Enquanto Joe Biden vai cimentando a sua vitória, Donald Trump envolve os Estados Unidos numa batalha judicial, colocando em causa a legalidade das eleições e os votos por correio - apesar de diversos estudos apontarem que os casos de fraude são inferiores a 0,1% - algo nunca visto antes.
Paulo Sande, especialista em questões europeias e consultor político de Marcelo Rebelo de Sousa, lembra que Trump quebrou pelo menos dois precedentes que fazem da democracia norte-americana um exemplo para o mundo: respeitar a vontade dos eleitores, aceitando todos os votos expressos, e reconhecer a vitória do adversário, uma tradição que remonta às eleições de 1896, quando o democrata William Bryan, informado da quase certeza da sua derrota, telegrafou ao futuro presidente William McKinley, felicitando-o: “Submetemos a questão ao povo norte-americano e a sua vontade é lei”.
Mais recentemente, Al Gore, depois de uma disputa levada até ao Supremo relativamente à recontagem de votos na Florida – onde uma diferença de poucas centenas de votos dava a vitória a George W. Bush - optou por conceder: “Esta noite, por respeito pela unidade do nosso povo e da força da nossa democracia, ofereço a minha concessão”.
Enquanto a novela dura, não são apenas os norte-americanos (e a comunidade já significativa de portugueses que lá vivem e trabalham) que estão em suspenso, mas também as relações dos EUA com a Europa e com o resto do mundo estão em compasso de espera. Afinal, com uma transição de poder mais ou menos célere, mais ou menos conturbada, Trump é presidente dos Estados Unidos até dia 20 de janeiro. Em plenitude de funções.
"Uma nova administração e uma administração democrata não vai mudar de forma radical a estratégia norte-americana em termos de alinhamento internacional"
O que é melhor para Portugal e para a Europa - se o que é melhor para a Europa é o melhor para Portugal -, ter Donald Trump ou ter Joe Biden no poder?
Se formos pela lógica pura e simples, e também dura, é evidente que o que é melhor para a Europa também é melhor para Portugal. À partida acredito sempre nisso: se Portugal faz parte de uma realidade que tem um determinado tipo de necessidades e de interesses, que são um interesse comum, então o país é melhor servido por esse interesse comum. Dito isto, há especificidades, aspetos próprios do nosso país, da nossa realidade, da nossa economia - até da dimensão geoestratégica da nossa presença na União Europeia, mas também no mundo - que fazem com que, por vezes, isso não seja rigorosamente assim. E, não há dúvida, para a Europa, nem que seja pelo facto de a administração Trump, ou seja, o presidente em funções, ser um inimigo jurado da União Europeia - e sendo eu convicto de que a UE é uma realidade muitíssimo positiva para os europeus, sem a qual o declínio do continente seria muitíssimo mais rápido e, sobretudo, irreversível - acredito que a vitória de uma administração democrata, neste caso, seria o melhor para a Europa.
Porquê? Já falou no inimigo jurado...
Primeiro, por isso, porque deixamos de ter na administração americana um inimigo. Em segundo lugar, porque a agenda do atual presidente é uma agenda anti-multilateralismo. A Europa é, por definição, uma realidade multilateral, não apenas na sua construção e na sua essência, como na relação que tem com o mundo - participando, com outras organizações, com outros países, com outras realidades, na defesa daquilo que considera ser o interesse não só dos europeus, mas da humanidade. E temos muitos exemplos, a começar pelo ambiente, mas também a questão do comércio livre, a ONU, que de alguma forma também é posta em causa pelo atual presidente dos EUA.
Portanto, relativamente à Europa é difícil encontrar um ângulo que nos permita dizer que há um aspecto que poderia privilegiar a escolha da administração republicana. Não há. Mas uma coisa me parece óbvia, é que uma nova administração e uma administração democrata não vai mudar de forma radical - até porque tudo começou, em boa parte, em administrações democratas - a estratégia norte-americana em termos de alinhamento internacional. Os Estados Unidos vão continuar a olhar para o Pacífico, mesmo que encarem no outro lado, na costa continental asiática, o seu principal inimigo. Mas a Europa não pode pensar que, pelo facto de haver agora uma administração que volta ao multilateralismo, a estratégia será radicalmente alterada. A Europa tem de perceber que tem de se bastar a si própria, não pode continuar tão dependente da administração norte-americana, a vários níveis: na defesa, na segurança, na economia. A administração Trump acabou por ser um aviso para a Europa, que não é novo, Trump só lhe acrescentou um choque de realidade.
"O TTIP é um tratado muito complexo, tem aspectos muitíssimo discutíveis, na minha opinião, e para Portugal não era necessariamente bom"
Ainda assim, Joe Biden tem no seu programa o reestabelecimento de alianças, comerciais e também políticas.
Alianças que também são políticas, mas são, sobretudo, comerciais. Julgo que Biden reconhecerá (se este maniqueísmo excessivo e radical que vivemos hoje for ultrapassado isso é possível, senão será difícil) que, apesar de tudo, a administração Trump permitiu, por exemplo, exigir mais dos aliados no que diz respeito à defesa comum: estou a falar da NATO. Acredito que Biden reactive as negociações do TTIP [Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento], e isso representa necessariamente um recomeço ou uma religação a velhas alianças ou tentativas de acordos comerciais profundos e de quarta ou quinta geração como estes, que são acordos já muito avançados.
O TTIP também tem opositores na Europa. Há quem considere que tem mais desvantagens que benefícios, incluindo para Portugal.
O TTIP é um tratado muito complexo, tem aspetos muitíssimo discutíveis, na minha opinião, e, de facto, para Portugal não era necessariamente bom. Primeiro, não está sinalizado, havia ainda muitos dossiers por fechar. Depois, é um tratado que não privilegia necessariamente os países mais débeis economicamente. E, se quisermos encarar por esse ângulo, Portugal tem uma vantagem geográfica no contexto das relações com os Estados Unidos, que é o facto de estar na costa atlântica e, como diz Fernando Pessoa, a olhar para o ocidente, futuro do passado ["Fita, com olhar esfíngico e fatal/O Ocidente, futuro do passado"]. O ocidente é, neste caso, o novo continente. E isto é uma vantagem para Portugal: o facto de não haver relações comuns, de não haver um acordo específico onde tudo esteja contemplado, dá-nos margem de negociação para ganhar alguma vantagem nas relações, não apenas com os Estados Unidos, mas, por exemplo, com o Reino Unido. Agora, não podemos esquecer-nos que estamos na União Europeia.
Para o Reino Unido seria uma administração Trump, na lógica do ser contra as integrações em geral? Talvez a demora no acordo com a UE fosse Boris Johnson à espera do resultado...
Estou a pensar em voz alta: até certo ponto, o atraso do processo negocial do Brexit também pode ser explicado pela expectativa de ver onde param as águas. Isso é muito interessante, se pusermos as coisas nessa perspetiva. Há de facto aqui um aspecto que pode fazer algum sentido. Não acredito nada que Boris Johnson acreditasse que no dia 15 de outubro ia ter o acordo com a União Europeia fechado, e o ter demorado mais este tempo, com todos os riscos - porque as pessoas dizem "não há tempo", mas, nestas coisas da Europa, se há coisa aprendi é que há sempre tempo. E aí, de facto, o Reino Unido pode estar à espera de perceber o que deve fazer. Não nos podemos esquecer que nestas eleições não é só a questão de quem é o novo presidente dos EUA que é determinante, há outras questões muito relevantes, nomeadamente quem ganha as câmaras. Se os democratas ganharem as duas câmaras, Trump até pode ganhar as eleições, mas a sua margem de manobra fica muito reduzida. Se ganhar Trump e mantiver pelo menos o Senado, em minha opinião, o Reino Unido tenderá a endurecer as negociações [com a UE] e a manter muitas das suas exigências: a questão das pescas, a questão das ajudas do Estado, etc. Com Biden na presidência e se o domínio das câmaras passa para os democratas, aí pode haver a tentação de ceder, porque não vai ter do outro lado uma administração tão benfazeja, tão disposta a dar ao Reino Unido aquilo que, no fundo, compensaria a saída da UE.
No que toca às relações com o Reino Unido, a UE pode ser um travão, dado que Portugal está muito limitado na sua acção em termos de acordos bilaterais, ou não?
Para Portugal julgo que não é uma questão decisiva. Portugal tenderá sempre a ter uma boa relação com o Reino Unido, pelos laços históricos, por tudo aquilo que conhecemos. Em todo o caso, Portugal está sempre condicionado e obrigado pela sua participação na União Europeia. E se a União Europeia tiver um determinado tipo de relações com o Reino Unido, Portugal não poderá ter relações especiais. Pode, naturalmente, privilegiar as suas relações com o Reino Unido, com alguns acordos que lhe sejam permitidos no âmbito da União Europeia, mas não tem muita margem de manobra. Mas não me parece que mude qualitativamente a opção em relação a Portugal. No entanto, parece-me que o interesse de Portugal não difere muito do interesse da União Europeia: Portugal é um país muito aberto, com uma economia aberta, um país que faz parte de uma união de Estados, que é muito mais do que uma zona de comércio livre, uma união aduaneira, é uma verdadeira união económica e monetária - não é ainda política, mas já tem muitos laivos, com uma boa dose de constitucionalismo em todo o processo, obrigatório para proteger todas estas pessoas. Não interessa muito a Portugal uma política de proteccionismo excessivo por parte dos Estados Unidos.
"A lógica Donald Trump é a lógica de um homem de negócios: se faço um bom negócio, eu ganho e o outro perde. E quanto mais eu ganhar, melhor, sempre numa lógica de competição, de oposição"
As comunidades portuguesas nos Estados Unidos, apesar de não tão importantes como as que existem em alguns países da Europa, têm algum peso. Como é que isso deve ser tido em consideração?
Não tenho dados, mas julgo que em boa parte são pró-Trump, portanto, há ali uma divisão que também tem de ser tida em conta. Se formos objetivos, e às vezes é difícil ser-se objetivo - tento ser, nem sempre consigo - temos de perceber que o discurso de Trump é muito sedutor. Para quem ouve e está num determinado contexto, o discurso de força, de afirmação... Repare, estas eleições são todas a propósito de Trump. Biden é apenas a alternativa. Tudo gira à volta de Trump, do seu comportamento, do que ele é, do que ele defende. Agora, do ponto de vista do discurso público, ele tem um discurso fortíssimo, tem um discurso sedutor, é alguém que convence. Muita gente, e até pessoas que conheço e são racionais, tende a dizer: "Ah, mas é que ele entretém, é divertido, as coisas tendem a ser divertidas...". Eu tenderia a achar a mesma coisa, não fossem os danos que pode causar e que já referi. Mas mesmo na política externa, também é preciso reconhecer que Trump não causou danos acrescidos, não envolveu os Estados Unidos numa guerra nova - também não conseguiu tirá-los daquelas em que está - teve uma atitude muito forte de apoio a Israel na história da capital, que criou uma nova tensão com os países árabes, mas que não passou muito disso, foi mais proclamatório do que efectivo.
Não se pode olhar para esta presidência e ver só pontos negativos. Dito isto, de facto, há uma intenção de um nacionalismo muito afirmado, o que para muita gente é uma coisa positiva, na Europa também temos os nossos exemplos de políticos que defendem o seu país primeiro, o que significa sempre que os outros estão depois e são o adversário. Esse nacionalismo contra alguém, no fundo, vai buscar à história a sua inspiração, porque em toda a história as entidades nacionais afirmaram-se contra qualquer coisa, contra um inimigo. A maior parte dos Estados europeus fez-se na lógica de resistir, de perseverar, e Portugal é um bom exemplo: 900 anos de história, apesar das circunstâncias estratégicas, da geografia, das dificuldades em manter-se independente com um vizinho tão forte. Há uma outra coisa interessante nalgumas comunidades nos Estados Unidos que são muito receptivas ao discurso anti-imigração (estamos a falar de imigração ilegal): muitas delas são comunidades de imigrantes, segunda geração, nascida nos Estados Unidos e que tem aquela mentalidade de "eu já consegui, agora não venha mais ninguém estragar o que eu consegui". Portanto, esse aspeto da imigração e da segurança é muito importante. Também tem um grande apelo de um país que é por definição e por natureza violento, e vimos o que aconteceu com esta coisa das armas e da venda das armas.
"É impossível prever o que no plano internacional significaria um novo mandato de Trump"
A guerra de Trump na defesa da Segunda Emenda [protege o direito da população e da polícia de garantir a legítima defesa], é alguma coisa que nos Estados Unidos também tem um grande impacto. Depois há coisas estranhas, como a história dos impostos. Trump diz que baixou os impostos para todos, mas sabemos que a diminuição dos impostos nos últimos anos foi sobretudo para os mais ricos. Mas para as pessoas, se baixarem para os mais ricos e também lhes baixarem a elas, é positivo. E há ainda o discurso económico, que Trump usou desesperadamente nos últimos dias, sobretudo o terceiro trimestre, com a subida de mais de 30%, que lhe servia às mil maravilhas para mostrar sucesso económico.
O que representaria um segundo mandato de Trump para os EUA e mundo, tem ideia?
É uma coisa impossível de prever. Isto é, não vale a pena pensar que conseguimos imaginar o que quer que seja, porque ele é, por definição, imprevisível. E se foi imprevisível num primeiro mandato - e isto aplica-se a todos os presidentes no mundo e a todos os candidatos políticos - quando há um segundo mandato possível o primeiro é sempre condicionado por essa possibilidade. No caso de Donald Trump, ele quer desesperadamente ser reeleito e tem problemas sérios em vários planos se isso não acontecer. O que pode acontecer no plano que referiu, é que tenderá a retirar os Estados Unidos de tantos acordos multilaterais quantos possível. A lógica Donald Trump é a lógica de um homem de negócios: se faço um bom negócio, eu ganho e o outro perde. E quanto mais eu ganhar, melhor, sempre numa lógica de competição, de oposição. Trump não gosta da OMS porque a OMS estraga-lhe o discurso no plano da pandemia e porque considera que está ao serviço da China, eleita como o inimigo. Se calhar daqui a dois anos já não é o inimigo outra vez. É impossível prever o que no plano internacional significaria um novo mandato de Trump.
"Para os chineses acaba por ser mais fácil negociar ou discutir e pelejar com Donald Trump, porque tem a tal mentalidade de concorrência, de oposição"
E a China, como estará Xi Jinping a olhar para estas eleições?
A China tem sempre uma estratégia a longo prazo, profundamente geoestratégica. E tem estado a desenvolvê-la, faz-se em grande parte à custa da Europa - eu diria até que, além dos aspetos pontuais, questões comerciais imediatas, tarifas, sanções - a China tem um objectivo: cumprir o seu projeto da nova Rota de Seda, que passa por estes caminhos, um pelo sul da Ásia e outro mais marítimo, que vão acabar praticamente no ocidente da Europa. E isto passa por aquisições e por um processo lento e muito sólido. Julgo, mas não sou especialista na matéria, que para os chineses acaba por ser mais fácil negociar ou discutir e pelejar com Donald Trump, porque tem a tal mentalidade de concorrência, de oposição, de encarar sempre os outros mais como inimigo do que como parceiros ou concorrentes. Acaba por ser mais fácil para os chineses, que estão habituados a isso, faz parte da lógica do sistema e até um pouco da sua mentalidade. Dito isto, é evidente que ninguém sabe até onde poderia ir a escalada de uma guerra comercial, sobretudo entre a China e os Estados Unidos - e digo sobretudo para deixar um pouco de lado as questões relacionadas com a estratégia chinesa de domínio da sua região, que também é muito afirmada, não é apenas a expansão comercial económica através deste projeto em desenvolvimento, mas também o domínio daquela região, que passa por uma afirmação militar. Depois ainda há Taiwan, a questão da Coreia do Norte, uma espinha encravada que não está resolvida, foi só posta em aparente sossego.
Comentários