Durante um mês, as luzes daquele quarteirão na Avenida de Roma, em Lisboa, não acenderam. A Câmara dizia que a responsabilidade não era sua e que o problema era da EDP. Nesse ritmo, lento e burocrático, onde a solução não parecia estar a vista, aquele quarteirão permaneceu sem luz.
No entanto, não foi completamente abandonado à escuridão. Situada no número 11 da Avenida de Roma, a Livraria Barata, com os seus projetores, deu luz, segurança e conforto a todos os que passavam pela rua. E se fosse antes das 23h00, ou mesmo antes da meia-noite, quem quisesse podia entrar, beber um café, saborear as palavras de um livro ou apenas conversar com o livreiro que estivesse de serviço.
“Muitas vezes, nem vendíamos quase nada, mas o facto é que as pessoas contavam estar connosco à noite, muitas vezes pela solidão que tinham em casa”, conta José Rodrigues, sócio-gerente da Livraria Barata, ao SAPO24.
Durante 33 anos, a Barata manteve este horário das 09h00 às 23h00. “Eu depois do trabalho, às vezes ia dar uma volta até à Avenida de Roma e depois ia até à livraria Barata, já com pouca gente, mais à noite. E era um ambiente diferente, convidativo para pegar num livro e sentar-me numa mesa a folhear”, relata Tiago Leitão, cliente da livraria desde os anos 90.
Há uns anos que este horário deixou de ser praticado, mas a Barata continua no mesmo quarteirão, com o ambiente que lhe é tão característico, agora sem qualquer tipo de certeza face ao futuro devido às consequências impostas pela Covid-19.
Não que seja uma novidade este tipo de incertezas para uma livraria independente que, com a grande concentração do mercado editorial, não tem outra hipótese se não a de viver, como diz José, em “processo de resistência” — algo que tem vindo a acontecer ao longo dos últimos anos.
No entanto, nada foi tão impactante para a Barata como a pandemia, que obrigou a que se fechassem as portas durante quase três meses e que colocou a possibilidade de encerrar a livraria para sempre em cima da mesa.
“Há um conjunto de patologias que vêm cronicamente a arrastar-se e a pandemia só as trouxe a nu, porque as empresas ficaram sem liquidez para fazer a sua gestão corrente”, afirma José.
“Até falta o ar” quando se fazem contas ao que se fatura por dia
A Londres Salão, situada na Rua Augusta, também Lisboa, desde 1911, é um desses exemplos. Fecharam as portas a 17 de março, “porque já não havia clientes”, e durante o período de encerramento a “receita foi zero, rigorosamente zero”, relata ao SAPO24, José Quadros, o gestor da loja de tecidos — empresa que está na sua família há 50 anos.
Adiar os pagamentos aos fornecedores e colocar os trabalhadores em 'lay-off' foi a única solução encontrada para gerir um negócio sem receita. “Sem 'lay-off' nem sequer havia dinheiro para os ordenados, como é evidente”, sublinha.
Na Praça do Chile, em Lisboa, ao pé da Avenida Almirante Reis, aquela que era considerada há uns anos como a segunda baixa de capital, encontra-se a casa de noivas Agacri Couture, gerida por Carla Cristina Salsinha há cerca de 25 anos.
A empresa tem as portas abertas há 44 anos. Já teve “muitos momentos altos, bons e maus”. No entanto, “este é o momento mais difícil”. Devido à pandemia, todo o tipo de cerimónias, como batizados e casamentos, foram cancelados e o setor ficou “literalmente parado”. “Estamos a fazer 20% do que fizemos em qualquer mês do ano [passado]”, conta a sócia gerente.
Clara Ladeira, gerente da charcutaria e garrafeira Manuel Tavares, loja situada na Baixa de Lisboa há 160 anos, refere que embora não tenha tido de fechar as portas, porque serve produtos alimentares, o negócio depende muito do turismo e o peso que os clientes portugueses têm “é muito pouco” — o que faz com que o período que a loja está a atravessar seja “muito difícil”. “Estamos com uma quebra de 80% da faturação, em relação a um dia normal desta altura do ano”. “A partir de 18, 20 de março para cá, nada foi como antes”. Quando se vê a “quantia que se fatura por dia, até falta o ar”, conta Clara ao SAPO24.
"Não nos ajudem a fazer a história, façam a história connosco" pedem as lojas
Com o confinamento, foi necessário encontrar meios que permitissem a sobrevivência do negócio e o de quem o leva para a frente.
A livraria Barata não encerrou os seus serviços por completo. “Nós tivemos a vender ao postigo e digo-lhe que custou bastante”, conta o sócio-gerente.
Investiu-se ainda num serviço de entrega ao domicílio. “A logística era muito difícil, mas a equipa portou-se muito bem, foi muito coesa”, congratula-se.
Todavia, as entregas não trouxeram receita suficiente para manter o negócio à tona. A livraria Barata, passado 63 anos de existência, com toda a sua história, teria de encerrar e foi essa a mensagem passada aos clientes que, não querendo aceitar, propuseram a criação de uma angariação de fundos — uma iniciativa que acabou por ser implementada.
“Este projeto não é uma certeza”, diz José Rodrigues, mas ao mesmo tempo dá alguma confiança e mostra o sentido de comunidade entre a livraria e os seus leitores.
“Se perdermos a Barata, perdemos a sua história, o seu património, o seu espaço de dinamização cultural. E perdemos uma das poucas livrarias independentes que restam em Lisboa”, conta ao SAPO24 Rui Martins, cliente da livraria há 30 anos.
A notícia da angariação de fundos espalhou-se depressa e pelas redes sociais e meios de comunicação social leu e ouviu-se muitas vezes a frase “salvar a livraria Barata” associada a esta iniciativa. Contudo, José Rodrigues confessa não ser muito apreciador da expressão. “Eu tenho uma frase que não é minha, mas de que gosto, que associaram a este projeto: ‘Não nos ajudem a fazer a história, façam a história connosco’, porque a Barata é mais do que um negócio".
Para além desta angariação de fundos, não existiu até à data qualquer tipo de apoio financeiro à livraria independente.
No caso da Londres Salão, a empresa recorreu ao 'lay-off', mas também se candidatou às linhas de crédito que existiam. “Nós vendemos tecidos, já tínhamos em casa a mercadoria toda para a estação primavera/verão, que já tinha começado”, justifica.
No entanto, conta José Quadros, os apoios foram “completamente residuais”. "Os apoios que recebi equivalem a 8% da quebra das vendas; e o empréstimo [aprovado em junho] a 25% (...) Foram três meses com financiamento zero”, relata.
A Manuel Tavares também se candidatou aos apoios do Estado, mas o dinheiro acabou por não chegar. “Foi um fiasco”, diz-nos Clara Ladeira que, não só teve de fazer um empréstimo ao banco e adiar pagamentos a fornecedores, como pediu uma moratória de três meses aplicada à renda da loja.
“Em setembro vou começar a pagar o normal, mais o que está para trás. E em setembro as coisas não vão estar normais. Não vale a pena ter ilusões. Mesmo a nível de empréstimos, vai cair tudo na mesma altura, portanto empurram-se um bocadinho as coisas com a barriga, mas os pagamentos acabam por ter que ser feitos”, salienta.
A Agacri Couture, devido à pandemia, viu 80% dos seus casamentos serem transferidos para o segundo semestre de 2021. “O casamento hoje é uma celebração, é um momento de afeto com as pessoas que fizeram parte da nossa vida, portanto, ninguém quer limitações, querem fazer como planeado e como sonharam”, explica Carla Cristina Salsinha.
Assim, a empresa recorreu tanto ao 'lay-off' como ao “capital acumulado” que tinha para “tentar fazer cumprir com as obrigações”. “Quando terminar, temos de recorrer, como qualquer outra empresa, aos financiamentos para conseguir aguentar estes meses, que vão ser duríssimos (...) Não é possível estarmos três meses com faturação zero e outros com 20% daquilo que se faturava”, conclui a sócia gerente.
O futuro vê-se com “apreensão”. Mas a paixão pelo que se faz não lhes permite baixar os braços
Quando questionados sobre como imaginam o futuro das suas lojas, todos os intervenientes deram a mesma resposta: a incerteza é uma constante, mas não se deixa de acreditar que é possível ultrapassar a situação.
O gestor da Londres Salão confessa que será “muito complicado atravessar o ano” se o turismo em massa apenas voltar em setembro do ano que vem. Segundo José Quadros, tudo depende de como a crise evoluir e das medidas que se tomarem.
“Teríamos o maior dos desgostos se tivéssemos de fechar, mas eu acredito que podemos atravessar isto”, afirma.
Para a sócia gerente da Agacri Couture, a situação atravessa-se “reduzindo os custos, trabalhando com estrutura, reformulando, repensando. Neste momento, não se pode pensar em seis meses ou um ano, tem de ser à semana, porque cada semana é diferente”, esclarece.
No que diz respeito à livraria Barata, a angariação de fundos trouxe a possibilidade de a livraria iniciar um novo ciclo. Com a gestão do serviço de entregas ao domicílio durante os tempos de confinamento, nasceu uma plataforma de e-commerce e a consciencialização de que livraria tem que ser “um projeto uno entre o virtual e o real”.
No fundo, embora a incerteza seja uma névoa que impede de ver o futuro com clareza, a vontade e a garra para ultrapassar um dos momentos mais difíceis da história destas empresas não deixa de existir. Como diz a gerente da Manuel Tavares: “pensar negativo também não é solução”.
* Recolha de depoimentos por Carolina Muralha
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