
A legislação eleitoral não estabelece critérios de inelegibilidade para candidatos a cargos políticos baseados em condenações criminais, menos ainda em questões éticas ou morais. Ou seja, ninguém está legalmente impedido de figurar nas listas dos partidos à Assembleia da República, por exemplo, por ser arguido, acusado, suspeito ou ex-recluso.
A lei portuguesa é das mais tolerantes nesta matéria (ver comparação à frente) e a perda de direitos políticos, que pode ser aplicada pelos tribunais apenas como pena acessória, ou seja, decretada conjuntamente com a pena principal, com o objetivo de proteger determinados interesses colocados em perigo, é o último reduto.
O Código Penal prevê, nesta matéria (artigo 346.º), que quem for condenado por crime eleitoral pode ser incapacitado de ser eleito presidente da República, membro de assembleia legislativa ou de autarquia local, por período de dois a dez anos.
Nos últimos 15 anos, vários políticos foram condenados com perda explícita de direitos políticos, incluindo perda de mandato e inelegibilidade. Mas estes casos dizem quase sempre respeito a candidatos a autarquias, onde a legislação é mais apertada.
No que toca à Assembleia da República, os casos de inelegibilidade ficam geralmente a dever-se ao facto de os candidatos pertencerem a outros órgãos - por exemplo, à polícia, o que não é permitido -, mas as questões de natureza criminal ficam de fora.
Isto significa que, legalmente, qualquer um dos 60 acusados no processo Tutti-Frutti, que investiga desde 2018 eventuais favorecimentos a militantes de diversos partidos, sobretudo PSD e PS, pode constar nas listas dos partidos para a Assembleia da República, para as autárquicas ou, até, pode ser candidato à Presidência da República.
O líder do Chega, André Ventura, admitiu há dias ter candidatos a deputados suspeitos e condenados na justiça, mas apenas por crimes que considera menos graves. É o caso de Cristina Rodrigues (ex-PAN), acusada do crime de dano informático.
Para poder ser candidato a eleições em Portugal, basta ter mais de 18 anos, 35 no caso das presidenciais, e nacionalidade portuguesa. Os tribunais apenas exigem saber idade, filiação, profissão, naturalidade e residência, bem como número, arquivo de identificação e data do cartão de cidadão, além de uma assinatura a dizer que o candidato não está abrangido por qualquer inelegibilidade. Quanto ao resto, nada se exige, quer em termos de currículo, quer de registo criminal. A ideia, é que o poder de exclusão de um candidato cabe ao eleitor.
Ao contrário, existem imunidades para os candidatos. "Nenhum candidato pode ser sujeito a prisão preventiva, a não ser em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão maior". Ainda, os processos a correr em tribunal são suspensos durante a campanha: "Movido procedimento criminal contra algum candidato e indiciado este por despacho de pronúncia ou equivalente, o processo só pode seguir após a proclamação dos resultados das eleições". Este artigo, com números diferentes, está presente em todas as leis eleitorais.
Se, por hipótese, o antigo primeiro-ministro José Sócrates quisesse candidatar-se à Presidência, não encontraria qualquer impedimento legal, além das 7.500 assinaturas que qualquer candidato é obrigado a reunir para entregar no Tribunal Constitucional. Um vez aceite a candidatura, todos os processos a correr contra si em tribunal seriam suspensos até aos resultados das eleições serem conhecidos, com todas as consequências logísticas que daí pudessem advir (como a remarcação de julgamentos, por exemplo). Da mesma maneira, se algum partido o aceitasse, Miguel Arruda, implicado no caso das malas, poderia ser e novo candidato a deputado. E, no caso de serem eleitos, a imunidade continua a valer.
De acordo com a Lei Eleitoral da Assembleia da República, não podem ser candidatos o presidente da República, os magistrados judiciais ou do Ministério Público, os juízes, os militares e os elementos das forças militarizadas pertencentes aos quadros permanentes, enquanto prestarem serviço activo, os diplomatas de carreira e os membros da Comissão Nacional de Eleições.
Ainda, não podem ser candidatos os diretores e chefes de repartições de finanças e os ministros de qualquer religião ou culto com poderes de jurisdição, mas apenas pelo círculo onde exercem atividade, ou os cidadãos portugueses que tenham outra nacionalidade e estejam a concorrer por um círculo eleitoral que abranja esse território, caso exerçam cargos políticos ou altos cargos públicos em órgãos desse Estado.
Lei é mais apertada para autarcas
No caso da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais , as coisas mudam ligeiramente de figura. Além do já mencionado, estão impedidos de se candidatar "os falidos e insolventes, salvo se reabilitados", resta saber como se faz prova disso, e "os cidadãos eleitores estrangeiros que, em consequência de decisão de acordo com a lei do seu Estado de origem, tenham sido privados do direito de sufrágio ativo ou passivo", ou seja, de votar e de ser eleito.
De acordo com o artigo 7.º da mesma lei, também não podem ser candidatos aqueles que sejam concessionários ou tenham pedido concessão de serviços à autarquia em causa ou aqueles que tenham dívidas a essa autarquia bem como os respetivos fiadores. Ainda, os membros dos corpos sociais, os gerentes e os sócios de indústria ou de capital de sociedades comerciais ou civis, e também os profissionais liberais que prestem serviços ou tenham contrato com a autarquia não integralmente cumpridos ou de execução continuada, excepto se cessarem atividade até ao momento da entrega da candidatura.
"A admissão das candidaturas é da competência dos Tribunais de Comarca, aos quais cabe verificar a regularidade do processo, a autenticidade dos documentos e a elegibilidade dos candidatos", com explica o Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional atua como tribunal de recurso. O SAPO24 não conseguiu resposta, apesar disso, sobre o número de candidaturas consideradas não elegíveis nos últimos 25 anos.
Mas há casos conhecidos. Em 2013, enquanto cumpria pena de prisão da Carregueira por fraude fiscal e branqueamento de capitais, Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras, quis candidatar-se, mas o Tribunal Constitucional considerou-o inelegível para as eleições autárquicas desse ano, impedindo-o de se candidatar, por estar impedido de fazer campanha eleitoral e de tomar posse.
Outro caso é o de Fátima Felgueiras, ex-presidente da Câmara Municipal de Felgueiras. Em 2003, o Tribunal Judicial de Felgueiras decretou a suspensão de funções como presidente, no âmbito do processo do "Saco Azul", em que estava acusada de mais de 20 crimes, incluindo corrupção, peculato e abusos de poder, o que levou à sua expulsão do Partido Socialista. Em 2005, enquanto aguardava julgamento em liberdade, candidatou-se como independente e ganhou com 47,7% dos votos.
Condenações, recursos, absolvições, prescrições, regresso de processo à primeira instância, a decisão final chegou a 2012 (Fátima Felgueiras ainda teve tempo de se recandidatar em 2009, perdeu e ficou como vereadora). Ainda assim, num segundo processo-crime, Em 14 de dezembro de 2010 voltou a tribunal para responder pela acusação de participação económica em negócio e abuso de poder. O Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a pena de um ano e oito meses de prisão suspensa e Fátima Felgueiras teve de pagar 16.760 euros à câmara municipal.
Mais recentemente, em 2017, Paulo Fonseca, então presidente da câmara de Ourém (PS), foi impedido de se candidatar e o seu nome teve de ser retirado das listas por estar insolvente, uma decisão confirmada pelo Tribunal Constitucional.
Lei da "Ficha Limpa" e as tentativas para moralizar
Em Portugal não existe, até hoje, uma "lei da ficha limpa", como existe no Brasil ou em alguns países europeus. Mas já houve propostas para implementar regras mais duras, como a que o Bloco de Esquerda apresentou à Assembleia da República em 2018.
No Brasil, a "Lei da Ficha Limpa", como é chamada, impede a candidatura de pessoas condenadas por certos crimes, mesmo que estas ainda possam recorrer da decisão, uma medida preventiva da corrupção e promotora de ética na política. Não passou logo na primeira tentativa, mas da segunda vez contou com apoio da sociedade brasileira, 1.604.815 assinaturas. A lei declara inelegíveis por oito anos todos os condenados por um colégio de juízes por crimes como corrupção, uso indevido de recursos públicos, lavagem de dinheiro, crimes contra a administração pública ou abuso de poder.
Em França, uma pessoa pode ser inelegível automaticamente por decisão judicial se for condenada por crimes como corrupção, abuso de poder, fraude fiscal, ou crimes eleitorais. Os tribunais podem determinar inelegibilidade por períodos que vão de um a dez anos e o registo criminal pode afetar directamente o direito de se candidatar.
Em Itália, desde 2012, não podem candidatar-se os políticos condenados, mesmo que ainda haja recurso, se a condenação for por crimes contra a administração pública, corrupção ou má gestão de fundos, por exemplo. A inelegibilidade pode durar até seis anos.
Em Espanha, qualquer pessoa condenada por uma sentença sem mais possibilidade de recurso por crimes dolosos, especialmente corrupção, perde o direito de se candidatar. A lei prevê ainda outras causas de inelegibilidade, como situações de incompatibilidade ética com o cargo público.
É importante notar que existem mecanismos partidários para impedir candidaturas de indivíduos condenados por crimes, embora a aplicação dessas medidas varie conforme o caso e o contexto político.
Recentemente, o Partido Social Democrata aprovou critérios que impedem a inclusão nas suas listas de candidatos que tenham sido condenados em primeira instância ou que enfrentem "indícios fortes" da prática de crimes contra o Estado ou cometidos no exercício de funções públicas. Além disso, determinou que deputados suspendam o mandato caso sejam alvo de medidas de coação privativas da liberdade.
Têm surgido também propostas para reforçar os critérios éticos nas candidaturas políticas. Em 2017, Luís Marques Mendes, agora candidato a presidente da República, sugeriu que indivíduos condenados por crimes graves, como corrupção ou fraude fiscal, fossem impedidos de se candidatar a cargos públicos por um período de dez anos. Em 2018, o Bloco de Esquerda propôs limitar a capacidade de candidatura de pessoas que tenham cumprido penas de prisão por delitos incompatíveis com o exercício de funções públicas.
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