Data de 1587. É a mais antiga manifestação continuada de fé em Lisboa. A Procissão do Senhor dos Passos realiza-se, ininterruptamente, percorrendo o coração da capital, desde a graça do ano anunciado, pelas mãos da Real Irmandade da Santa Cruz e Passos da Graça, fundada um ano antes.
Evoca a paixão e morte de Jesus Cristo, retratando a Via-Sacra de Jerusalém.
O cortejo, ano após ano, com quase uma mão cheia de séculos de história, esventrando a cidade, transporta a imagem do Senhor dos Passos da Igreja de São Roque, no Chiado, até à Igreja da Graça, junto ao Miradouro batizado com o nome de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Foi assim até 1910. Recuou, no tempo da instauração da República, por força da perseguição à Igreja, para uma saída mais curta, circunscrita à Graça, mas sem nunca deixar de ver a luz do dia. Em 1987, nos 400 anos da Irmandade recuperou, numa honrosa exceção, a via original da procissão, percurso primitivo esse, retomado em 2013 até ao presente.
Distâncias e caminhos à parte, nunca falhou um ano. Um que fosse para contar o registo desse dia. Sempre no segundo domingo da Quaresma, sai à rua para assinalar as festas religiosas, cumprindo o desejo do fundador da Irmandade do Senhor dos Passos, Luís Álvares de Andrade, “o pintor santo”, pensador e criador da procissão que contou com a ajuda do Arcebispo, D. Miguel Castro.
A pandemia da covid-19 que assolou o mundo, em março de 2020, colocou-a no mapa da história recente, por razões fora do registo conhecido. Foi a única procissão da Páscoa realizada, então, no país, a 8 de março de 2020, cinco dias antes da Conferência Episcopal determinar o fim de todas as cerimónias religiosas presenciais devido à primeira vaga do novo coronavírus.
Uma missa para cinco a partir da Graça
Este ano, em virtude da atual conjuntura, a procissão do Senhor dos Passos da Graça, aprazada para o próximo dia 28, mudará de formato, pela primeira vez em 434 anos.
A romaria não pisará a calçada portuguesa, não rasgará ruas, nem encolherá entre ruelas. Não terá um caminho das pedras pela frente, não pisará pedras de basalto, nem seguirá a linha do elétrico. Não descerá ou subirá colinas, nem fará paragens. Não haverá gente anónima a acenar das janelas e ninguém caminhará, porque não haverá ninguém para caminhar. Nem para transportar a imagem do Senhor dos Passos. Mas a fé, essa, entrará em casa dos fiéis, pelo digital e através da rádio.
“Face ao Estado de Emergência, adaptamo-nos aos tempos em que vivemos”, explicou Francisco de Mendia, provedor da Real Irmandade. Os tempos, esses, impedem ações de rua, mas permitem a realização de uma cerimónia religiosa. Uma missa. Um ato único.
O cortejo viajará na mente de quem queira abraçar com olhos e ouvidos a oração, marcada para as 11h00, na Igreja da Graça. A presidi-la, o bispo auxiliar de Lisboa, D. Américo Aguiar.
“As cerimónias do Senhor dos Passos da Graça não serão presenciais, de acordo com as instruções da Conferência Episcopal Portuguesa, serão apenas transmitidas pela Rádio Renascença e nos canais digitais do Patriarcado de Lisboa e da Irmandade, sublinha.
A imagem do Senhor dos Passos estará dentro da Igreja, coabitando o mesmo espaço, nesse dia, reservado a “cinco membros da Mesa Administrativa, órgão de gestão da Irmandade, onde me incluo”, adianta Francisco de Mendia.
E, apesar do diálogo com Deus e fiéis ser conduzido por “D. Américo Aguiar e o Cónego Jorge Dias, pároco da Graça e capelão da Irmandade”, numa igreja vazia de plateia, não faltará a espiritualidade da mensagem. Nem o ritual da tradicional bênção à cidade dirigida a partir do miradouro da Graça. “No final da missa, o Bispo Auxiliar irá dar a habitual bênção à cidade de Lisboa, no Largo da Igreja da Graça: sairá e dará essa bênção”, desvendou o provedor da Real Irmandade da Santa Cruz e dos Passos da Graça.
A atravessar Lisboa com um andor às costas desde 1587. O que é a Procissão do Senhor dos Passos?
Para quem não está familiarizado, o SAPO24 veste a pele de guia espiritual e indica o caminho ao leitor ao recuperar uma reportagem feita em 2017.
A Procissão do Senhor dos Passos apresenta-se como a “mais emblemática e importante” do período da Quaresma sendo precursora das procissões de Passos espalhadas por Portugal e pelo mundo.
Transporta em andores as imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora, exigindo muitos braços para cada qual. Num sobe e desce, liga a Igreja de São Roque à da Graça, segue a pendência da Rua da Misericórdia, Rua Garrett, Rua do Carmo, plana no Rossio, Rua Largo 1º de Dezembro, Largo de S. Domingos, atravessa a Praça Martim Moniz, entra na Calçada dos Cavaleiros, sobe o Largo do Tenrinho e Calçada de Santo André, até finalizar no alto da Igreja da Graça. Três quilómetros pelo coração de Lisboa.
Arrasta fiéis devotos, entre os quais o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa, prende habitantes à janela e desperta o interesse de curiosos. Em especial, turistas, nos últimos anos.
“Antigamente existiam quatro capelas. Demos a nomenclatura de “Passos”, pequenas capelas que desvendam uma imagem do sermão que é lido nessa passagem”, anota. “Entre a Igreja de São Roque até à Igreja da Graça, tínhamos quatro Passos (capelas) erigidos pela Irmandade e uma capela móvel, próximo da Igreja da Encarnação”, continua. O crescimento da cidade levou ao desaparecimento de duas “no Rossio e no Martim Moniz, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Saúde”, relata.
Restam duas. A do Largo do Terreirinho, entre o Martim Moniz e a Graça, “na posse da Irmandade desde sempre” e outra “recuperada para a Irmandade no ano passado, mais de 100 depois” a beijar a Graça, “no edifício no Largo Rodrigo de Freitas - Passo de Santo André - onde nasceu São João de Brito”, anuncia.
Lisboa vestida de roxo, preto e muitas outras cores
As Irmandades e as Ordens Religiosas, de Cavalaria e Militares presentes estão devidamente identificadas a cada procissão.
A eterna cor roxa veste os irmãos da Real Irmandade dos Passos da Graça. Contrasta com as cores dos anjos em forma de crianças, e o preto das vestes das irmãs da Irmandade sem atribuições.
O Senhor dos Passos estreia todos os anos uma túnica. A mesma cor de sempre, roxa, decora um novo tecido.
Há o Pendão, a Bandeira Processional, lanternas, as lanternas do Andor da Nossa Senhora e do Andor do Senhor dos Passos, a Aia e o Mordomo da Nossa Senhora.
O Andor do Senhor dos Passos tem a guarda da Polícia do Exército. O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, um dos seus grandes impulsionadores, tem presidido a todo este ritual.
Os limites do “cortejo” são estabelecidos, à frente e atrás, por uma banda.
Sete passos, sete passagens
“São sete passos. Sete sermões de várias passagens”, refere Francisco de Mendia.
O ponto de partida é dado no 1º Passo. “Jesus é condenado à morte e pregado na Cruz”. A inclinação da Rua da Misericórdia desagua na Igreja da Nossa Senhora da Encarnação, primeira paragem do Senhor dos Passos. 2º Passo. “Jesus cai sobre o peso da Cruz”.
Descendo o Chiado e a Rua do Carmo, de costas para o Largo 1º Dezembro, perante a Igreja São Domingos, num território manchado pelo massacre dos Judeus da cidade, em 1506, acontecimento recordado numa placa, é feita a paragem no 3º Passo. “Jesus encontra a Mãe”. E também é a 4ª estação da Via Sacra.
A Travessa de São Domingos anuncia a entrada no Martim Moniz. Para trás fica o Chiado e o Rossio. Para a frente, a fé católica divide orações com a Lisboa das diferentes etnias e credos religiosos, de hindus a muçulmanos, passando pelas crenças orientais e chinesas.
Na Ermida de Nossa Senhora da Saúde, no Martim Moniz, às portas da Mouraria, “Jesus consola as mulheres de Jerusalém”. Fica dado o 4º Passo. Na Porta do Largo Tenrinho, em plena Calçada dos Cavaleiros, o 5º Passo: “Verónica limpa o rosto de Jesus”.
Subida íngreme para a Graça pela Calçada de Santo André até ao Passo de Santo André, inserido na casa onde nasceu S. João de Brito. 6º Passo: "Jesus é ajudado por Simão de Cirene a levar a Cruz".
Na derradeira subida para o Miradouro da Graça. 7º Passo: “Jesus é crucificado, morto e sepultado”. Bênção final à cidade, amém.
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