Os estudos e as reflexões presentes neste texto testemunham a mobilização de vários sectores da sociedade em prol do conhecimento aprofundado e da democratização no que diz respeito à cultura noticiosa, à literacia mediática, à formação profissional contínua no âmbito jornalístico e ao pluralismo no mercado mediático.

Mobilizar interesses científicos e cívicos sobre a qualidade informativa significa mobilizar interesses para a vida democrática, isto é, interesses que pressupõem a consciencialização acerca do que realmente faz a diferença entre viver numa sociedade que zela pela coexistência entre diferenças ou numa que fomenta separações e alergias entre elas. É sabido, contudo, como a democratização da democracia pode ser um processo infinito, uma vez que as injustiças, desigualdades e prepotências que a minam por dentro e por fora não permitem considerá-la como um sistema fechado ou um processo cujo êxito seja garantido e tautológico. Porém, viver numa sociedade onde os indivíduos possam monitorar, denunciar, apreciar, confirmar ou revogar quem executa e representa o poder (do povo) remete para um paradigma de vida social onde a manutenção da confiança e a inteligibilidade dos processos políticos são consideradas o cimento da sua estabilidade. A mediação jornalística e o pluralismo mediático são chamados a cumprir esta dinâmica de constante averiguação e publicitação, onde a confiança social e as suas crises são encaradas como algo sempre emendável. Pelo contrário, viver num sistema social caraterizado pela opacidade e guerrilha informativa propicia uma cultura antidemocrática onde a desconfiança reina, não sendo encarada como algo emendável, mas como terreno de cultivo lavrado por afirmações arbitrárias e crenças nas virtudes incondicionadas de supostos esclarecidos. Como escreve Gustavo Cardoso no prefácio a este livro, o aumento dos fenómenos desinformativos é especular à multiplicação digital dos processos de produção, distribuição, partilha e uso dos conteúdos mediais, bem como à diminuição do consenso social sobre a autoridade do conhecimento científico. Juntamente com tais tendências, tem vindo a instalar-se a desvalorização do papel social desempenhado pelos profissionais da intermediação jornalística. Como já referimos anteriormente, trata-se de processos que resultam dum conjunto de transformações históricas, políticas, económicas, ideológicas, técnicas e culturais sobre os quais tentámos traçar alguns dos seus eixos marcantes.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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O que é merecedor de destaque é a aparente contradição entre um aumento exponencial dos atores informativos e o atrofiamento (ou a dispersão) da esfera pública. Ao maior número de sujeitos envolvidos nos processos sociotécnicos de produção, partilha e mediação de conteúdos tem correspondido uma maior segmentação, privatização e (propagandeada) desintermediação dos mesmos. Como é possível que um aparente indicador de democratização tenha resultado num cenário quase distópico? Como estabelecer uma dimensão de consenso sobre um tumulto de realidades paralelas e incomunicantes? Como poderão vir a ser consensuais uma comunicação de interesse público e uma partilha de referências coletivas se minadas, ambas, pela rejeição de um solo comum de experiências factuais e verificáveis?

As reflexões e as iniciativas apresentadas ao longo do livro visam explorar, através de abordagens diferentes, os contextos dos problemas levantados por Gustavo Cardoso e as possíveis respostas às inquietações que eles acarretam. De facto, grande parte dos estudos mencionados tentam, de uma forma mais ou menos direta, responder àquela aparente contradição acima referida, a qual também assenta noutra clivagem histórica mencionada: a relativização do conhecimento científico, a desvalorização dos seus sistemas de validação e dos seus representantes. Até não voltar a ser consensual a aceitação de uma dimensão dialética baseada em verdades empíricas e factos tangiveis, e enquanto não for partilhada a confiança no conhecimento legitimado pela deontologia profissional e pelo método científico, poderemos continuar a sofrer a desordem informacional e cognitiva (e, portanto, democrática).

Uma das armadilhas mais insidiosas da cultura da desconfiança, que proporciona vulnerabilidades cognitivas e democráticas face a algumas campanhas desinformativas, reside, de facto, na profusão mediática daquelas que chamámos infopinions, as quais, por sua vez, reforçam o propósito de confundir confiança com crença. Neste sentido, o termo trust (que em inglês remete para confiança e crença ao mesmo tempo) seria um reflexo literal de tal ambiguidade. Desassociar os sistemas de crença dos de confiança é também um trabalho que implica muitas camadas de intervenção, dentro e fora dos media, para desarmadilhar as suas insídias.

Interessa entender, então, se o resgate do valor do conhecimento construído através da articulação entre sistemas de verificação e enriquecido pelas

críticas construtivas mobilizadas por peritos e cidadãos informados podem vir a forjar uma discursividade menos conflituosa e preconceituosa, menos refém do imediatismo sensacionalista e dos maquiavelismos económicos e políticos, mas mais cautelosa no discernimento das suas referências e argumentações. O perigo é o da indiferença entre verdades de factos e opiniões, o esvaecimento da fronteira entre o verdadeiro e o falso, o relativismo do «é tudo igual», uma mistura de confusões que inviabiliza a experiência de espaços comuns e de experiências partilháveis.

De facto, os últimos anos têm sido caraterizados por um fundamentalismo anticientífico, através do qual as suas declinações marcaram vários âmbitos da sociedade, ficando patentes os seus efeitos na qualidade do discurso público, na emergência transnacional de movimentos e representantes políticos, bem como na governação de alguns países de relevo internacional. O cenário antirracionalista tem-se apresentado com tons, enquadramentos e linguagens de justiceiros, sendo os seus alvos os representantes do conhecimento estabelecido e as suas instituições de referência, bem como os cidadãos comuns que nos mais diversos espaços de debate exercitaram a sua normal função crítica refletindo sobre os temas quentes da atualidade e sustentando as suas razões com evidências e referências concretas.

Todavia, como destacámos em relação à emergência de novos conflitos (geo)políticos e das consequentes «guerras híbridas», à retórica das verdades alternativas juntaram-se discursos de ódio contra um leque mais diversificado de símbolos políticos e culturais, orquestrados por grupos ideologicamente radicalizados em torno de interesses autoritários e geoestratégicos, cujas finalidades são as de determinar na opinião pública uma desordem moral e cognitiva capazes de alimentar desconfiança nas democracias, bem como um enfraquecimento das suas instituições em prol de uma nova ordem global. Através de estrategias comunicativas coordenadas entre plataformas online e manifestações de rua, a politização das mensagens desinformativas e das argumentações conspiracionistas têm visado uma sabotatem epistemológica da doxa, a qual deveria representar uma espécie de espaço consensual, um fundo comum prévio a toda a argumentação pública e política (d’Allones, 2020, p. 42), repercuntindo-se malignamente nas frágeis práticas democráticas.

Neste contexto, saber reconhecer o valor de uma notícia ou conseguir veri- ficar a sua fonte é algo fundamental, mas aquilo que parece ser mais premente é analisar e compreender as ideologias subjacentes às histórias que se tornam virais, assim como, ao mesmo tempo, saber promover um discurso público e uma política capazes de integrar sectores diferentes da sociedade dentro uma cosmovisão alternativa àquelas do ódio e do dividi et impera (Müller & Schwarz, 2020). Alguém pode produzir informações com o intuito de enganar, mas quem as partilha pode estar sinceramente convencido que a perspetiva de valores que as contornam seja plausível e mereça ser promovida. O desafio para todo o conhecimento que invoque perícia é também aquele, portanto, de ir aquém e além da capacidade de distinguir entre fontes de conhecimento fiáveis e equivocas, uma vez que o que está em jogo abrange a organização política da sociedade, isto é, o cultivo das raízes do consenso sobre o senso comum. Uma campanha cultural complementar que portanto deveria ser travada, face ao prosperar no discurso público de conteúdos mirabolantes e carrega- dos de ressentimento anticientífico, seria também a de dar a entender como a ciência não é sinónimo de omnisciência, nem de crença. A ciência não se baseia em não cometer erros, mas sim em encontrá-los e corrigi-los. É um processo que, para ser robusto e garantir resultados, deve analisar constante- mente as suas falhas. O método científico remete para uma atitude constante de fact checking, onde se procuram falhas, mas sem o intuito de demolir ou perverter o «horizonte de sentido» que sustenta o raciocínio científico. Todo o conhecimento científico está sujeito a revisão face a novas provas. O obje- tivo da ciência não é produzir verdade indiscutíveis, mas discutíveis (Latour, 2012). A solidez das verdades científicas reside em tal abertura (necessária) à sua (potencial) «refutabilidade» (Popper, 1954). Contrariamente ao designo dos fanáticos e dos movimentos populistas, as razões científicas procuram explorar as zonas cinzentas e irresolvidas do conhecimento para o poder aprimorar e não para o substituir com invenções delirantes que pretendem justificar-se autotelicamente.

Destacar a lógica subjacente ao discurso e ao método científico permitiria semear éticas argumentativas e atitudes críticas alternativas às narrativas desviantes. Os seus anticorpos à especulação arrogante consistem na hipótese de que «existem coisas reais, cujas características são inteiramente independentes das nossas opiniões sobre elas» (Hoover, 1994, p. 298).

Livro: "O Direito de Não Ser Desinformado"

Autor: Vania Baldi

Editora: Almedina

Data de Lançamento: 23 de janeiro de 2025

Preço: € 19,90

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Com a eclosão da desinfodemia entrámos em uma temporalidade histórica que teríamos a tentação de definir como excecional, representativa de uma clivagem epocal. Todavia, assim fazendo, correríamos o risco de cair naquela presunção cultural que o sociólogo Jib Fowles definiu com o termo de «crono- centrismo». Quando, em 1974, Fowles escreveu na revista Futures que cada época e geração histórica têm a tendência em se acharem, ingenuamente, únicas e decisivas, representando o próprio tempo como mais importante do que os outros períodos na história, queria chamar a atenção sobre o enviesamento da compreensão histórica por parte das culturas focadas no próprio presente. Tal enviesamento poderia implicar e levar para uma atitude autocelebratória, bem como de vitimização. Porém, explicava o sociólogo, é comum às diferen- tes gerações que se alternam no palco da história partilhar narrativas sobre o próprio tempo alinhadas com esta ideia de excecionalidade memorável.

Naturalmente, aqui não se trata de relativizar a ameaça representada pela desinformação, mas apenas de salientar que o mundo infocomunicacional e plataformizado (apesar de sitiado pela desordem cognitiva e pelas guerras híbridas) continuará a ser reconhecível, que continuaremos a lidar com as suas ambivalências, com os seus avanços e recuos, envolvidos na eterna dialética entre a busca de novos caminhos e a prossecução dos já conhecidos.

Neste sentido, se olharmos retrospetivamente para a história política do século passado, nomeadamente aquela caraterizada pelos totalitarismos, descobrimos alguma ressonância entre a violência discursiva hodierna e aquele cenário poluído por retóricas e propagandas baseadas em infâmias e imposturas utilizadas como armas políticas. Neste sentido, merece destaque a reedição do livro Refiexões sobre a mentira do filósofo Alexandre Koyré (2021), segundo o qual, escrevia em 1943, os regimes totalitários são «fundados em cima da primazia da mentira», concebendo «a verdade objetiva» desprovida de qualquer sentido, uma vez que o critério de verdade que tais regimes impingem «não é o seu valor universal, mas a sua conformidade ao espírito da raça, da nação ou da classe, a sua utilidade racial, nacional ou social» (Koyré, 2021, p. 11). O estudioso apontava esta deriva cultural, auxiliada pela comunicação de massa, como um processo de mistificação assente no desprezo pela inteligência crítica:

Se nada é mais refinado do que a técnica da propaganda moderna, nada é mais grosseiro do que o conteúdo das suas asserções, que revelam um desprezo absoluto e total pela verdade. E mesmo pela simples verosimilhança. Desprezo que apenas é igualado pelo das faculdades mentais daqueles a quem se dirige, e que implica […]. As filosofias oficiais dos regimes totalitários negam o valor próprio do pensamento, que, para eles, não é uma luz, mas uma arma; o seu fim, a sua função, dizem-nos eles, não é revelar-nos o real, ou seja, o que é, mas ajudar-nos a modificá-lo, a transformá-lo, guiando-nos em direção ao que não é. Ora, na verdade, tal como se reconheceu desde muito tempo, o mito é muitas vezes preferível à ciência (ibidem, p. 10–12).

Pelo contrário, o pensamento reflexivo e socialmente comprometido destaca-se pela sua capacidade de suspender e ponderar o juízo (assim como evidência a etimologia latina do verbo pensar, pendĕre). Neste sentido, deve- ríamos integrar na formação das literacias mediáticas e democráticas o seu exercício, isto é, aquela operacionalização da perplexidade que nada tem a ver com a militarização dos discursos e das opiniões. Enfim, num contexto democrático o direito de expressão deveria reconhecer os seus limites na medida em que se parte do pressuposto de que ele precisa harmonizar-se com outros direitos. Só em democracia os limites à liberdade de expressão não representam uma censura, mas o respeito da comunicação cívica e civilizada, aquela que não prejudica ninguém e é saudável para todos. O direito de não ser desinformado faz parte da família desses direitos.