As histórias que contamos

A II Guerra Mundial já foi há muito tempo — mas parece que não nos esquecemos desses anos. Conhecemos os horrores, as batalhas, os espiões, os aviões, os avanços e os recuos... Aliás, sabemos hoje bastante mais do que os portugueses que viviam nesses anos, com a guerra bem longe (ou talvez não).

Enfim: saber é uma coisa, viver é outra. Mas, porque me habituei a ouvir as histórias dos meus avós sobre a época, também eu tenho memórias daquele tempo.

As histórias que contamos uns aos outros, à mesa do jantar ou sentados à lareira (ou no sofá, pronto) são uns dos prazeres da vida. Aliás, às vezes a vida parece apenas uma desculpa para arranjar material para as histórias que vamos a correr contar a quem nos importa.

Pois hoje apetece-me contar uma história que o meu avô Manuel conta sobre essa guerra que acabou há décadas e parece que ainda hoje nos persegue.

A guerra numa praia de Peniche

Numa manhã fria do início dos anos 40, quem andasse ali entre Peniche e Atouguia da Baleia veria um avião de guerra a voar demasiado baixo, indo cair numa das praias da zona.

Os populares portugueses — e, lá pelo meio, o meu avô — foram ver se podiam ajudar. Resgataram os ingleses que lá vinham dentro, levando-os para onde se leva qualquer sobrevivente de um acidente de aviação: para um café.

O café ainda hoje lá está — chama-se Avis e fica perto das muralhas de Peniche.

Imaginemos os ingleses de boca aberta, mal refeitos do susto, sentados à mesa do café, com dezenas de portugueses em redor, a perguntar se precisavam de alguma coisa.

— Vai um cafezinho?

— Isso com um bagacinho vai ao lugar!

— Dêem-lhes bife, eles querem é bife!

Os ingleses bem pediam qualquer coisa — mas a língua que lhes saía dos lábios era, por esses anos, tão estranha aos ouvidos daqueles portugueses como o mais exótico dos dialectos da Sibéria.

O certo é que os aviadores caídos não queriam vinho; não queriam bife; nem sequer queriam água, o que muito se estranha.

Ninguém os entendia, eles não entendiam ninguém. Lá continuavam a pedir alguma coisa, sem que ninguém os conseguisse ajudar. Cada vez mais dedos coçavam as atrapalhadas cabeças.

Chega então, na sua carroça, um trabalhador da Quinta da Granja, que vinha entregar vinho ao café. O homem era analfabeto — e tinha um nome que o meu avô não recorda.

Logo que vê o ajuntamento, fura por entre os ombros e aproxima-se dos ingleses. Olha-os nos olhos, ouve o que pedem e declara:

— O que os homens querem é café com leite, já se está a ver!

O dono do café está por tudo. Arranja leitinho com café e oferece aos ingleses.

Os homens arregalam os olhos: era mesmo isso que estavam a pedir!

Bebem o leite e olham então para o homem que os compreendera — desatam a falar-lhe em inglês, pois aquele era, claramente, o único nativo que os compreendia.

O homem, assustado com a algaraviada britânica, corre, salta para a carroça e pisga-se dali, antes de ser nomeado intérprete oficial dos aviadores perdidos por terras de Peniche.

Que avião era aquele?

Depois de ouvir a história, procurei informações sobre os aviões que caíram em Portugal durante a guerra. Não foram poucos. Há mesmo um livro sobre o assunto: Aterrem em Portugal, de Carlos Guerreiro. Encontrei também um website que catalogava as quedas e aterragens forçadas de aviões dos dois lados da contenda: landinportugal.org. O endereço, infelizmente, já não funciona, mas foi lá que encontrei esta descrição da queda do Handley Page Halifax EB178 da Royal Air Force, na zona de Peniche:

Rebocava um planador para o Norte de África quando um dos motores se incendiou. Dirigiu-se para Portugal e largou o planador que aterrou numa praia próxima. O avião despenhou-se num pinhal e incendiou-se. Os tripulantes escaparam mas alguns sofreram ferimentos. Reed, Treleaven e Saunders foram assistidos por médicos e enviados para Hospital Inglês em Lisboa. Nenhum tinha ferimentos graves. Participavam na missão “Beggar/Turkey Buzzard”, com objectivo de transportar planadores para bases africanas. Estes aparelhos iriam participar na Invasão da Sicília.

Para avivar a imaginação, deixo uma foto de um avião do mesmo modelo daquele que caiu numa praia em Peniche…

A descrição do acidente refere um planador. O meu avô lembra-se, de facto, de haver também um planador por ali caído. Terá sido este o avião? Talvez — se foi, chegaram ao Hospital Inglês com uma boa meia-de-leite no estômago.

Gosto de imaginar que, numa família inglesa, há um avô que, durante anos, contou a mesma história, mas vista pelos olhos de um assustado aviador, que ia participar na Invasão da Sicília, mas acabou num café onde se serviam saborosos cafés com leite. O que contará aos netos? O que terá ouvido nessa manhã em que aterrou sem querer numa praia portuguesa? O que terá sentido ao não ser compreendido por ninguém, tirando um homem que vinha numa carroça? E os netos, terão curiosidade por saber mais sobre essas praias longínquas onde o meu avô viu um futuro avô inglês a cair do céu?

Nota: o meu avô Manuel morreu há poucos dias e, assim, decidi repetir esta crónica que escrevi há alguns anos como homenagem. Deixei-a intacta, com os verbos que se referem ao meu avô no presente.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.