Em comunicado enviado esta sexta-feira, 7 de fevereiro, às redações, a Procuradoria-Geral da República deixa alguns esclarecimentos sobre o parecer que está a gerar contestação junto dos magistrados do Ministério Público, que fala de uma diretiva lesiva da sua autonomia.
A PGR procura então esclarecer que o parecer do Conselho Consultivo, cuja doutrina a procuradora-geral da República, Lucília Gago, determinou que seja seguida e sustentada pelo Ministério Público, "não atribui ao Procurador-Geral da República poderes acrescidos de intervenção direta em processos, mantendo os poderes hierárquicos que sempre lhe foram conferidos intocáveis".
Mais acrescenta que "as relações hierárquicas entre os magistrados do Ministério Público mantêm-se nos termos em que foram concebidas e consolidadas nas últimas décadas" e que "os magistrados do Ministério Público têm o dever de recusar ordens ilegais e a faculdade de recusar tal cumprimento em casos de grave violação da sua consciência jurídica".
Esclarece ainda este comunicado que "o parecer [do Conselho Consultivo] sustenta que a emissão de uma diretiva, de uma ordem ou de uma instrução, ainda que dirigidas a um determinado processo concreto, esgota-se no interior da relação de subordinação (entre magistrado e o seu superior imediato) e não constituem um ato processual penal, não devendo constar do processo".
“O expediente produzido no estrito domínio das relações hierárquicas, que não deva constar do concreto processo, está sujeito à fiscalização, designadamente no âmbito de inspeções, aos magistrados ou aos sérvios”, acrescenta.
Todavia, "o magistrado do Ministério Público pode, no âmbito desse concreto processo, justificar a posição que assume, eventualmente diversa ou contraditória com as que antes assumiu, com uma referência sumária ao dever de obediência hierárquica. Ou seja, pode referir que está a cumprir uma ordem, mencionando mesmo, se tal se justificar, a existência de um suporte escrito extraprocessual de tais comandos hierárquicos".
Por que contestam os magistrados esta nova diretiva?
O parecer do Conselho Consultivo, cuja doutrina Lucília Gago determinou que seja "seguida e sustentada pelo MP", prevê que a hierarquia do MP pode intervir nos processos-crime, "modificando ou revogando decisões anteriores".
Segundo o parecer, nos processos-crime a intervenção da hierarquia e o exercício dos poderes de direção do MP não se circunscrevem ao que está previsto no Código de Processo Penal, "compreendendo ainda o poder de direção através da emissão de diretivas, ordens e instruções, gerais ou concretas".
O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) decidiu impugnar judicialmente a diretiva por considerar que as novas orientações da PGR representam “o maior ataque à autonomia dos magistrados alguma vez efetuado no regime democrático”, acrescentando que se trata da “morte do Ministério Público”.
O sindicato, liderado por António Ventinhas, vai também recolher assinaturas junto de todos os magistrados do MP solicitando que seja revogada a nova diretiva e pedir à presidente do Conselho Superior do MP o agendamento da discussão do parecer do Conselho Consultivo da PGR.
Lucília Gago “está isolada internamente como nenhum outro titular do cargo esteve”, segundo o sindicato e, a manter-se esta diretiva, “dificilmente a procuradora-geral da República terá condições para exercer o seu mandato”.
O parecer do Conselho Consultivo da PGR surge numa altura de controvérsia no seio do MP sobre o conflito latente entre autonomia dos procuradores e poderes da hierarquia do MP, tendo um dos casos concretos conhecidos resultado da investigação ao furto e achamento das armas de Tancos quando os procuradores titulares do processo quiseram inquirir o primeiro-ministro, António Costa, e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o que foi inviabilizada pelo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Albano Pinto.
O sindicato considera que “o processo é, desde o início, questionável, porquanto o novo Estatuto do MP clarificou os limites da intervenção hierárquica”, mas que, “ainda assim, a PGR decidiu solicitar ao Conselho Consultivo a emissão de parecer sobre a matéria que, de imediato, transformou em diretiva”.
“É com muita preocupação que vemos o Conselho Consultivo chancelar posições indefensáveis, não se olvidando que neste caso se trata de ‘um fato à medida’ de Tancos”, lê-se no comunicado, que adverte que “os verdadeiros inimigos desta magistratura se encontram dentro de casa e não hesitam em destruir todos os avanços consagrados na lei”.
O SMMP adianta que, até agora, as ordens hierárquicas do Processo Penal ficavam documentadas no inquérito e que “o que a diretiva vem agora dizer é que não só os superiores hierárquicos podem interferir no rumo das investigações como devem fazê-lo de forma oculta e fora do processo próprio, o que é manifestamente ilegal”.
“Neste novo regime que se pretende implementar, os superiores hierárquicos darão ordens como, por exemplo, determinar que não se abram inquéritos, escolher ou retirar os elementos de prova que entendam , determinar o arquivamento de um processo ou formular a acusação contra um arguido, mas não assumirão os seus atos. Esta prática contribuirá rapidamente para a sua desresponsabilização e intervenção abusiva e arbitrária sobretudo nos processos mais mediáticos”, denuncia.
O sindicato afirma que “ninguém saberá o que realmente se passa nas investigações criminais, pois algumas das decisões mais importantes serão tomadas num processo paralelo que ficará oculto algures num cofre”.
“Noutros tempos ficaram bem conhecidos os célebres despachos referentes ao processo Face Oculta que foram escondidos na PGR. Agora pretende instituir-se esta prática por diretiva e escondê-la a todo o país. Nem o doutor Pinto Monteiro [ex-PGR] foi tão longe”, critica.
A estrutura sindical sustenta que a diretiva “pretende instituir um sistema maquiavélico e cobarde em que quem dá as ordens fica na sombra e não as assume, deixando que o aparente titular da investigação acarrete com tal responsabilidade”.
O sindicato afirma que “os magistrados do MP são a favor de uma hierarquia no interior da instituição e que esta exerça os seus poderes, mas opõem-se a um regime hierárquico que funcione à margem da lei, de forma opaca e sem qualquer escrutínio”.
“É possível gerir o MP com respeito pela interna dos magistrados, como já provaram anteriores procuradores-gerais da República e outros hierarcas”, conclui.
O risco de um "divórcio completo entre a PGR e os magistrados do MP"
Segundo António Ventinhas, se Lucília Gago "não arrepiar caminho" e continuar na senda desta diretiva, promovendo um "poder absoluto, sem controlo, secreto e oculto", haverá a "curto prazo" um "divórcio completo" entre a PGR e os magistrados do MP.
O dirigente sindical considerou que, a manter-se, a situação não será gerível, pois os magistrados "repudiam claramente esta diretiva".
O presidente do SMMP considerou que a PGR "irá depender dela própria" para ter condições para "continuar ou não" a dirigir o MP, pois se continuar "com o caminho como até aqui, com este tipo de diretivas, existirá um divórcio completo entre a PGR e os magistrados do MP" e será "muito difícil gerir uma organização em plena revolta".
Caso Lucília Gago insista neste diretiva e "nesta senda", isso causará uma "grande revolta" e "uma falta de empatia para com quem dirige" o MP advertiu, acrescentando que tal situação “será extremamente gravosa e implicará dificuldades no exercício das funções" da PGR.
António Ventinhas realçou que vários elementos da própria hierarquia do MP estão contra esta diretiva, sendo exemplo disso a intervenção do ex-vice-Procurador-geral da República, Adriano Cunha.
O parecer do Conselho Consultivo e o estudo de Luís Fábrica surgem num momento de controvérsia no seio do MP sobre o conflito entre autonomia dos procuradores e poderes da hierarquia do MP, tendo um dos casos concretos resultado da investigação ao furto e recuperação das armas de Tancos quando os procuradores titulares do inquérito quiseram inquirir o primeiro-ministro e o Presidente da República, diligência essa que foi inviabilizada pelo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Albano Pinto.
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