Em pleno Oceano Atlântico há uma ilha que tem pouco mais de 17 quilómetros quadros. É pequena, é a mais pequena do arquipélago dos Açores, e é uma pérola quase em bruto da natureza. A sua morfologia, com terrenos altos e irregulares que sobem desde as águas oceânicas até ao caldeirão, topo do antigo vulcão que formou a ilha, levou a que a população se fixasse toda na mesma zona, numa fajã a sul. Ali vivem lado a lado cerca de 450 habitantes, contrariando qualquer outro isolamento para além daquele a que foram sujeitos pela geografia. Lisboa fica a mais de 2000 quilómetros de distância, as Flores, a ilha vizinha mais próxima, fica a 12. Já foi batizada “Ilha de Santa Iria”, “Ilha do Marco”, “Ilha de São Tomás”, “Ilhéu das Flores” e a sua história conta como venceu a solidão, a pobreza e até as invasões piratas. É a ilha do Corvo, o ponto mais remoto da Europa e um lugar onde a palavra isolamento não causa claustrofobia.

A apresentação é necessária nestes tempos em que o isolamento passou a ser parte do dia a dia de todos nós, como forma de contrariar a propagação do novo coronavírus. Porém, o "novo normal" no Corvo, uma ilha que durante toda a sua história lutou contra a geografia para criar pontes com o mundo, é vivido com tranquilidade. O isolamento de hoje é diferente do vivido no passado, é certo, mas está longe de ser uma condenação inevitável. É uma necessidade, encarada e assumida pela população — ou não soubesse ela o que é isso de ser corvino.

E a razão é muito simples: o facto de uma ilha, já por si pequena, ter toda a população concentrada numa restrita área, transforma-a em território idílico para um cenário catastrófico de propagação de um vírus como o SARS-CoV-2, que provoca a doença Covid-19.

Covid-19 | Açores

Número de apoio em caso de sintomas: 808 24 60 24

Número para esclarecimento de dúvidas: 808 29 29 29 | 800 500 501

E-mail: esclarecimentocovid19@azores.gov.pt

Contactos das unidades de saúde de todas as ilhas

Os corvinos vaticinados pelo isolamento no passado, agora pediram-no. Logo a 15 de março, dia em que foi registado o primeiro caso positivo no arquipélago dos Açores. A Comissão Municipal de Proteção Civil ativou o plano de emergência municipal e solicitou ao governo o bloqueio de entrada de pessoas na ilha, quer por via marítima, quer por via aérea. Tal não aconteceu no imediato, mas sim quatro dias depois. Hoje, José Silva, presidente da Câmara Municipal da Vila do Corvo, conta ao SAPO24 que há uma semana e meia que não entra ninguém na ilha. As últimas pessoas a fazê-lo foram uma mãe e filha, corvinas, que estavam há quase um mês na ilha de São Miguel, para onde viajaram para recorrer a serviços médicos. Estão neste momento em quarentena, uma medida obrigatória para este caso de exceção de entrada ilha. O período de isolamento termina na segunda-feira e, até ao momento, não há qualquer manifestação de sintomas.

Até hoje, o Corvo não teve um único caso que pudesse ser classificado como caso suspeito e tem zero casos de infeção.

“No início havia algum alarme em relação ao Corvo. Um caso aqui podia ser dramático. A proximidade, a afinidade, a confinidade, quer dizer, nós não temos outra freguesia, não podemos dividir, digamos assim, as pessoas. Mesmo que houvesse casos positivos teriam que ficar aqui na vila porque não tínhamos possibilidade de fazer isolamento ou cerca sanitária a uma zona. Nós estamos confinados a isto, pelo que um caso positivo na ilha podia… podia e pode!, caso chegue cá, ser dramático”, explica José Silva.

Como é que a ilha se isolou e protegeu?

  • Entradas condicionadas. A ilha isolou-se. Quer por via marítima, quer por via aérea deixaram de chegar pessoas ao Corvo, onde passaram apenas a ser autorizadas as entradas de abastecimentos e, em casos excecionais analisados e autorizados pela Direção-Regional da Saúde, algumas pessoas;
  • Quarentena. Independentemente da natureza do caso, toda e qualquer pessoa que entrar na ilha é obrigada a fazer um período de quarentena de 14 dias. Durante duas semanas essas pessoas serão vigiadas pela unidade de saúde do Corvo;
  • Encerramentos. O hotel e os alojamentos locais, assim como restaurantes e cafés, fecharam ao público no dia 16 de março;
  • Condicionamento no comércio. Os minimercados e a padaria que permaneceram abertos passaram a ficar condicionados à presença de um número restrito de pessoas dentro dos espaços. Por exemplo, no caso dos minimercados mais pequenos são permitidas apenas duas pessoas em simultâneo lá dentro, sendo que nos estabelecimentos maiores podem estar até quatro pessoas a fazer compras ao mesmo tempo. No caso da padaria, a única da ilha, a entrada a clientes está limitada a uma pessoa de cada vez;
  • Espaços de convívio ou aglomeração encerrados. A igreja fechou, assim como o parque infantil, o pavilhão desportivo. Até a praia passou a ter o acesso vedado.
  • Aulas à distância para todos. A escola facultou aos alunos que não tinham formas de aceder às plataformas de ensino online ou que tinham recursos limitados que tinham de ser partilhados por vários membros da família, computadores para que as aulas possam ser acessíveis a todos.
  • Eventos cancelados. Na ilha, todos os eventos organizados pela Câmara Municipal foram cancelados. Também as cerimónias religiosas de celebração da Páscoa não aconteceram, assim como o Espírito Santo, que por estes dias passava a andar de casa em casa onde as pessoas se encontravam para rezar o terço até à celebração final com as sopas do Espírito Santo.

Medidas rápidas (e uma dose de sorte) para a ilha do canto

“O Serviço Regional de Saúde, em conjunto com a Autoridade Regional de Saúde, pensou não só no Corvo, mas nas nove ilhas, porque temos uma realidade que, sem dúvida nenhuma, é diferente. Somos 250 mil pessoas, divididas por nove ilhas, temos 50% da população numa ilha e oito ilhas com muito menos pessoas. Por isso tivemos de ter medidas mais apertadas e duras, de alguma forma, mas que terão os seus resultados e o exemplo disso é o Corvo”, explica Teresa Machado Luciano, secretária regional da Saúde dos Açores ao SAPO24.

As medidas foram encaradas pelos corvinos como necessárias, sendo que os relatos que nos chegam são de uma população que desde o primeiro momento se mostrou informada e que se resguardou em casa, procurando ter um papel ativo na proteção da ilha. A secretária regional da saúde conta-nos, por exemplo, que no aeródromo do Corvo, onde há bombeiros de outras ilhas que ajudam na aterragem dos aviões, normalmente das corporações de São Jorge e da Graciosa, a comunidade procurou intervir contra aquele que seria um fator de risco numa ilha completamente fechada. Os bombeiros que, por norma, vão rodando ao fim de um período de cerca de um mês, passam a ficar mais tempo e, em caso de trocas, a submetem-se a um procedimento que garanta que não está a ser introduzido um caso positivo na ilha.

"Não querem que eles [bombeiros] mudem por causa da situação de poder entrar alguém infetado na ilha. Então, o que é que definimos: os bombeiros que estão no Corvo têm que lá continuar a trabalhar e, na eventualidade de serem trocados, os que os vão substituir têm de fazer teste da ilha de onde saem, o teste tem de dar negativo, têm que chegar ao Corvo e fazer quarentena de 14 dias e só depois é que podem assumir funções. Só assim é que podemos garantir que o Corvo se mantém Covid Free, como nós costumamos dizer”, revela-nos a secretária regional.

No entanto, nem só de medidas rápidas e duras se faz este número redondo de zero contágios no Corvo, partilhado com a vizinha Flores e com Santa Maria, ilha do grupo ocidental, na outra ponta do arquipélago. A sorte também tem teve a sua contribuição.

“Todos os casos nos Açores vieram de avião, chegaram porque alguém aterrou nas nossas ilhas. Depois os casos distribuíram-se através dos voos inter ilhas. Santa Maria, Flores e Corvo tiveram a sorte de não ter ninguém a regressar. Nós tivemos, por exemplo, um grande grupo de uma viagem ao Dubai que distribuiu casos em duas ilhas. Na Graciosa, que esteve muito tempo sem casos, vieram a registar-se casos de uma família que veio do Canadá e de outra que chegou de Madrid. Por isso, sem dúvida nenhuma que está tudo relacionado com a deslocação das pessoas”, explica Teresa Machado Luciano

No entanto e caso a sorte mude de rumo, a unidade de saúde local está preparada para lidar com uma situação de infeção. Há condições para se fazer a recolha de amostras biológicas para seguirem para análise em laboratório, plano para o isolamento de um caso positivo e um protocolo de transferência do doente para o hospital de referência no combate à pandemia no arquipélago, na ilha Terceira. “Mesmo que seja um caso de hospitalização domiciliária que podia ficar tranquilamente na sua casa e ser acompanhado pelo Carlos Teixeira, que é o médico do Corvo, pela dimensão da ilha será transferido”, sublinha a secretária regional de saúde.

Como é feito o combate no Corvo

  • A equipa na ilha. A unidade do Corvo tem um médico, um dentista, uma enfermeira e duas administrativas;
  • O plano de contingência. Na unidade do Corvo o plano de continência foi ativado com uma sala própria para isolamento caso surja um caso positivo. Pelo que há uma área independente da zona onde os utentes podem continuar a dirigir-se para tratar da sua saúde;
  • Caso positivo. Caso seja identificado um caso positivo, esse doente será transferido para o hospital do Santo Espírito na ilha Terceira, tal acontece mesmo que este esteja assintomático e em condições de autovigilância;
  • Contactos em vigilância e quarentenas. Carlos Teixeira, médico da ilha, é também o delegado de saúde que faz o contacto de articulação com a autoridade regional da saúde. Neste caso, é este que acompanha, por via telefónica, habitantes em quarentena através de várias chamadas de monitorização;
  • Reforço do material de proteção e desinfeção. A ilha que esteve sem abastecimentos regulares no início do ano devido às consequências do furacão Lorenzo, encontra-se equipada com o que é necessário de momento. As necessidades em termos deste tipo de material são analisadas e discutidas entre as várias ilhas que, sendo vizinhas, prestam auxílio entre si;
  • Um ventilador. O único ventilador da ilha estava avariado pelo que a Câmara Municipal adquiriu um novo, portátil, e doou-o à unidade de saúde para caso haja a necessidade de ventilar alguém até ocorrer a transferência para a unidade hospitalar;
  • Rotação de bombeiros. Os bombeiros que dão apoio à operação no aeródromo alteram a rotatividade com que trocam e são testados e passam a fazer quarentena na chegada à ilha.

A tranquilidade e a liberdade no isolamento

créditos: Rodrigo Moreira Rato

“Obviamente que a lei é igual para todos, o estado de emergência é igual para toda a gente, mas tendo a noção de que não há nenhum caso, de que não entrou ninguém na ilha, de que os que entraram já fizeram a sua quarentena e que está tudo bem... As pessoas não fazem a sua vida normal, como faziam antes, mas estão a conseguir fazer o básico. Esta é a altura de semear os terrenos, as pessoas vão semeando para depois evitar que se diga 'afinal não fizemos nada, podíamos ter feito e estamos todos mal'. Há cuidados de todos, também por parte da GNR, para evitar algum excesso, mas as pessoas conseguem fazer o essencial”, diz-nos o autarca do Corvo.

O medo ainda não desapareceu - “o avião continua a vir cá três vezes por semana, embora não venha com passageiros, há cargas e poderá sempre haver aqui alguma situação de importação do vírus” -, mas deu lugar a uma maior tranquilidade, depois de tanto tempo volvido sem nenhuma deteção de um caso positivo, num regresso ao passado onde esta realidade de isolamento era o normal.

“Eu sou do tempo em que o Corvo estava muitas vezes, dois e três meses, isolado do resto do mundo. Isso não tem nada a ver com os dias de hoje, mas o isolamento para as pessoas mais idosas não tem grande significado, era aquilo a que a gente estava habituado. A gente costuma dizer, não te habitues aquilo que é bom que depois é mau desabituares-te. Para quem estava habituado a ter todas as comodidades, é um bocadinho diferente, mas não se morre por causa disso. É só esperar”, diz-nos Manuel Rita, antigo presidente da Câmara do Corvo.

“Olhe, nunca julguei vir a ter umas férias na minha vida como tive agora. É verdade, nunca tinha tido férias em 73 anos. São as minhas primeiras férias”, diz enquanto se ri o dono do único hotel do Corvo, o setor mais afetado da ilha a par da restauração, num tom calmo, como quem sabe que vai ficar tudo bem e que, até lá, tem uma ilha inteira para respirar.

“As pessoas estão bem, estão recatadas, nós não temos ninguém no hotel, ninguém viaja nesta altura. Os restaurantes estão fechados, também não há ninguém na ilha que vá comer aos restaurantes porque normalmente as pessoas que vão aos restaurantes são pessoas que vêm de fora, não é? De maneira que agora, estamos a viver quase o normal na ilha do Corvo. Há muitas coisas fechadas, até a Câmara está fechada, mas tratam do lixo, as pessoas podem sair, ainda hoje fui dar a volta à pista com o meu cãozinho de manhã. Não estamos como no continente fechados em apartamentos”, diz-nos.

A história de Manuel Rita é motivo de conversa entre várias pessoas na ilha, confessa-nos José Silva. "As pessoas de 40 anos para cima já passaram por isto, pelo que é uma situação que não lhes causa nenhuma claustrofobia. Aqui na ilha, em comparação com o continente, as pessoas saem mais à vontade para irem à farmácia, à padaria, para ir às mercearias para dar um passeio sanitário. Depois daquele primeiro momento inicial, e tendo a noção de que não há aqui nada, as pessoas andam mais à vontade. Atenção! Como se diz na tropa, é à vontade não é à vontadinha, nem à vontadex. Mas cada um por si, isoladamente, consegue ter uma liberdade diferente", confessa.

Fechado, o Corvo fica com a ilha só para si enquanto espera que o pior passe. E se no passado isso era uma consequência da inevitável posição geográfica da ilha, hoje é quase que uma sorte alcançada por via de muitas medidas e de uma noção comunitária digna da ilha.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

A viagem ao passado, numa história de duro isolamento, exige a pergunta: alguma vez a ilha foi ameaçada ou atingida por algo semelhante? Os registos da Autoridade-Regional da Saúde dizem-nos que não, mas entre as pessoas da ilha não se esquece um ano perdido há mais de seis décadas.

“O meu pai relata que há um ano em que ele era garoto, jovem, 18/20 anos, em que morreram mais de 40 pessoas com uma gripe. Hoje poderíamos dizer que era uma gripe específica, mas na altura os sintomas eram o de uma gripe sazonal. Havia várias famílias a ficar em casa ao ponto de ter chegado uma altura em que ele chegou a ficar a tomar conta das vacas de 10 lavradores porque eram poucos os que podiam sair. É algo de que ele se lembra perfeitamente… eu vou fazer 50, por isso, isto já foi há mais de 60 anos”, conta-nos.

O futuro: uma imunidade de grupo que não existe e as medidas de apoio

“Para já estamos bem, agora há a outra face da moeda, não se cria a tal imunidade de grupo. Mas é o que digo e continuo a dizer, se tiver de chegar cá, quanto mais tarde melhor. Eventualmente haverá mais possibilidades e alternativas, poderá até haver já alguma medicação que ajude na cura... não sei. Também tenho a noção de que não podemos ficar eternamente isolados. Em termos de materiais e de abastecimento, temos sido abastecidos pelo barco, o avião tem também complementado isso com mercadorias e cargas à segunda, quarta e sexta-feira, mas de resto não há mais nenhum contacto com o exterior. Também percebo que as pessoas depois comecem a ter necessidade de sair daqui, mas nesta altura isso não se põe, nem as pessoas querem também, as pessoas levaram isto a sério também”, sublinha o autarca.

Com a restauração e a hotelaria da ilha a serem os principais afetados, José Silva acredita que o dano ainda não é grande, mas que tal só se poderá medir face ao tempo que toda esta situação durar. “Os alojamentos locais e o hotel estão fechados desde o dia 16 de março, completamente fechados, sem ninguém. Os restaurantes e os cafés a mesma coisa. As consequências acreditamos que não serão muitas, até porque nós [Câmara] optámos por pagar o vencimento na íntegra aos funcionários. Se o prazo for um, dois ou três meses não é por aí, em situação normal teríamos essa despesa assegurada. São quarentena e tal funcionários, quarenta e tal famílias e isso significa uma base grande de apoio na ilha. Em termos de equipamentos hoteleiros ou similares, poderá fazer diferença porque um, dois ou três meses fechados fará a diferença porque há despesas que são fixas e mensais que sem qualquer receita poderão ter algumas consequências. No entanto, qualquer um deles também não tem muitos funcionários, portanto, vamos ter de esperar para ver... Se bem que eu penso que ao nível de turismo este ano estará tudo comprometido. Mesmo que isto alivie um bocado, muitas pessoas, se calhar, ainda não vão marcar férias porque ainda não é totalmente seguro... é complicado".

Em outubro, a ilha costuma lotar-se com pessoas provenientes de todo o mundo que vão para aquele território no meio do oceano atlântico observar os pássaros que costumam fazer do Corvo paragem no seu trajeto migratório. “Sinceramente, espero que nessa data as coisas já estejam normalizadas, se não... se em outubro não estiver tudo normal, ok, já poderemos ter consequências diferentes, obviamente. Se até lá isto não entrar num ritmo diferente, daqui a seis meses poderemos estar a falar de outra forma”, admite o autarca.

Os apoios aos trabalhadores e empresários

  • Isenção de pagamento da água. Não vai ser cobrada água nos meses de abril, maio e junho;
  • Isenção de pagamento da renda em equipamentos camarários. Quem tenha contratos de arrendamento com a Câmara, como é o caso do restaurante "O Caldeirão" e da padaria, não vão ser cobradas rendas.
  • Câmara em serviços mínimos, com salários na íntegra. A autarquia é o maior empregador da ilha, tem 44 funcionários e, a trabalhar em serviços mínimos, mesmo com várias pessoas em casa paga os salários por inteiro.