Na sessão solene comemorativa do 47.º aniversário do 25 de Abril, na Assembleia da República, Marcelo Rebelo de Sousa recordou o passado colonial português e realçou que os militares de Abril "não vieram de outras galáxias nem de outras nações, nem surgiram num ápice naquela madrugada para fazerem História".
Esses militares "transportavam consigo já a sua história, as suas comissões em África, uma, duas, três, alguns quatro", e tiveram de optar ao serviço das Forças Armadas "entre cumprir ou questionar" e "entre aceitar ou a partir de certo instante romper", enfrentando "situações em que a linha que separa o viver do morrer é muito ténue", referiu.
O Presidente da República afirmou que "os heróis naquela madrugada do 25 de Abril" de 1974 "não eram, não tinham sido militares de alcatifa, tinham sido grandes militares no terreno".
E enquadrou o 25 de Abril como o "resultado de décadas e depois crucialmente grito de revolta de militares que tinham dado anos das suas vidas à pátria no campo de luta", antes de "suscitar o processo popular revolucionário que o seguiu e apoiou" e de se tornar "património nacional, em que o seu único soberano é o povo português".
"Eis por que razão é tão justo galardoar os militares de Abril, tendo merecido já uma homenagem muito especial aquele de entre eles que, depois de ter estado no terreno, veio a ser peça chave na mudança de regime e primeiro Presidente da República eleito na democracia portuguesa, e que sempre recusou o marechalato que merecia e merece, o Presidente António Ramalho Eanes", acrescentou.
A sua saudação aos militares "qualificadamente representados pela Associação 25 de Abril" nesta sessão solene e o elogio ao general Ramalho Eanes motivaram palmas no hemiciclo.
Mais à frente no seu discurso, que durou cerca de vinte minutos, o chefe de Estado defendeu que há que "assumir a justiça largamente por fazer ao mais de um milhão de portugueses que serviram pelas armas o que entendiam ou lhes faziam entender constituir o interesse nacional".
"É prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo, o que houve de bom e o que houve de mau. É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações globais excessivas", sustentou.
Depois de pedir que se assuma "a justiça largamente por fazer ao mais de um milhão de portugueses que serviram pelas armas" na guerra colonial, Marcelo Rebelo de Sousa estendeu a sua mensagem "aos outros milhões que cá ou lá viveram a mesma odisseia".
O Presidente da República mencionou os que estavam "do outro lado" em África "combatendo o império colonial português, batendo-se pelas suas causas nacionais", mas também os que estavam "do mesmo lado" de Portugal e "ficaram esquecidos, abandonados por quem regressou e condenados por quem nunca lhes perdoou o terem alinhado com o oponente".
Em seguida, falou ainda dos portugueses, "quase um milhão, que chegaram rigorosamente sem nada, depois de terem projetado uma vida que era ou se tornou impossível" nas antigas colónias, e dos africanos, "milhões, que sofreram nas suas novas pátrias conflitos internos herdados da colonização ou dos termos da descolonização".
Por respeito por todos, apelou nesta intervenção a que se faça a "história da História" e a que "se retire lições de uma e de outra, sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos própria da democracia".
Referindo-se ao 25 de Abril de 1974, o chefe de Estado declarou: "Como complexa foi a mudança histórica que neste dia evocamos, na sua abertura para a descolonização, para o desenvolvimento, para a liberdade e democracia".
"Desenvolvimento, liberdade e democracia que, sabemo-lo todos, sempre foram imperfeitos, e por isso não plenos, porque nunca tendo resolvido uma pobreza estrutural de dois milhões de portugueses e desigualdades pessoais e territoriais e desinstitucionalizações", acrescentou. Segundo o Presidente da República, a pandemia de covid-19 "veio revelar e acentuar" essas desigualdades.
O chefe de Estado referiu que os que fizeram o 25 de Abril de 1974 "souberam superar muitas das suas divisões durante a revolução e depois dela" e que "nações irmãs na língua" de Portugal "têm sabido julgar um percurso comum olhando para o futuro, ultrapassando séculos de dominação política, económica, social, cultural e humana".
"Que os anos que faltam até ao meio século do 25 de Abril sirvam a todos nós para trilharmos um tal caminho, como a maioria dos portugueses o tem feito nas décadas volvidas, fazendo de cada dia um passo mais as glórias que nos honram e os fracassos pelos quais nos responsabilizamos, e bem assim no construir hoje coesões e inclusões e no combater hoje intolerâncias pessoais ou sociais", apelou.
Marcelo salientou que quem faz este apelo "é o filho de um governante na ditadura e no império que viveu na que apelida de sua segunda pátria [Moçambique] o ocaso tardio inexorável desse império, e viveu depois, como constituinte, o arranque de um novo tempo democrático, charneira, como tantos portugueses, entre duas histórias da mesma História".
"E nem por exercer a missão que exerce [Marcelo] olvida ou apaga a História que testemunhou, como nem por ter testemunhado essa História deixou de ser eleito e reeleito pelos portugueses em democracia - democracia que ajudou a consagrar na Constituição que há 45 anos nos rege", realçou.
"Não há, nunca houve, um Portugal perfeito nem condenado. Só há um Portugal, que amamos, além dos claros e escuros”, concluiu o Presidente da República.
O discurso, aplaudido de pé por todas as bancadas parlamentares à exceção da do Chega, mereceu depois elogios dos vários quadrantes.
Jerónimo de Sousa comentou as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa e chamou a atenção para “a valorização que o Presidente da República fez dos capitães de Abril, do Movimento das Forças Armadas (MFA)”.
Um discurso que, sublinhou, “encaixa bem na intervenção preocupada do presidente da Assembleia da República em relação à democracia, à liberdade, à crescente pressão daqueles que não amam nem amaram o 25 de Abril, que procuram descaracterizar os valores democráticos a pensar num regresso ao passado que o povo português nunca permitirá”.
João Cotrim Figueiredo, do Iniciativa Liberal destacou também o discurso, que disse ter sido "extraordinariamente bem escrito e muito bem lido" e afirmou que "deve ser revisto pela comunicação social e dada a devida atenção, tem muitas mensagens importantes".
Comentários