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Em 19 de janeiro de 1729, na fronteira do Caia, fizeram-se grandes festejos para casar duas princesas: D. Mariana Vitória, filha de Filipe V, de Espanha, casa com o príncipe herdeiro de Portugal, D. José. E D. Maria Bárbara, filha de João V, de Portugal, casa com D. Fernando, príncipe das Astúrias e futuro rei de Espanha. Este episódio da História de Portugal é conhecido como «a troca das princesas»: D. Maria Bárbara de Bourbon sai de Portugal para casar com o futuro rei de Espanha; e D. Mariana entra para casar com D. José, que viria a ser rei de Portugal.

Na realidade, o casamento das princesas já estava combinado quando se deu a troca. D. Mariana Vitória, com nove anos de idade, tinha casado em dezembro de 1727, em Madrid, com D. José, futuro rei de Portugal. E D. Maria Bárbara, com doze anos, tinha sido prometida em casamento a D. Fernando de Espanha.

Interessante é saber que D. Mariana Vitória já tinha sido trocada. Em 1722, com quatro anos de idade, tinha sido prometida a Luís XV, de França, e rumou para a corte francesa; enquanto se combinou o casamento do seu irmão mais velho, Luís, herdeiro do trono de Espanha, com Luísa Isabel, filha do duque de Orleães, regente da França. A troca das princesas deu‐se em janeiro de 1722, na ilha dos Faisões, território fluvial localizado perto da foz do rio Bidasoa (País Basco). D. Mariana Vitória de Bourbon não foi feliz na corte francesa. O compromisso do casamento com Luís XV foi quebrado e em 1725, com sete anos de idade, regres‐ sou a Espanha. Era urgente que o príncipe herdeiro francês, na altura com 15 anos de idade, assegurasse a sucessão da coroa, e o tempo de espera até que D. Mariana Vitória atingisse a puberdade foi considerado demasiado longo.

E foi assim que, quatro anos depois, a princesa entrou em Portugal. Para a receber e concretizar a sua união com o príncipe herdeiro D. José, o rei D. João V tinha mandado construir um palácio em Torres Novas. Borges Coelho escreve que a construção do palácio se iniciou em fevereiro de 1728 e se concluiu em dezembro: «o gasto subiu a um milhão de cruzados [...] o palácio media de frente 1720 palmos e 740 de fundo. [...] o palácio foi inaugurado pela comitiva que acompanhava uma noiva para Espanha e trazia outra para Portugal».

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Este casamento foi combinado entre as casas reais, como era costume à época nas famílias nobres. Pouco se sabe dos casamentos populares, mas conhece‐se a vida da maior parte dos portugueses: «ao longo deste meio século a vida dos portugueses esteve longe da opulência ostentada nos palácios, nas igrejas, nos conventos. Eram faustosas e divertidas as procissões e as festas reais, mas o povo pobre e remediado sofreu na carne a falta de mantimentos, revoltou‐se apertado pela fome, o frio e as durezas das condições de vida». D. Mariana Vitória foi rainha de Portugal como mulher de D. José. Exímia caçadora e cavaleira, beneficiou das caçadas e festas desse reinado. A descrição da sua primeira vez com o rei, no dia do seu 14.o aniversário, mostra bem como, no século xviii e na realeza, se viviam as questões da sexualidade nos casais reais: «Na primeira noite, a Rainha fez-me pentear e meteu‐me no leito. Pouco tempo depois chegou o Rei com o meu querido príncipe e meteu‐o na cama comigo e os dois nos cobriram de bênçãos e disseram‐nos coisas muito espirituais muito boas e depois foram‐se embora. Depois o meu príncipe começou a fazer o seu dever muito bem. No outro dia, saímos da cama às dez horas e quando eu estava na toilette deu‐me uma peça de diamantes brilhantes para o pescoço.» Educada na corte francesa, Mariana Vitória sentia a falta das festas de Paris. Embora na corte de D. João V se desse relevo à música, os longos períodos de doença do rei tornavam o ambiente algo triste. E há dados que nos permitem perceber que as relações entre o casal real se vão deteriorando pouco tempo depois da coabitação. Apesar das aventuras extraconjugais de D. José serem sempre discretas (ao contrário de seu pai), os ciúmes aumentavam a cada dia. E culminaram face à amante mais conhecida do rei, D. Teresa de Távora e Lorena, cuja família esteve implicada no atentado contra D. José, dando origem a um negro processo que ensombrou este reinado e a ação do Marquês de Pombal.

D. Mariana Vitória morre em Lisboa, em 1781, com 63 anos. No final da sua vida continuava muita atenta ao marido, sem se preocupar com os segredos do Estado. Os ciúmes, contudo, nunca a abandonaram. Nos teatros proibia a presença de atrizes, sendo os papéis femininos desempenhados por homens. Diziam os estrangeiros: «a Rainha, temendo que o Rei se tome de amores por alguma atriz, não quer que haja nenhuma».

Em 2022 o Tinder, a chamada «aplicação de engates», fez dez anos. A efeméride foi assinalada em todo o mundo. Em Portugal o tema também não passou despercebido. Luís Pedro Nunes, no semanário Expresso de 2 de outubro de 2022, cita o investigador do Instituto Kinsey Justin Garcia: «O Tinder é uma das duas grandes mudanças no acasalamento nos últimos quatro milhões de anos. A primeira ocorreu há 10/15 mil anos quando a agricultura nos fez sedentários e o casamento se estabeleceu como contrato cultural, e a outra em apps como o Tinder, com geolocalização, que transformou a busca por um parceiro num processo similar a pedir comida ou um voo barato».

Nos últimos anos, o Tinder tem sido utilizado não só para quem quer sexo fácil mas também para os que desejam uma relação mais duradoura. Segundo Luís Pedro Nunes, a empresa divulga que foram feitos 530 milhões de downloads da aplicação e 75 mil milhões de matches, dando origem a 1,5 mil milhões de encontros por semana; e o cronista conclui: «Mas há que reconhecer: o Tinder permite que pessoas que nunca teriam hipótese de se conhecer se conheçam. Abre um mundo de possibilidades ao quebrar regras geográficas e sociais (sim) numa sociedade cada vez mais isolada. O que fazem com isso é outra coisa. Na melhor das hipóteses, pode ser mau sexo ou casamento».

Livro: "Para Tão Curtos Amores, Tão Longa Vida"

Autor: Daniel Sampaio

Editora: Caminho

Preço: € 17,90

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Entre a morte de D. Mariana Vitória e os festejos dos dez anos do Tinder decorreram mais de duzentos anos. Nesse longo período, o casamento assumiu múltiplos significados. União matrimonial para selar acordos políticos, compromisso social de uma relação amorosa duradoura, glorificação de um amor romântico, legitimação de filhos nascidos sem pensar.

Na sua investigação sobre as conjugalidades em mudança, Aboim destaca «a transformação do casamento como instituição, que tem vindo a delinear‐se, de forma manifesta, sob várias vertentes da vida privada [...] por uma conjugalização ou uma romantização da união a dois [...] e por uma forte adesão a ideais de igualdade de género, a par, na prática, da massiva expansão do trabalho profissional feminino, mesmo quando existem filhos pequenos no núcleo familiar». E acrescenta: «as mudanças no casamento‐instituição foram agilizadas por um decréscimo da regulação social explícita dos comportamentos privados».

Nos nossos dias, o casamento adquiriu, portanto, diversos significados, mas conservou sempre a negociação entre o «nós» e o «eu» individual de cada um dos parceiros. Se a individualização comportamental é uma caraterística da sociedade atual, assiste‐se à manutenção e transformação do «nós» conjugal, sobretudo depois do nascimento dos filhos.

O Censo de 2021 mostra que a conjugalidade se mantém importante, mas existem múltiplas trajetórias e várias formas de a viver, onde predominam as uniões de facto, que representam agora 11,2% da população (8,1% em 2011) e correspondem a um milhão de indi‐ víduos. Os divorciados dizem respeito já a 8% da população (mais 2,4% do que em 2011) e ultrapassaram a população com estado civil de viúvo. As famílias reconstituídas (em que existe pelo menos um filho não comum ao casal) representam, neste Censo de 2021, 8,8% dos núcleos familiares de casais com filhos: se os casamentos estão a diminuir, os segundos casamentos têm aumentado. Interessante também é o número de filhos nascidos fora do casamento, que atingiu em 2021 a percentagem de 60%, o que prova que o casa‐ mento como condição para ser mãe ou pai tem vindo a diminuir de importância.

Nos últimos anos, é nítida a fragilidade do elo conjugal. Em Portugal a taxa de divórcios (número de divórcios por 100 casamentos) tem atingido números impressionantes, sobretudo desde o início do século XXI. De notar que em 1960 só se registava 1,1% de divórcios, para em 2000 atingirmos 30%, em 2010 chegar‐ mos a 68,9% e em 2020 termos o número recorde de 91,5%, o que estará relacionado com o confinamento devido à pandemia. Em 2021, o número obtido é de 59,5 %, o que quer dizer que se mantém a constatação de que mais de metade dos casamentos termina em separação. Embora não seja possível obter dados estatísticos sobre as uniões de facto, podemos presumir que as ruturas terão dimensão semelhante, porque o que está em causa é a dificuldade de os casais manterem uma relação duradoura.

O divórcio banalizou-se no nosso país, sem que haja grande reflexão sobre o tema. Perante dificuldades e turbulências mínimas, a solução encontrada de modo imediato é a rutura, como se não houvesse a possibilidade de ultrapassar a crise e de se caminhar para outra fase do relacionamento amoroso.

O divórcio é sempre muito difícil quando há filhos e podemos dizer que não há divórcios felizes. A situação é ainda mais traumática quando não há acordo conjugal e se faz intervir o tribunal de família, estrutura judicial muito impreparada para dar uma resposta rápida e adequada, sobretudo no campo da saúde mental. É crucial avaliar a complexa rede de questões psicológicas presentes naquele conjunto de pessoas em sofrimento, através de uma avaliação sistémica da família, a ser realizada por técnicos independentes.

O que se passa na realidade portuguesa é o juiz ver-se confrontado com uma série de relatórios e perícias psicológicas feitas por diversos profissionais que não falam com a totalidade da família e se limitam a detetar sin‐ tomas de perturbação mental, quando o que está em causa são perturbações da personalidade ou interações familiares caraterizadas por criticismo e hostilidade.

As situações de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais arrastam‐se no tribunal e muitas vezes não são tomadas as iniciativas necessárias para a correta resolução dos problemas. Num caso em que tive ocasião de intervir sob o ponto de vista profissional, em que três filhos adolescentes se recusavam a falar com o pai, o tribunal demorou cinco (!) anos a promover um encontro entre o progenitor e os seus filhos, medida essencial que, pelo menos à partida, poderia ter um efeito benéfico na perturbada comunicação familiar.

As causas para este elevadíssimo número de divórcios, uma das mais altas taxas da Europa, nunca foram estudadas com profundidade em Portugal. Várias razões têm sido apontadas, desde o individualismo e narcisismo das sociedades contemporâneas, até ao maior poder das mulheres, insegurança dos homens, ou efeito pernicioso das redes sociais. O que importa é partir de um dado indesmentível: já não há trocas de noivas, como no tempo de D. Mariana Vitória; e a grande maioria dos contratos de casamento têm agora por base o amor e o desejo de conseguir uma relação afetiva a dois.

O problema é que deixou de se aceitar que, numa relação duradoura, são inevitáveis as crises. Ninguém pode estar apaixonado durante muitos anos, mas pode ser possível construir uma relação de amor entre duas pessoas que se estimam e se respeitam. E perante uma crise, poderá haver meios para a ultrapassar, desde que ambos se empenhem para o fazer.

Infelizmente em muitos casais dos dias de hoje a rutura surge ao mínimo sinal de mal‐estar, como se fosse possível viver a dois, durante muitos anos, sem existirem turbulências ocasionais. E então os casais separam‐se, sem que cada um pense por um momento o que poderia fazer pela relação, ou o que conseguiria mudar em si mesmo para reconhecer os sentimentos do outro.

Muitas pessoas casam outra vez. Os divórcios são menos frequentes nos segundos casamentos, mas em muitos casos surgem de novo crises e roturas. A falta de reflexão mantém-se e o discernimento não aparece, o que pode levar a que a inquietação relacional se mantenha quase inalterada.

E muitas pessoas desistem de acreditar no amor de longa duração, como se ele fosse impossível de conseguir. Acumulam então uma série de curtos «amores», ou «casos», numa tentativa de encontrar prazer imediato, ou de acreditar que a sorte lhes trará, mais cedo ou mais tarde, a tão desejada plena realização afetiva. Ao contrário do soneto de Camões, que abre este livro, podemos dizer «para tão curtos amores, tão longa vida».

A investigação tem demonstrado como a necessidade de uma ligação íntima e a disponibilidade do nosso companheiro/a desempenham um papel importante ao longo da vida. Tal como o psicólogo inglês John Bowlby demostrou de forma brilhante na segunda metade do século XX, para crescermos como seres humanos confiantes necessitamos de uma base segura da qual retirarmos força e conforto. Essa base segura depende da ligação que o bebé é capaz de estabelecer com a figura de vinculação, à época desse autor quase sempre só a mãe. Estar vinculado significa que o nos‐ so cérebro fica ligado e pronto para procurar o apoio do nosso parceiro/a, garantindo a sua proximidade física e psicológica. Bowlby acreditava que uma crian‐ ça com vinculação segura transportava essa confiança para as relações futuras, isto é, considerava que as caraterísticas desse apego precoce tinham importância na futura relação amorosa. Voltaremos, ao longo deste texto, à teoria da vinculação de Bowlby, para tratar deste tema que consideramos fundamental: quando duas pessoas adolescentes ou adultas formam uma relação íntima, procuram (e precisam...) regular o bem‐estar psicológico e emocional da outra — essa construção recíproca é a base para a formação de uma relação amorosa de confiança.

Este livro procura debater os amores de longa du‐ ração e as suas vicissitudes. Defende, como veremos, que uma relação amorosa prolongada é um dos ingredientes essenciais do bem‐estar psicológico e até físico. O ser humano necessita, desde o primeiro dia da sua existência até ao instante da sua morte, de estar ligado (conetado). Para nos afirmarmos e realizarmos como pessoas, precisamos de saber que há alguém especial com quem podemos contar. Tal não significa que todos precisemos de casar ou de viver em união de facto, mas necessitamos de ter claro dentro de nós que o isolamento e a solidão não são o ideal para a nossa felicidade; por isso é bom podermos contar com alguém com quem possamos partilhar a intimidade.

Iremos começar por contar a longa relação amorosa da Luísa e do João, desde que se conheceram como estudantes universitários até ao envelhecimento e proximidade da morte.