Publicado originalmente em 2007, a edição revista do livro “Oriente Próximo” (Caminho), que vai ser apresentada na sexta-feira, ganha premente atualidade com a atual guerra em Gaza, abordando o problema a partir da vida concreta das pessoas - judeus, árabes e outras nacionalidades - que habitam o território da Palestina.
Em entrevista à agência Lusa, a jornalista, que regressou recentemente de um mês em reportagem na Cisjordânia ocupada, no Estado de Israel e em Jerusalém, conta que a surpreendeu a que ponto o que se vive atualmente naqueles territórios “já se anunciava” nas páginas do livro – “tanto a autodestruição em curso de Israel, como a expansão da violência colonial em Jerusalém e na Cisjordânia, e o extermínio de Gaza" -, que passam a guardar a origem do que está a acontecer e o que desapareceu entretanto.
“Tornou-se cada vez mais urgente ter a memória do que existiu ali, o que as pessoas viveram e pensaram. No caso específico da Palestina, do que foi deliberadamente apagado em Jerusalém Oriental, na Cisjordânia, e sobretudo em Gaza, onde se passam vários capítulos”, disse Alexandra Lucas Coelho, numa entrevista por escrito, através de 'chat' e correio eletrónico.
Com redação e paginação revista, centenas de “pequenas alterações” e o acrescento de um mapa e um índice onomástico, este é um livro que “mantém toda a variedade original”, cujos capítulos abrangem “sobreviventes do Holocausto, judeus ortodoxos, colonos, várias minorias de Israel, os palestinianos cidadãos de Israel, tribos laicas de Telavive, diversos cristãos da Palestina, muitas partes e personagens da Cisjordânia”.
São igualmente focados “a ‘israelização’ forçada de Jerusalém Oriental (ocupada), e diferentes ângulos de Gaza, desde um concerto ‘hip hop’ a estar debaixo de bombas, dos sobreviventes da ‘Nakba’ aos adolescentes. Muitas mulheres de todas as partes. Várias fações políticas também, incluindo a eleição do Hamas em 2006 (não apenas em Gaza), e o desastre que foram as reações (locais e internacionais) a essa vitória”.
Falando sobre as diferenças que encontrou na sua mais recente deslocação àquela região do Médio Oriente, Alexandra Lucas Coelho conta que o muro que estava em construção se fechou, cercando a Cisjordânia, que muito mais terra foi colonizada e que, hoje, os colonos israelitas em Jerusalém Oriental e Cisjordânia ultrapassam 700 mil (mais algumas centenas de milhares do que em 2007), e continuam em crescimento.
Segundo a autora, desde 7 de outubro (data do ataque do Hamas), vários novos bairros judeus estão em plano ou construção em Jerusalém Oriental, muitos mais colonos foram armados pelo ministro israelita da Segurança Nacional, Ben-Gvir, e, enquanto uns colonos estão na Cisjordânia por razões económicas, outros funcionam como milícia, “que constantemente ataca, rouba, incendeia, rapta e mata os palestinianos, as suas casas, terras, árvores, animais”.
“Em ‘Oriente Próximo’ está a antecâmara disto, como o terror colonial vem de há muito, é um alicerce do Estado. Os colonos não são uma minoria extremista que escapa ao controle do governo. São a carne para canhão do Estado de Israel. A sua política, a sua base, a sua cara, hoje”, afirmou.
Na opinião da jornalista, que começou a fazer reportagem em Israel e na Palestina (incluindo Gaza) no auge da Segunda Intifada (abril de 2002), “o Estado filho do Holocausto, que ia proteger milhões de judeus para que eles nunca mais fossem perseguidos e mortos, esse estado, oficialmente judaico, gerou isto: o único país que se define como uma democracia racial, e que é aceite como democracia, enquanto ocupa, coloniza, rouba, persegue e mata outro povo perante a incapacidade, ou com a cumplicidade, do mundo”.
Por outro lado, “o fosso entre religiosos e seculares em Israel acentuou-se muito. É uma guerra interna, que rói o país por dentro também”, acrescentou, indicando que “há uma nova geração nas ruas muito mais anti-sionista do que as anteriores, que estavam mais próximas da culpa do Holocausto”, que entendem a necessidade de separar judaísmo e sionismo, que recusam a utilização do Holocausto como arma e que dizem “não em nosso nome”.
Questionada sobre como está a reagir a população israelita face ao que se passa em Gaza e na Cisjordânia, Alexandra Lucas Coelho respondeu que em Israel, “apenas uma pequena minoria luta contra a ocupação, e a matança em Gaza”, enfrentando a hostilidade de cada vez mais gente num país onde todos são soldados, com exceção dos palestinianos cidadãos de Israel e dos judeus ortodoxos.
A este propósito, salientou que Israel “é hoje um país muito mais à direita, mais supremacista judaico” e mais indiferente às críticas, até dos EUA.
“O ataque de 7 de outubro não existiria se o Hamas não tivesse sido alimentado por décadas de ocupação, e destruição. Em ‘Oriente Próximo’, há muitas passagens sobre como e por que os palestinianos se voltaram para o Hamas”, afirma, considerando que este movimento “está no poder em Gaza por culpa de Israel, dos EUA, da UE” e que foi “fortalecido pelo cerco e pela violência de Israel, e pela negligência, cegueira ou demissão das potências ocidentais”.
“Nas últimas décadas, o mundo fez de conta que não havia um gueto em Gaza, ignorou que milhões de palestinianos continuavam a ser refugiados. E a inação do mundo desde 7 de outubro é uma tragédia da humanidade”, que “revelou o vazio de muitos pregões da Europa, expôs a hipocrisia, a cobardia, a duplicidade de critérios”, amparadas pela “culpa do Holocausto e medo de represálias, ou de perder negócios, dinheiro, oportunidades”.
Alexandra Lucas Coelho aponta também o dedo aos regimes árabes, “que há muito abandonaram os palestinianos e estão ansiosos pela normalização com Israel”.
Afirmando que “nunca nada assim aconteceu perante os olhos de todos”, reconhece que as soluções de um Estado para todos ou de dois Estados “são difíceis de concretizar”, mas considera urgente um cessar-fogo imediato, porque “não haverá paz para toda a gente que hoje vive em Israel, se os palestinianos não forem livres”.
Citando o filósofo francês, judeu, Edgar Morin, de 102 anos, que em declarações recentes se manifestou chocado com o que está a acontecer em Gaza e disse que “se não podemos impedir podemos testemunhar”, Alexandra Lucas Coelho afirma que este livro é parte do seu testemunho de 22 anos.
“Oriente Próximo” vai ser apresentado na sexta-feira no espaço Maus Hábitos, no Porto, seguindo-se no sábado uma apresentação no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), em Guimarães, e no dia 01 de março na Casa do Comum e no dia 07 na Livraria Poesia Incompleta, ambos em Lisboa.
*Por Ana Leiria, da agência Lusa
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