Paul French, sendo inglês, tem a opinião dos ocidentais. Mas, como vive em Xangai há muitos anos, conhece bem a visão do mundo dos orientais. O seu mais recente livro, “Coreia do Norte – estado de paranoia” (Desassossego, Lisboa, 2019) explica a chave do pensamento dos norte-coreanos e relata como eles vivem em grande pormenor. French esteve em Lisboa por ocasião da Feira do Livro e tivemos oportunidade de trocar impressões com ele.

Li uma série de artigos no “New York Times” sobre a China que diz, resumidamente, o seguinte: na Rússia, aquando da queda do regime comunista, fizeram-se mudanças políticas – o fim do partido único -, mas não se procedeu a alterações do sistema económico, e as coisas correram mal; na China eles acompanharam os acontecimentos e fizeram o contrário: uma revolução na economia sem alterar o regime político, e funcionou. Toda a gente previa que não daria resultado, mas deu.

Exatamente. Os russos fizeram a glasnost e não a perestroika.

No caso da China, o que os pensadores ocidentais achavam é que se se fizessem as reformas económicas chegar-se-ia a um ponto em que as pessoas iriam exigir certas liberdades. Mas não aconteceu, pelo menos até agora.

A China é um país muito nacionalista. Os dirigentes chineses fizeram um acordo com o povo. O Partido Comunista disse-lhes: “A vossa vida vai melhorar”. Desde 1989, com os acontecimentos de Tiananmen, faz trinta anos agora, em junho. “Deixem-nos manter o poder e a vossa vida tornar-se-á materialmente melhor.” E foi o que aconteceu a muitos milhões. Podem ir a Paris comprar Vuitton e voltar para casa. Compram apartamentos e coisas assim. E, evidentemente, disseram aos norte-coreanos para fazer o mesmo.

Mas na Coreia do Norte (CN) não fizeram nenhuma das mudanças.

Nenhuma mudança. Para eles os russos, e depois os chineses, não fizeram mais do que trair o socialismo.

Antes de ler o seu livro nunca tinha ouvido falar na filosofia deles, o Juche.

Bem, o Juche é assim: pega-se no marxismo-leninismo – muito Estaline, nada de Mao, nem Trotsky, nada de revolução permanente – e junta-se elementos do confucionismo tradicional. Os chineses também seguem algumas tradições: pai para o filho, do avô para o pai... O processo introduz uma hierarquia codificada no marxismo-leninismo tradicional e no papel do partido, e depois no papel do indivíduo dentro do partido. O culto da personalidade, que Estaline, Mao e Ceaucescu cultivavam. A CN é a primeira monarquia comunista.

"Chegou-se ao ponto em que quando os sul-coreanos ouvem os norte-coreanos, parece-lhes bizarro. É como se eu, que sou inglês, estivesse a ver um filme inglês da década de 1920."

Mas de facto não é comunismo, porque os princípios do comunismo incluem uma igualdade, a inexistência de classes sociais.

A questão é que o sistema económico a que os norte-coreanos se agarraram, e que destruiu o país, é o estalinismo clássico, de economia planeada. Foi assim que os chineses perderam para o Estados Unidos (no desenvolvimento económico), até que Deng Xiaoping mudou as regras.

Mas a CN não tem a massa crítica da Rússia e da China, nem população, nem matérias primas. É um país pequeno e pobre.

São 22 milhões de pessoas. Não têm petróleo nem gás, muito pouco carvão. O carvão é sujo, um mau combustível. Não têm muita terra arável, há secas terríveis seguidas de inundações... Sempre tiveram problemas. São pessoas duras, num país agreste.

A civilização coreana é mais antiga do que a chinesa. A China desenvolveu-se depois e o Japão ainda mais tarde. Talvez por isso, os coreanos são realmente empenhados, implacáveis. No Norte há um comunismo distópico, muito orwelliano, e no Sul pratica-se um capitalismo de tal maneira competitivo que as crianças se suicidam quando têm más notas. É uma experiência social única: temos amostras iguais, aplicamos-lhes sistemas opostos e os resultados são igualmente extremos.

Hoje chegamos a uma situação em que a diferença é enorme, muito maior do que nas duas Alemanhas. Chegou-se ao ponto em que quando os sul-coreanos ouvem os norte-coreanos, parece-lhes bizarro. É como se eu, que sou inglês, estivesse a ver um filme inglês da década de 1920. A língua no Norte não mudou, porque a vida também não mudou.

Numa sociedade aberta ao mundo há sempre palavras e expressões novas, com as mudanças no modo de vida a evolução dos equipamentos, não é?

Exatamente. Os norte-coreanos não têm palavras para descrever as tecnologias que os sul-coreanos usam. Mas também não têm as palavras que são usadas no comércio internacional. Não percebem o que são direitos aduaneiros. Não têm computadores para fazer as coisas online, ainda usam os antigos impressos. Muita burocracia data da ocupação japonesa.

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Li  algures que os rádios deles não têm botão de sintonização, porque só podem ouvir a estação de rádio oficial.

É verdade. E podem baixar o som, mas não os podem desligar. As emissões da rádio oficial ouvem-se também nos parques e nas ruas. Todas essas histórias são verdade, como, por exemplo, eles terem fotografias dos líderes em casa. Conta-se que um tipo morreu num incêndio porque quis entrar na casa a arder para salvar as fotografias. Se não o tivesse feito, alguém ia perguntar porquê. E também há essas fotografias nas carruagens do metro. Há estátuas em toda a parte, até nas escolas.

Quando lá esteve, não teve medo?

Não, não tive medo. Pyongyang em especial é um sítio muito estranho. Não é como uma cidade chinesa em que a qualquer hora há milhares de pessoas nas ruas. Carros, bicicletas. No sudeste asiático, no Vietname, em Jacarta, é sempre assim, um enxame contínuo de lambretas, motorizadas. E há porcaria por toda a parte, as casas e o mobiliário urbano mal construído e mal conservado. Em Pyongyang não há ninguém na rua, não há pessoas sem-abrigo, não se veem muitos carros ou autocarros. Nem lixo, porque não há nada que produza lixo, não há embalagens. Não têm o problema dos plásticos que agora preocupa toda a gente. As pessoas estão em casa ou no escritório, onde trabalham durante longas horas. Não são particularmente produtivos, mas ficam lá muito tempo. Então, um ambiente assim é estranho.

"Os Kim não têm nenhuma saída. Não são como os ditadores africanos, que podem meter-se num avião e ir viver em Nice. Os chineses não os aceitariam e os russos também não. Basicamente, o Kim 3 vence ou morre. Como o Gaddafi."

Como se estivesse no cenário dum filme sem a presença dos atores.

É, de facto, um cenário. Viver em Pyongyang é um privilégio e ninguém que tem essa sorte faria o que quer que fosse para perder a sua situação. Teria de ir para o campo ou para as outras cidades, onde a situação é desesperada.

Eles passam fome, mesmo?

Este ano vai ser realmente mau. Na década de 1990 tiveram muita fome e não há dados oficiais de quantas pessoas morreram, mas calcula-se que tenha perecido dez por cento da população.

Há esta teoria segundo a qual o Kim 3 (como você lhe chama...) viu o que os americanos fizeram com ao Gaddafi e é por isso que não acredita em compromissos internacionais. (O líder líbio em 2003 abdicou do seu programa de armas nucleares a troco do levantamento de sanções económicas e foi derrubado em 2011 por uma sublevação apoiada pelas potências ocidentais, nomeadamente os Estados Unidos.)

Acho que, primeiro de tudo, eles viram o que aconteceu na Rússia. E, segundo a perspetiva deles, o que aconteceu na China ainda antes disso. E, claro, assistiram à “mudança de regime” no Iraque e na Líbia. A outra coisa é que os Kim não têm nenhuma saída. Não são como os ditadores africanos, que podem meter-se num avião e ir viver em Nice, na Riviera. Eles não têm para onde ir. Ninguém os quer. Os chineses não os aceitariam e os russos também não. Basicamente, o Kim 3 vence ou morre. Como o Gaddafi.

Pensei nesta situação... Não é que os chineses gostem do regime da CN. Os chineses gostam deles próprios e de mais ninguém. Mas a CN é como um cãozinho que os chineses deixam com uma rédea comprida, para morder as canelas dos americanos. O Trump queixa-se, e os chineses retrucam que os cãezinhos são assim, nem sempre obedecem ao dono. Assim mantêm os americanos sob tensão sem se envolverem diretamente.

Isso aconteceu até à cerca dum ano. Passei cerca de quatro meses a viajar dentro da China. Quando estou em Pequim, falo sempre com pessoas que se dedicam ao tema da CN, membros do partido e académicos, e eles dizem sempre que os norte-coreanos são doidos, é preciso fazer alguma coisa a respeito das armas nucleares. Não querem uma guerra nas suas fronteiras porque, como você diz, a única coisa que lhes interessa são eles próprios. Não querem um problema de refugiados. Assim, estabeleceram algumas sanções, reduziram os envios de petróleo e os negócios bilaterais. Apertaram com as sanções e o controlo das contas bancárias. E estão dispostos a continuar.

Mas sem a China, a CN não tem hipóteses de sobreviver.

Eles estariam dispostos a trocar uma redução das armas nucleares por um aumento de fornecimentos vitais. Para eles, não são quantias significativas. Mas tudo isso parou quando o Trump começou a guerra económica com a China. Agora, tudo o que os chineses possam fazer para chatear o Trump, fazem. Trump não tem qualquer apoio da China quanto à CN. Anteriormente, quando ele falou com o Xi Jinping, o líder chinês concordou em colaborar, mas agora já não.

Não acha que o Trump fez um grande favor ao Kim Jong-un quando se encontrou com ele?

Claro. Proporcionou-lhe a fotografia. Mostrou-o como um líder mundial perante o seu povo. E ele nem precisou de fazer nada. Porque o Trump não estava informado de todos os dados da questão. Falaram daquilo a que se chama um “percurso” (“road map”), estabelecimento a partir duma confiança mútua. Mas não decidiram como seriam verificadas as armas nucleares. Outro presidente poderia ter proposto uma verificação feita, sei lá, pelos suecos, que são considerados imparciais por toda a gente. Ou a Agência Internacional de Energia Atómica, em Viena. Ou as Nações Unidas. Podia ter proposto uma coisa assim. E assim se poderiam levantar algumas sanções sobre o petróleo. E depois verificar o desmantelamento dos mísseis. Os suecos iriam lá ver. Em seguida levantar as sanções sobre produtos farmacêuticos. Podiam ter sido decididas coisas que ajudariam as pessoas (da CN). Petróleo para manter as luzes acesas, produtos farmacêuticos para manter a saúde pública.

 "Agora, tudo o que os chineses possam fazer para chatear o Trump, fazem. Trump não tem qualquer apoio da China quanto à CN"

Pois, eu achei que o Trump, a troco de uma exibição que ele tanto gosta, deu uma exposição maior ao Kim.

Ele não percebeu o que estava em jogo. Não tem o hábito de se informar de antemão. Não é pessoa para perguntar aos seus especialistas nos Negócios Estrangeiros, pessoas que têm uma experiência acumulada de dezenas de anos a lidar com a CN. Achou que estava a fazer um negócio imobiliário em Manhattan.

Um primário como o Trump, encontrar-se com enigmático como o Kim, que tem séculos de pensamento por trás...

E que foi aconselhado pela China, e pelo Putin... A única coisa que acabou por se conseguir é que a Coreia do Sul agora sabe que não pode passar por Washington para negociar. Deve dirigir-se diretamente à Coreia do Norte.

Acha que a CN lançaria um míssil nuclear na Coreia do Sul?

Não, não acho. Mas acho que a Coreia do Sul continua com essa preocupação. O Trump, quando falou com os do Sul para que amaciassem o Norte, não compreendeu que os dois são coreanos. E agora, há poucas semanas, vimos o Shinzo Abe no Japão dizer ao Trump que o compreendem, mas que têm de ser eles a tratar do assunto. Porque eles estão na mesma região e há muitos norte-coreanos no Japão. Portanto o que ele conseguiu foi que a CN e o Japão falassem diretamente.

Todos eles querem os Estados Unidos fora da equação.

Era bom que os Estados Unidos fizessem parte da equação. Têm cerca de trinta mil homens na Coreia do Sul e a Armada do Pacífico. Mas, neste momento, não há nenhum dirigente americano com quem falar. Se formos procurar os americanos com uma experiência real da questão coreana, estão todos reformados ou demitiram-se. Décadas de experiência perdidas.

Lá nisso, os ingleses são melhores em relações internacionais. Sempre souberam proteger muito bem os seus interesses.

Se acontecer alguma coisa na CN, se houver um golpe de estado... Não nos devemos esquecer que pode haver outra fome.

Poderá haver um golpe de estado na CN?

A possibilidade existe sempre. Pois, embora o Kim pareça forte depois do encontro com o Trump, e embora ele continue com as armas nucleares, não está a alimentar os seus.

Você menciona que o líder continua a ser o Kim Il-sung (o primeiro Kim) e os outros estão apenas a representá-lo. Isso dificulta a probabilidade duma revolução. Não se pode apear um líder simbólico.

O que eles podem fazer, que foi o que o Deng Xiaoping fez na China, é dizer que o líder histórico, o Mao, foi setenta por cento bom e trinta por cento mau. Não vamos pedir desculpa de nada, mas vamos mudar algumas coisas.

Mas você também diz que isso é impossível na CN.

De momento, é impossível. O que tem a ver com ser uma monarquia. É difícil que o Kim Jong-un diga que o pai e o avô erraram nalguma coisa. O Deng Xiaoping falou nas percentagens em 1978. E mudou muita coisa; 25/75%, ou 20/80%, mas mudou.

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Os chineses têm as suas próprias redes sociais, que são ainda mais superficiais do que as nossas, porque não se pode publicar nada contra nada... Mas acha que a China pode vir a mudar politicamente?

Acho que com o Xi Jinping é mais difícil. É isso que eles continuam a tentar convencer os norte-coreanos: se colocarmos dinheiro no bolso das pessoas, podemos manter-nos no poder. Perestroika sem Glasnost. Como isso aconteceu a partir de 1978, a China entrou num processo semelhante ao descrito por Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”.

"Na CN mantêm o controlo sobretudo apelando para o nacionalismo, aquilo a que eu chamo uma vitimização teatral: os livros, a comunicação social, todas as fontes de informação dizem que o país está a ser atacado"

Essa comparação é interessante, porque toda a gente fala do “1984” do Orwell, mas essa situação só existe na Coreia do Norte. O perigo, no mundo ocidental, é muito mais cair na situação do “Admirável Mundo Novo”. (No livro, as pessoas não se preocupam com a tirania porque são condicionadas geneticamente a aceitar a sua posição na escala social.)

A China vive em parte na situação imaginada no livro do Huxley. Consumismo, basicamente. Pode-se ter um apartamento e um carro, fazer turismo, comprar Louis Vuitton e Burberry. Isso é o mais importante para os chineses, que são o povo menos comunista do planeta. Para eles o que conta é a família, o dinheiro, poupança, tudo isso. Podem fazer tudo, desde que não questionem o poder. Se alguém questiona, é reprimido violentamente. O que ouvimos dizer em Pequim e em Xangai é que as pessoas não devem causar problemas. Como ocidental, vejo que há uma maneira fundamentalmente diferente de abordar essas questões. Mas isso não vale na China, com a História que tem.

Na CN mantêm o controlo sobretudo apelando para o nacionalismo, aquilo a que eu chamo uma vitimização teatral: os livros, a comunicação social, todas as fontes de informação dizem que o país está a ser atacado. Na televisão, afirmam que a Europa os quer destruir e mostram uma fotografia do Jean-Claude Juncker. E eu fico a pensar, aquele não quer destruir coisa nenhuma! E isso foi antes de chegar o Trump. Portanto, há esta ideia de que devem ter armas nucleares, devem ter um exército de um milhão num país com 22 milhões de habitantes. Têm de sofrer para ser auto-suficientes. Quando vamos à Praça Vermelha, em Pyongyang, vemos imagens de Marx, Estaline e Kim Il-sung. Não vemos nem o Lenine, nem o Mao. Estaline representa o poder do Partido Comunista e o nacionalismo. Estaline é a auto-suficiência; não depender de ninguém para nada. Agora, é difícil para eles, quando não conseguem alimento suficiente. Mesmo considerando o conceito Juche de auto-suficiência e os alimentos que têm de vir de fora.

Quando esteve lá, notou nessa situação?

Vi alimentos que tinham chegado dos Estados Unidos. Os americanos deram-lhes muito arroz, mas colocaram-no em sacas com bandeiras dos Estados Unidos e a inscrição “Presente do povo americano”, com a condição das sacas não serem substituídas, se não paravam de enviar. Então o Governo disse às pessoas que a CN tinha vencido a disputa sobre as compensações pela Guerra da Coreia. Era um presente do povo americano para pedir desculpa do que acontecera em entre 1950 e 1953. Mas esses envios agora foram interrompidos e as pessoas estão realmente esfomeadas.

Voltando àquela comparação de livros, enquanto a CN está a viver uma espécie de “1984”, aqui, no Ocidente, estamos mais em perigo de viver “Isso não pode acontecer aqui”, do Sinclair Lewis. “1984” era mais Estaline, Hitler e Ceausescu. Li que o Ceausescu foi à CN e ficou tão impressionado com as paradas populares que as importou para a Roménia.

E os edifícios de apartamentos, também. Quando vamos a Pyongyang vemos uma arquitetura habitacional desenhada como em Bucareste. Então, quando quis fazer um programa de televisão para mostrar como é a CN agora, bastou ir a Bucareste, substituir os cartazes com outros escritos em coreano e ficou igualzinho a Pyongyang!

Erich Honecker (Presidente da República Democrática Alemã entre 1976 e 1989) quando foi deposto queria ir viver na CN.

Mas ele foi preso, não foi?

Foi. E o Ceausescu também estava a pensar ir para a CN. Era um dos únicos países onde eles poderiam viver depois de depostos.

Os Ceausescu, ele e a mulher, foram fuzilados. Mas o Enver Hoxha (Presidente da República Popular da Albânia entre 1944 e 1985) morreu de morte natural.

Lembro-me de ver propaganda albanesa e eles na década de 1970 ainda transportavam as coisas em carros de bois.

Eles adoravam o Enver Hoxha.

Ele também achava que os russos eram revisionistas. E depois, os chineses.

Era a prática do marxismo-leninismo. E a seguir, o maoismo. Claro que os norte-coreanos detestavam o Mao. A questão era ter o controlo total. O que os preocupava no Mao era a ideia da Revolução Permanente, que não é um conceito confucionista. Na altura Mao dizia que os confucionistas estavam desatualizados. E os norte-coreanos retrucavam que não era nada disso, o filho deve seguir o pai.

Isso é o mais interessante da CN, essa combinação da tradição milenar com o marxismo do século XX.

Pois, o clã, a família. A hierarquia. E na direção do Partido dos Trabalhadores da Coreia estão muitos membros da família alargada. Por isso é que o Kim Jong-un, quando precisou de provar ao exército que era forte, mandou matar o tio.  Tinha de mostrar que podia matar alguém da hierarquia mais alta do partido. E a maioria deles tinha algum tipo de relação familiar com ele. O primo segundo, o terceiro... É por isso que às vezes se compara com a série de televisão “Os Sopranos”. É como na máfia. Mas este ano as coisas pioraram. Estão a viver com uma ração diária de 300 gramas de arroz. E agora, que é a altura de plantar o arroz, há uma grande seca. Sem água, ninguém consegue plantar nenhum arroz. O clima deles varia entre a seca extrema e as inundações. As Nações Unidas calculam que só conseguem 50% dos fundos necessários para alimentar a população.

Mas eles conseguiram apropriar-se de muito dinheiro através da pirataria informática, não é?

Sim, conseguiram, mas esse é dinheiro que vai para os dirigentes, não para alimentação. Não vem praticamente nada da China, nada dos Estados Unidos nem do Japão. E a Coreia do Sul também está a segurar os fornecimentos.

"Dir-lhe-ia [a Kim] que ele até tem uma política interessante, chamada “Exército Primeiro”. A primeira prioridade era obter armas nucleares, para se poder defender. Mas, sentindo-se seguro, devia desenvolver a economia, para melhorar a vida das pessoas."

Você menciona aquela experiência de uma zona económica controlada pelo Sul que utiliza mão-de-obra barata do Norte.

Sim, Rason. Dantes chamava-se Zona Económica Especial de Rajin-Sonbong e foi estabelecida em 1992. Mas o seu estatuto já foi emendado seis vezes. Quando Jang Sung-taek, um alto dirigente da CN, foi purgado em 2013, uma das acusações contra ele era ter vendido terrenos em Rason a uma potência estrangeira. Foi uma experiência que não lhes serviu para nada, porque não a usaram para aprender tecnologia. Basicamente, o governo da CN vendia mão-de-obra barata. Quando os chineses tomaram iniciativas semelhantes com países mais evoluídos, era preciso dar-lhes as técnicas de fabrico e as fórmulas farmacêuticas. Em Rason, o que aconteceu foi apenas as empresas da Coreia do Sul a pagar mão-de-obra muito barata.

Provavelmente a CN tinha medo de que os trabalhadores fossem influenciados pelo padrão de vida do Sul. Seduzidos pelas coisas que fabricavam...

Quando os japoneses investiram na Coreia do Sul, os sul-coreanos aprenderam a fazer automóveis, eletrónica, tudo o que quiseram. E os chineses aprenderam com os europeus e os americanos. Em Rason, os norte-coreanos não aprenderam nada. Os trabalhadores recebiam 40 dólares por dia, ficavam com dois e entregavam o resto ao Partido.

Se você chegasse à fala com o Kim, o que lhe diria?

Dir-lhe-ia que ele até tem uma política interessante, chamada “Exército Primeiro”, que consiste num desenvolvimento paralelo entre a sociedade civil e a militar. A primeira prioridade era obter armas nucleares, para se poder defender. Mas, uma vez isso conseguido, sentindo-se seguro, devia desenvolver a economia, para melhorar a vida das pessoas. Perguntava-lhe quando faria isso, porque disse que o faria. Sei que eles têm um problema com as sanções americanas, que são castigadoras, mas onde está o projeto de que falou? Os chineses ofereceram ajuda, podia aproveitá-la e avançar na limitação das armas nucleares, o que permitira que petróleo, tecnologia e tudo o mais entrassem no país. Pelo menos os chineses podiam construir-lhe estradas.

Provavelmente ele mandava-o fuzilar, se lhe dissesse isso.

Bem, o problema é que há uma confrontação permanente entre o Exército e o Partido. E o Exército é realmente importante, não necessariamente por causa do seu poder militar, mas porque é a única entidade na CN que pode mover coisas dum lado para o outro. Têm camiões e têm gasolina. Portanto quando é preciso transportar alimentos ou qualquer coisa, eles são os únicos que o podem fazer. O Partido existe à volta do clã Kim. O Exército tem relações com o Partido e o clã, mas são os únicos que têm os contactos com a China. A relação com a China não é entre governos, é entre forças armadas. Se os chineses decidirem que as coisas foram longe de mais, colocam lá um militar controlado por Pequim. O que pode não ser mau. O cerne da questão é que não há mais ninguém com possibilidade de os ajudar, só a China. Mas essa solução não inclui a questão dos direitos humanos, que é enorme.

O que eu digo no livro é que, se ele estivesse disposto a abandonar o programa nuclear, devíamos ajudá-lo, sobretudo porque há 22 milhões de pessoas com fome e com frio e que não pediram para viver assim.

Mas os direitos humanos é um conceito ocidental. No Oriente é diferente. Não há direitos humanos na China; e acabei de saber, por causa da prisão do Carlos Ghosn (presidente da Renault-Nissan) que no Japão os presos ficam dias de joelhos até confessarem. No Japão, um país que consideramos avançado.

Bem, estamos a falar da possibilidade de nos envolvermos. Não como o Trump, mas um envolvimento a sério, que leve alimento ao povo da Coreia do Norte. Claro que a questão dos direitos humanos seria um problema para nós. Eles têm centenas de milhares de pessoas em campos de concentração. Mas o que nos devia preocupar são as condições de vida daquele povo.