujo e sem ar, por onde andavam cães semisselvagens por entre as macas, na esperança de roerem o que ia caindo. Nas palavras de Vesalius, ao descrever uma destas câmaras anatómicas, aquilo era um «mercado de carne». Os professores sentavam-se em «cadeiras imponentes [e] cacarejavam como gralhas» escreveu ele, enquanto os seus assistentes iam cortando e repuxando o corpo ao acaso, estripando órgãos e outras partes, como se estivessem a tirar algodão de dentro de um boneco.
«Os médicos nem tentavam cortar», escreveu Vesalius, com amargura, «e aqueles barbeiros, a quem era delegada a arte da cirurgia, eram demasiado iletrados para compreenderem o que escreviam os professores de dissecação. [. . .] Eles limitavam-se a cortar as partes que deveriam ser mostradas, segundo as ordens de um médico que nunca cortou nada com as mãos e que se limita a pilotar o barco fazendo comentários (que não deixam de ser arrogantes). Por isso, todas as coisas são ensinadas de forma errada, e os dias vão passando, ao sabor de disputas absurdas. Naquele tumulto, os factos que se mostram aos espectadores são em menor número do que aqueles que um talhante poderia ensinar a um médico no seu mercado de carne.» Com lugubridade, concluiu: «Com exceção dos oito músculos do abdómen, muito mutilados e pela ordem errada, jamais alguém me mostrou um músculo, ou qualquer osso, e menos ainda uma sequência de nervos, veias e artérias.»
Vesalius, que estava frustrado e confuso, decidiu criar o seu próprio mapa do corpo humano. Para isso, pilhava os ossários nas proximidades do hospital, ocasionalmente duas vezes por dia, para levar espécimes até ao seu laboratório. Os túmulos no Cemitério dos Inocentes, que eram muitas vezes a céu aberto e continham corpos desfeitos até aos ossos, serviam como amostras preservadas na perfeição, pelo que podiam ser usadas como modelos para desenhar esqueletos. E ao passar perto de Montfaucon, a enorme forca de três andares em Paris, Vesalius via os corpos dos prisioneiros suspensos no patíbulo. Em segredo, fugia com os cadáveres recém-pendurados. Como os músculos, as vísceras e os nervos estavam mais ou menos intactos, ele podia esfolá-los, camada a camada, e mapear a localização dos órgãos.
Os intrincados desenhos que Vesalius foi criando ao longo da década seguinte transformaram a anatomia humana. Por vezes, ele cortava o cérebro em secções horizontais, como um melão que se corta às fatias, começando pela ponta, de forma a criar o tipo de imagens que uma tomografia axial computorizada (TAC) consegue produzir. Outras vezes, ele sobrepunha os vasos sanguíneos aos músculos ou abria músculos formando abas, como se fossem uma série de janelas anatómicas que poderíamos imaginar ser possível folhear para vermos as superfícies e as camadas que se encontravam por baixo.
Ele tanto desenhava um abdómen humano visto de baixo para cima, como a perspetiva que o pintor italiano do século xv Andrea Mantegna mostra do corpo de Cristo em A Lamentação Sobre o Cristo Morto, como cortar a imagem às fatias, à semelhança do que vemos em imagiologia por ressonância magnética (IRM). Vesalius colaborou com o pintor e gravador Jan van Kalkar para produzir os mais detalhados e refinados desenhos da anatomia humana que existiam até então. Em 1543, ele publicou os seus trabalhos anatómicos em sete volumes, intitulados De Humani Corporis Fabrica [Sobre a Estrutura do Corpo Humano]. A palavra Estrutura no título dá-nos uma pista quanto à sua consistência e aos seus objetivos: refere-se ao tratamento do corpo humano enquanto matéria física e não enquanto algo misterioso; um corpo feito de tecidos e não de espírito. Em parte, é um manual de medicina, com cerca de setecentas ilustrações, e em parte um tratado científico, que contém mapas e diagramas que viriam a servir de base para os estudos de anatomia durante vários séculos.
Por coincidência, o livro foi publicado no mesmo ano em que o astrónomo polaco Nicolau Copérnico lançou a sua «anatomia dos céus», o monumental livro As Revoluções (As Revoluções dos Orbes Celestes), que incluía um mapa heliocêntrico do sistema solar, no qual a Terra orbitava o Sol, que se encontrava claramente no centro.
Vesalius tinha posto a anatomia no centro da medicina.
Mas enquanto ia havendo avanços radicais na anatomia, que estuda os elementos estruturais do corpo humano, o mesmo não se passava no campo da patologia, que estuda as doenças humanas e as suas causas. Este universo era disperso e ainda não possuía um mapa. Não havia qualquer livro de patologia que se pudesse comparar aos de anatomia, nem qualquer teoria comum que explicasse as doenças: não havia revelações nem Revoluções. Durante o século xvi, a causa para a maior parte das doenças era atribuída a miasmas: vapores venenosos que eram emanados por resíduos, ou seja, ar contaminado. Os miasmas transportavam partículas de matéria em decomposição, as partículas miasmáticas, que acabavam por entrar no corpo, levando-o a degradar-se. (Uma doença como a malária contém esta história, pois o seu nome é o resultado da junção dos termos italianos mala e aria, formando a expressão «mau ar».)
Por este motivo, os primeiros reformadores da saúde concentraram-se em reformas sanitárias e na higiene pública para se prevenir e curar doenças. Escavaram-se sistemas de esgotos para gerir os resíduos e abriram-se condutas de ventilação em casas e em fábricas para impedir a acumulação de nevoeiro contagioso ou de partículas miasmáticas no interior. A teoria parecia estar envolta numa lógica indisputável. Muitas cidades, que estavam a sofrer uma rápida industrialização e não conseguiam lidar com a afluência de assalariados e das suas famílias, tinham-se tornado fétidas arenas de smogue e de resíduos — e as doenças pareciam contaminar as áreas mais populosas e que cheiravam pior. Novas ondas de cólera e de tifo iam atrás das zonas mais pobres de Londres e das áreas vizinhas, como a zona de East End (que hoje em dia resplandece com as suas lojas e restaurantes, que vendem aventais de linho e garrafas de gin de destilação única). A sífilis e a tuberculose espalharam-se de forma galopante. Os partos eram acontecimentos assustadores, uma vez que havia uma elevada probabilidade de resultar não em nascimento, mas morte — do bebé, da mãe ou de ambos. Nas zonas mais ricas da cidade, onde o ar era limpo e os resíduos eram descartados de forma adequada, a saúde prevalecia, ao passo que os pobres, que viviam em zonas cheias de partículas miasmáticas, sucumbiam, inevitavelmente, às doenças. Se a limpeza era o segredo da saúde, então, a doença deveria ser consequência da sujidade ou da contaminação.
Mas embora a noção de contaminação vaporosa e miasmática parecesse conter um vago quê de verdade — e oferecesse uma justificação perfeita para segregar ainda mais os bairros ricos e pobres dentro das cidades —, o modo como se entendia a patologia estava cheio de enigmas peculiares. Por exemplo, porque é que uma mulher que dava à luz numa clínica obstétrica em Viena, na Áustria, corria um risco de morte no pós-parto quase três vezes superior ao de uma mulher que desse à luz na clínica do lado? Qual era a causa da infertilidade? Porque é que um jovem rapaz, perfeitamente saudável, viria a sucumbir de repente a uma doença que causava dores lancinantes nas articulações?
Ao longo dos séculos xviii e xix, os médicos e os cientistas procuraram uma forma sistemática de explicar as doenças humanas. Contudo, o melhor que conseguiram foi chegar foi a um excesso de explicações que, no fundo, se baseavam na anatomia básica, ou seja, faziam corresponder a cada doença uma disfunção de um órgão individual. O fígado. O estômago. O baço. Haveria algum princípio organizador mais profundo que ligasse estes órgãos às suas perturbações difusas e misteriosas? Poderíamos sequer pensar sobre a patologia humana de um modo sistemático? Talvez a resposta não pudesse ser encontrada na anatomia visível, mas na anatomia microscópica. Na verdade, de forma análoga, os químicos do século xviii já tinham começado a descobrir que as propriedades da matéria — a combustibilidade do hidrogénio ou a fluidez da água — vinham de propriedades emergentes das partículas invisíveis, moléculas e átomos, que as constituíam. Estaria a biologia organizada de modo semelhante?
Rudolf Virchow tinha apenas 18 anos quando se inscreveu no Instituto de Medicina Friedrich-Wilhelms, em Berlim. O objetivo do instituto era treinar oficiais médicos para o exército prussiano e, portanto, a ética profissional era marcial: era esperado que os alunos assistissem a sessenta horas de aulas por semana durante o dia, e que decorassem factos durante a noite. (No Pépinière, que era o instituto de cirurgia, médicos militares de patente superior surpreendiam muitas vezes os alunos com «exercícios de assiduidade». Se um aluno faltasse a uma aula, castigava-se a secção inteira.) «É sempre assim, todos os dias, sem qualquer pausa, entre as seis da manhã e as 11 da noite, exceto ao domingo» escreveu ele, macambúzio, ao pai «[. . .] e ficamos tão cansados durante este processo que, à noite, damos connosco a desejar uma cama dura — onde, depois de termos dormido um pouco letárgicos, acordamos de manhã quase tão cansados como antes.» Os alunos comiam uma ração diária de carne, batatas e sopa aguada e viviam em quartos pequenos, isolados e circunscritos: em células.
Virchow recorria à aprendizagem mecânica para aprender factos. A anatomia era ensinada de forma razoável: o grande mapa do corpo fora sendo aperfeiçoado aos poucos desde o tempo de Vesalius, por várias gerações de vivisseccionistas, depois de terem sido feitos milhares de autópsias. Mas não havia uma lógica fundamental nas áreas da patologia e da fisiologia. A razão por que os órgãos funcionavam, aquilo que faziam e por que deixavam de funcionar não era mais do que pura especulação — como se obedecessem a uma máxima marcial, estas questões passavam de meras conjeturas a factos. Havia muito que os patologistas se dividiam em escolas que defendiam diferentes motivos para o aparecimento de doenças. Havia os defensores da ideia de miasma, que acreditavam que as doenças surgiam de vapores contaminados; os galenistas, que acreditavam que as doenças se deviam a desequilíbrios patológicos nos nossos fluidos e semifluidos corporais, a que chamavam «humores»; e os «psiquistas» que defendiam que as doenças eram manifestações de processos mentais frustrados. Quando Virchow ingressou na medicina, a maioria destas teorias tinham-se tornado confusas ou estavam moribundas.
Em 1843, Virchow terminou a sua formação médica e entrou para o Hospital Charité, em Berlim, onde começou a trabalhar de perto com Robert Friorep, que era patologista, microscopista e conservador de amostras patológicas no hospital. Sem estar já preso à rigidez intelectual do seu instituto anterior, Virchow ansiava por descobrir uma forma sistemática de compreender a fisiologia e a patologia humanas, e estudou história da patologia. «Há uma necessidade grande e urgente de se compreender [a patologia microscópica]», escreveu ele, embora sentisse que a disciplina se desviara do seu propósito. Os microscopistas talvez tivessem razão: talvez não pudéssemos encontrar esta resposta sistemática no mundo visível. E se o coração frágil ou o fígado cirrótico fossem apenas epifenómenos, ou seja, propriedades que surgem de uma disfunção mais profunda, e subjacente, que são invisíveis à vista desarmada?
Enquanto ia mergulhando no passado, Virchow foi-se dando conta de que tinham existido pioneiros que o precederam, pioneiros esses que também tinham visto este mundo invisível. No final do século xvii, alguns investigadores tinham descoberto que todos os tecidos de plantas e de animais eram feitos de estruturas vivas e unitárias, chamadas células. Será que estas células poderiam estar no cerne da fisiologia e da patologia? Se assim fosse, de onde é que elas vinham e o que é que elas faziam?
Quando era estudante de Medicina nos anos 1830, Virchow escreveu uma carta ao pai onde dizia que «o verdadeiro conhecimento é a noção da própria ignorância». «Sinto tanto, e tão dolorosamente, as lacunas no meu conhecimento. É por esse motivo que não fico parado num único ramo da ciência. […] Sobre mim próprio, há muito que continua ainda incerto e irresoluto.» Por fim, Virchow encontrou a sua casa nas ciências médicas, e foi como que o apaziguar de uma dor agitada na sua alma. «Sou o meu próprio conselheiro», escreveu ele em 1847, com uma confiança recém-descoberta. Se a patologia celular não existisse, ele tê-la-ia inventado do zero. Depois de se ter tornado um médico maduro e de ter obtido um conhecimento exaustivo da história da medicina, Virchow pôde, finalmente, ficar num único lugar e preencher lacunas.
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