O incidente no debate setorial com o ministro das Infraestruturas e Habitação começou com uma intervenção do líder do Chega, André Ventura, que, ao questionar os dez anos previstos para a construção do novo aeroporto, disse o seguinte: “Podemos ser muito melhores que os turcos, que os chineses, que os albaneses, vamos ter um aeroporto em cinco anos”.

“O aeroporto de Istambul foi construído e operacionalizado em cinco anos, os turcos não são propriamente conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo”, tinha começado por dizer Ventura, sob protestos de várias bancadas, com Aguiar-Branco a pedir para o deixarem continuar a sua intervenção porque “o deputado tem liberdade de expressão para se exprimir”.

De imediato, o líder parlamentar do BE, Fabian Figueiredo, pediu a palavra para defender que “atribuir características e estereótipos a um povo não deve ter espaço no debate democrático da Assembleia da República”.

Na resposta, o presidente da Assembleia da República disse discordar desta visão.

“Não concordo, porque o debate democrático é cada um poder exprimir-se exatamente como quer fazê-lo. Na opinião do presidente da Assembleia, os trabalhos estão a ser conduzidos assegurando a livre expressão de todos os deputados, não tem a ver com o que penso pessoalmente, não serei eu o censor de nenhum dos deputados”, afirmou.

A líder parlamentar do PS, Alexandra Leitão, pediu também a palavra para questionar “se uma determinada bancada disser que uma determinada raça ou etnia é mais burra ou preguiçosa também pode”.

“No meu entender, pode. A liberdade de expressão está constitucionalmente consagrada. A avaliação do discurso político que seja feita aqui nesta casa será feita pelo povo em eleições”, respondeu o presidente da Assembleia da República.

Aguiar-Branco propôs que “se houver alguém que acha que deve ser feita censura à intervenção dos deputados recorre da decisão do presidente da Assembleia”. “E aí o plenário é que fará a censura, não serei eu”, disse.

Isabel Mendes Lopes, líder parlamentar do Livre, pediu a palavra para sublinhar que “o racismo é crime” e que o que é dito no parlamento “tem consequência direta na vida das pessoas”.

“Não vou dar continuidade a este tema, a Assembleia tem inúmeros mecanismos regimentais para exprimir a sua opinião. Uma coisa pode ter a certeza, não serei eu nunca a cercear a liberdade de expressão”, disse Aguiar-Branco, numa intervenção aplaudida de pé pela bancada do Chega.

Aguiar-Branco: "A nossa Constituição proíbe organizações fascistas e racistas, mas não proíbe expressões individuais de alguém em relação ao fascismo ou ao racismo, isso seria censura”

Mais tarde, em resposta a perguntas dos jornalistas, Aguiar-Branco rejeitou que tenha cometido um erro ao permitir que o líder do Chega, André Ventura, prosseguisse hoje de manhã a sua intervenção, depois de ter proferido afirmações sobre os turcos “.

“Eu não acho que cometa um erro sempre que permita liberdade de expressão (…) Se no exercício responsável ou irresponsável da liberdade de expressão for cometido um crime, o Ministério Público tem condições para acionar uma ação penal, qualquer cidadão pode fazer a respetiva denúncia e pode pedir que seja levantada a imunidade parlamentar”, afirmou.

O presidente do parlamento defendeu que não é “a mesa da Assembleia da República que é o Ministério Público, a esquadra de polícia ou um tribunal popular”.

“Tenho é de garantir que, da esquerda à direita, há liberdade de expressão, não posso ser eu a qualificar a liberdade de expressão ou de opinião como sendo ou não prática de crime”, disse.

Aguiar-Branco defendeu que o Regimento da Assembleia da República “é muito claro” e quando fala e injúria ou difamação “tem a ver com injúria e difamação que seja praticada em relação a outro deputado”.

“Era inaceitável que um senhor deputado pudesse injuriar outro senhor deputado”, afirmou, desafiando os partidos a rever o Regimento se tiverem outro entendimento e alertando que “todos têm telhados de vidro”.

Questionado se o presidente da Assembleia não deve intervir caso haja injúria ou difamação em relação a outros cidadãos ou nacionalidades, Aguiar-Branco disse acompanhar a posição da deputada do PS Isabel Moreira. “Acompanho a deputada Isabel Moreira quando disse uma vez que a nossa Constituição proíbe organizações fascistas e racistas, mas não proíbe expressões individuais de alguém em relação ao fascismo ou ao racismo, isso seria censura”, defendeu.

E deu um exemplo: “Não posso censurar quem diga que Israel está a cometer um genocídio na faixa de Gaza – e com isto está a ter uma atitude hostil em relação a um país -, não posso e não devo, quando quiser participar no debate saio de presidente da Assembleia da República”.

“Até me custa que não se compreenda que eu não possa ser o censor da liberdade de expressão”, disse, insistindo que a sua função é assegurar o confronto de ideias em igualdade de oportunidades a todos os partidos.

Aguiar-Branco reiterou que a Constituição não diz que “a liberdade de expressão é condicionada”, apenas pode ser avaliada a prática criminal dessa expressão. “Nunca encontrarão neste presidente da Assembleia e na sua interpretação que lhe compita condicionar o debate”, disse.

Aguiar-Branco disse não ter problema de que o tema seja discutido na conferência de líderes, como foi proposto pelo PS e acompanhado pelas várias bancadas à esquerda. “Se houver quem entenda que o Regimento deve ser alterado, até no sentido de o presidente da Assembleia ter o poder para censura, que o faça que o proponha”, disse.

O presidente do parlamento lembrou que a atual Assembleia da República é a “expressão da vontade popular do povo português” e considerou que, quando os eleitores forem de novo às urnas, avaliarão “a forma como os seus representantes atuam” no parlamento.

“O que acho que me compete é quem quer que seja, do BE ao Chega, que possa falar de forma a ser audível. Todos têm os seus telhados de vidro, a autorregulação, a autodisciplina será a melhor maneira de termos um debate democrático, que pode ser acalorado, mas não tem de ser a expressão exacerbada das emoções”, afirmou.

PS decidiu levar “linhas vermelhas” no discurso parlamentar à conferência de líderes

Face às declarações de André Ventura e à decisão do Presidente da Assembleia da República de não as impedir, o PS propôs levar à conferência de líderes parlamentares como se deve compatibilizar a liberdade de expressão no parlamento com “linhas vermelhas” como o “discurso de ódio” ou racista, o que mereceu a concordância de Aguiar-Branco.

No final do debate setorial com o ministro Miguel Pinto Luz, a líder parlamentar do PS, Alexandra Leitão, fez uma interpelação à Mesa do parlamento para se referir ao incidente registado minutos antes, quando o líder do Chega disse que os turcos “não eram conhecidos por ser o povo mais trabalhador do mundo”, e o presidente da Assembleia da República recusou censurar a liberdade de expressão de qualquer deputado.

A deputada do PS referiu que, de acordo com o Regimento da Assembleia da República, o presidente do parlamento deve advertir o orador quando este “se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra”.

“Sabemos que a liberdade de expressão é um princípio fundamental, que deve ser compatibilizado com outros, como sejam o bom nome, ou a dignidade de qualquer pessoa, raça ou etnia”, defendeu.

Salientando que existe um crime no Código Penal sobre o discurso de ódio, Alexandra Leitão considerou que no debate de hoje houve “um precedente grave” e anunciou que levaria o tema à conferência de líderes.

“Os deputados gozam, e muito bem, de imunidade pelo que dizem aqui, o que lhes deve dar maior responsabilidade. Deve ser, com o devido respeito, o senhor Presidente a garantir que não se passem todas as linhas de vermelhas”, defendeu, recebendo aplausos de toda a esquerda e do PAN.

Aguiar-Branco concordou em tratar o tema na conferência de líderes parlamentares, mas disse que “na riqueza da democracia e do direito” pode pensar de forma diferente. “As minhas linhas vermelhas não são nunca entre ter ou não ter liberdade de expressão. O juízo democrático será feito pelo povo português, é o meu entendimento”, disse.

André Ventura: “Considero que não fiz nenhuma declaração racista ou xenófoba (…) Se o Ministério Público de Lisboa entender que o que aqui fiz foi um ato racista, não é preciso nenhuma imunidade, eu vou lá pelo meu próprio pé”

O presidente do Chega, André Ventura, acusou o PS de “não perder os velhos hábitos” de quando era presidente da Assembleia Augusto Santos Silva, que considerou não ter sido eleito por “atitudes como essa”.

“Considero que não fiz nenhuma declaração racista ou xenófoba (…) Se o Ministério Público de Lisboa entender que o que aqui fiz foi um ato racista, não é preciso nenhuma imunidade, eu vou lá pelo meu próprio pé”, afirmou.

O líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, disse não se rever nem na posição de Aguiar-Branco nem na das bancadas da esquerda – que apoiaram a posição do PS -, dizendo que “é com estes episódios que o populismo ganha gasolina”, mas concordou em debater o tema na próxima conferência de líderes.

“Como é que é possível que quem quis condenar o Presidente da República a dez anos de prisão por exercer a sua liberdade de expressão venha a esta câmara invocar a liberdade de expressão para dizer o que quer e como quer”, questionou Hugo Soares, numa crítica ao Chega aplaudida pela bancada do PS.

À esquerda, os líderes parlamentares do BE, PCP e Livre e a deputada única do PAN acompanharam a posição do PS, com o bloquista Fabian Figueiredo a pedir a convocação da conferência de líderes com “a maior brevidade possível”.

“Não deixarei na conferência de líderes de tratar o tema e, se ficar convencido do contrário muito bem, mas não será a atmosfera da Assembleia que condicionará o meu pensamento”, avisou Aguiar-Branco, no final de uma série de interpelações à mesa que decorreu num ambiente acalorado e com constantes interrupções.

A IL foi o único partido que não pediu a palavra e só o líder parlamentar do CDS-PP, Paulo Núncio, disse acompanhar a visão de Aguiar-Branco. “Também não acompanhamos o discurso de ódio das bancadas da esquerda quando dizem que os estrangeiros não podem comprar casas em Portugal. Na dúvida, a liberdade de expressão”, afirmou Núncio.

SOS Racismo diz que Aguiar-Branco não tem condições para continuar presidente da Assembleia da Repúbica

Na sequência do que aconteceu no debate parlamentar, associação SOS Racismo defendeu hoje que o presidente da Assembleia da República não tem condições para continuar no cargo, depois de ter afirmado que o uso de linguagem que qualifica raças depreciativamente é admissível pela liberdade de expressão.

Em comunicado, a SOS Racismo “apela ao Ministério Público que instaure os procedimentos legalmente previstos para que as condutas em causa sejam devidamente investigadas”, citando o previsto no Código Penal, no artigo 240.º, no que diz respeito ao crime de discriminação e incitamento ao ódio.

“A liberdade de expressão não pode, nunca, servir de biombo para legitimar o racismo, nem pode, nunca, estar acima da dignidade humana. O Presidente da Assembleia da República prestou, hoje, um péssimo serviço à democracia: legitimou que a Assembleia da República possa ser utilizada como um instrumento para discursos de ódio e práticas criminosas (…)”, lê-se no comunicado.

O documento defende ainda que a atitude de Aguiar-Branco “acabou não só por legitimar todo o discurso de ódio da extrema-direita, como servirá para o amplificar” e que “é função do Presidente da Assembleia da República defender a Constituição, a lei e os direitos fundamentais de todas as pessoas – sobretudo, o direito à dignidade humana”.