Desde 1921 que a presidência americana tem uma tradição e nenhum presidente se escusou a ela. Todos os anos, no fim de abril, realiza-se um jantar que se designa como Jantar dos Correspondentes da Casa Branca e que é uma espécie de Roast, o evento televisivo com bem menos tempo em que celebridades de vários quadrantes se dispõem a ir a palco ouvir perguntas difíceis e comentários jocosos sobre si próprios. Com a diferença que, no jantar dos correspondentes, a celebridade é o presidente dos Estados Unidos da América.

Basta recordarmo-nos da lista dos presidentes da América nos últimos 30 anos e veremos que Ronald Reagan foi lá, Bill Clinton foi lá, George W. Bush foi lá, Obama foi lá. Antes deles, todos os outros foram também. Até que chegou Donald Trump que acaba de anunciar que este ano a imprensa até poderá organizar o jantar mas que não lhe guardem lugar à mesa porque não conta ir.

Face à tensão crescente entre o presidente americanos e os órgãos de comunicação social, americanos e não só, esse desconforto é a explicação mais imediata para a ausência. Mas poderá, todavia, não ser a única. Em 2011, Donald Trump participou do jantar dos correspondentes, o terceiro da era Obama, e não levou boas recordações. O jantar aconteceu na recta final de uma polémica promovida por Trump sobre o local de nascimento de Barack Obama com a qual o atual presidente americano tentou questionar a legitimidade do democrata para ser eleito. Por não ser um “verdadeiro” americano.

A polémica terminou de forma pouco honrosa para Trump. Obama exibiu a certidão de nascimento, o tema auto-liquidou-se e no jantar dos correspondentes de 2011, o então presidente não se esqueceu. Com a naturalidade com que sempre se relacionou com vários públicos e com a facilidade das intervenções em público, Obama não deixou que as acusações de Trump passassem em branco. Em palco, frente a uma audiência de 2500 pessoas, a maioria jornalistas ou pessoas do mundo da cultura e espectáculo, Barack Obama ironizou com Trump que se encontrava sentado numa das mesas.

Foram vários minutos de entretenimento político centrado nas acusações do empresário. Obama disse que ia exibir o vídeo do seu nascimento como prova final - e mostrou imagens do Rei Leão. As gargalhadas alastraram na sala. Obama alertou a Fox News [canal de televisão alinhado com o partido republicano e com as forças mais conservadoras] que o vídeo eram uma piada.

"Será que falseámos a chegada à Lua?"

Voltou de novo a Trump. “Agora Donald pode centrar-se no que realmente importa”, afirmou, exemplificando: “será que falseámos a chegada à Lua? O que é que aconteceu em Roswell? E onde estão Biggie e Tupac?”. Mais risos e palmas, e Obama continuou. “Piadas à parte, creio que todos sabemos quais são as tuas credenciais e ampla experiência”. Falou então do reality show de Trump, “The Apprentice”, ilustrando com um episódio recente. Mais risos, mais palmas. E a estocada final, quando Obama rematou com a frase “este é o tipo de coisas que mantém acordado durante a noite. Bom trabalho, senhor, bom trabalho. Sem dúvida, Donald trará a mudança à Casa Branca” e no ecrãs apareceu uma Casa Branca de Trump com uma suite presidencial a dourado e letras em néon cor de rosa.

Trump não gostou e não disfarçou por muito tempo. No dia antes deste jantar, Obama tinha dado a ordem que desencadeou a operação de captura e morte de Bin Laden. Estava em alta. Naquela noite, a sala riu e durante muitos dias o assunto foi tema de conversa. Muitos acreditam que foi nessa noite que decidiu candidatar-se contra Obama. A história acabaria por não acontecer dessa forma. Obama voltaria a ser eleito em 2012, Trump chegaria ao poder em 2016. Durante cinco anos não se redimiu da acusação que se tinha provado falsa sobre o local de nascimento de Barack Obama  - só o faria meses antes das eleições de 2016.

Para a história irá ficar que pela primeira vez, por incapacidade de se relacionar com a imprensa - ou por pura vingança pela noite de vexame em 2011 - um presidente americano romperá com uma das tradições do país. Antes dele, os que faltaram tinham motivos de dimensão inquestionável: a morte de um ex-presidente na mesma data ( William H. Taft em 1930), a entrada dos Estados Unidos na 2ª Guerra Mundial, em 1942 e, no caso de Ronald Reagan, em 1981, por ter sido vítima de um atentado.

Uma associação com mais de 100 anos de história

O jantar dos correspondentes é organizado pela White House Correspondents' Association (WHCA), uma associação que, como o nome indica, congrega os jornalistas que acompanham a vida da Casa Branca e do presidente em exercício. Curiosamente, foi fundada há exatamente 103 anos em resposta a um rumor colocado a circular em 1914, aquando do mandato do presidente Woodrow Wilson, segundo o qual os jornalistas que acompanhavam a Casa Branca seriam escolhidos por um comité do congresso. É à associações que compete atribuir as credenciais necessárias para quem faz a cobertura jornalística na Casa Branca.

O jantar anual é uma tradição que começou mais tarde, em 1921 e que teve como primeiro presidente presente Calvin Coolidge, em 1924. Acontece em regra no último sábado de abril e tem lugar no hotel Washington Hilton. Até 1962, apenas homens podiam assistir a este jantar e foi na presidência de John Kennedy que isso mudou, com o presidente a recusar a presença se as mulheres não fossem convidadas. Antes da 2ª Guerra Mundial, o jantar incluía um  espectáculo musical, mas a partir de 1983 a tradição evoluiu para que passasse a existir um anfitrião que é, em regra, um comediante, tornando-se o evento uma espécie de escrutínio com humor à administração em exercício.

Sendo um ponto alto da agenda política de Washington, o jantar tem sido também alvo de críticas, seja pela excessiva proximidade dos convidados e da classe jornalística à presidência e ao seu staff, seja pela contaminação do espírito inicial do evento por uma certa deriva hollywoodesca, criando um ambiente de celebridades. Este ano, a 29 de abril, a mesa do presidente terá um lugar vazio. Trump será substituído por Mike Pence, o vice-presidente, no ano em que a proximidade da imprensa à Casa Branca é mais do que nunca um tema em destaque pelas boas e pelas más razões.