O que se passou?

Na noite de terça-feira, o jornal Público noticiou que o estado espanhol não iria cumprir a sua quota-parte da transferência de água do rio Douro para o lado português. A confirmação veio da Confederação Hidrográfica do Douro, que anunciou ter cumprido uma ordem do Ministério da Transição Ecológica e Desafio Demográfico espanhol (MITECO) para “interromper a transferência” das águas para Portugal.

O Governo espanhol apressou-se a informar esta quarta-feira que a decisão foi tomada com o conhecimento de Portugal. Na sequência de uma reunião no sábado passado entre os governos dos dois países, foi tomada "de comum acordo" a decisão de "reduzir a descarga de água das barragens hidroelétricas durante esta última semana do ano hidrológico, perante a evidência de que já não se vai cumprir a 100 por cento o estipulado na Convenção de Albufeira".

Mais tarde, os dois executivos apresentaram um comunicado no qual se comprometem a encontrar “soluções que minimizem os impactos” da seca, admitindo preocupação perante as previsões meteorológicas que obrigarão ao reforço da coordenação da gestão da água e da libertação de caudais.

A questão parece sanada, pelo menos do ponto de vista diplomático, mas destapa problemas que há muito se vêm a acumular. Parte do que causou esta situação foi o protesto dos agricultores espanhóis, que exigiram ao estado espanhol que não lançasse uma parte significativa da água para Portugal, pedindo antes que fosse armazenada para o cultivo agrícola.

Além disso, a situação poderá agravar-se com a futura aprovação do novo Plano Hidrológico da Bacia do Tejo por parte do executivo espanhol, que prevê uma redução superior a 40% da média anual para as regiões espanholas de Almería, Múrcia e Alicante. Escreve o Público que tal poderá afetar os caudais que Espanha tem de enviar para Portugal, tendo o jornal espanhol El Mundo chegado mesmo antecipar uma possível “guerra da água”.

Porque é que isto é tema?

Os cinco rios internacionais que passam por Portugal — Tejo, Douro, Guadiana, Minho e Lima — nascem em Espanha. A presença de barragens no lado espanhol dos caudais destes cursos de água obriga a uma gestão de quanto é que o país vizinho acumula e quando é que descarrega para o lado português durante um ano hidrológico — que se define como começando a 1 de outubro e terminando a 30 de setembro do ano civil seguinte. Esse equilíbrio foi definido pela Convenção de Albufeira acima mencionada, que por sua vez se encontrada na Diretiva Quadro da Água da União Europeia.

Assinado em 1998, este acordo "visou regular a gestão dos rios e das bacias hidrográficas partilhadas entre Portugal e Espanha”, explica ao SAPO24 António Gonçalves Henriques, professor do Instituto Superior Técnico (IST) e especialista em Hidráulica e Recursos Hídricos pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil.

“Procurou-se abordar vários aspetos dos recursos hídricos, como a gestão de caudais, cheias, secas, qualidade da água, etc... O mais importante, e no fundo é isso que está agora em causa, é o problema da gestão dos caudais”, adianta o professor, que também foi director-geral da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) entre 2007 e 2010.

“Além da satisfação das necessidades de água, era fundamental assegurar o bom estado das águas dos rios”, algo que tem a ver com a qualidade da água e como a gestão hídrica deve assegurar a manutenção dos ecossistemas, para que “não estejam muito longe do que seriam as condições em regime não modificado pelo homem”, completa.

O que ficou acordado na Convenção de Albufeira?

Todos os anos, o país vizinho compromete-se a enviar anualmente um volume estipulado de água para Portugal. Este baseia-se num princípio definido no artigo 16º., onde se estipula “o regime de caudais necessário para garantir o bom estado das águas”.

Por exemplo, em anos normais, tem de enviar 3700 hectómetros cúbicos (hm3) do rio Minho, 7300 hm3 do rio Douro e 2700 hm3 do rio Tejo. Segundo o Público, o país vizinho está obrigado a transferir em anos normais um total de 14.300 hm3 para manter os rios saudáveis do lado português.

De início, os termos da convenção foram entendidos como “modernos e atuais para a altura”, comenta José Eduardo Ventura, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem sido consensual perante os especialistas que o acordo funciona bem nos anos em que há excesso de água, pois “tem permitido gerir os caudais em épocas de cheia e melhorar as situações de inundação nos anos em que temos muita precipitação e caudais muito abundantes”. “Antigamente não havia gestão conjunta das bacias e os espanhóis faziam descargas das barragens sem atender às descargas feitas nas barragens portuguesas e vice-versa”, continua.

No entanto, os termos definidos em 1998 começaram a tornar-se cada vez mais desatualizados, como explica António Gouveia Henriques, sendo que é no cumprimento do artigo 16.º onde está a “fonte de todas as dificuldades”.

“Como não havia ainda em 1998 conhecimento suficiente para definir o estado das águas e quais os caudais correspondentes — os chamados 'caudais ecológicos' —, o que se definiu foi um regime provisório; em vez de definirmos em caudais instantâneos, ou seja, em metros cúbicos por segundo a cada instante, foram definidos volumes anuais — é como se estivéssemos a acumular todos os caudais instantâneos ao longo do ano”, diz.

Estamos a ser fornecidos com valores muito baixos [de água], e de repente vem uma brutalidadeAntónio Gouveia Henriques

Qual é o problema?

É que, ao contrário do que se espera de um rio a correr normalmente, “os espanhóis comprometem-se a libertar uma determinada quantidade de água, mas esta não é libertada em contínuo”, diz José Eduardo Ventura.

Ao invés, a tendência desde 1998 tem sido de acumular água nas barragens e lançá-la em grandes quantidades em curtos espaços de tempo. Para António Gouveia Henriques, atendendo à necessidade de “garantir o bom estado das águas”, esta gestão, feita “do ponto de vista de um contabilista”, não garante “esse estado nem mais ou menos”.

A situação foi amenizada em 2008, com uma revisão dos caudais: em vez de serem feitas de forma anual, algumas descargas passaram a uma periodicidade trimestral e outras a um ritmo semanal. Esta solução, porém, também não resolveu o problema e o professor do IST serve-se de um exemplo para explicar.

“Se eu, por motivos de saúde, tiver de beber todos os dias 1,5 litros de água, chego ao fim da semana e são 10,5 litros ingeridos. Vamos supor que bebia só meio litro de segunda até sábado: chegava sábado e tinha bebido 3 litros. Chegando a domingo, para cumprir os 10,5 litros, tinha de beber 7,5 litros — ora bem, isto não seria bom para a minha saúde. É o que está a acontecer com os rios. Estamos a ser fornecidos com valores muito baixos, e de repente vem uma brutalidade”, alerta. “Temos na mesma períodos em que praticamente as águas não correm do lado de Espanha para Portugal, que é o que acontece com frequência no Tejo”, completa.

Foi o que se passou no Douro?

Sim. De acordo com os caudais previstos, Espanha tinha de lançar 570 hm3 no rio Douro e 130 hm3 no rio Tejo desde 1 de Julho até 30 de Setembro. No entanto, no comunicado conjunto dos ministérios dos dois países, admite-se que “Espanha não irá cumprir com os caudais anuais nos rios Tejo e Douro, que se antecipa que fiquem em cerca de 90% dos valores estabelecidos na Convenção”.

O incumprimento ocorreu apesar da delegada do Governo central espanhol na região autónoma de Castela e Leão, Virgínia Barcones, ter dito no dia 22 que Espanha iria manter a passagem de água dos rios para Portugal e respeitar os caudais acordados bilateralmente.

Em concreto, estava prevista a descarga de 400 hm3 de água na barragem de Almendra, no rio Tomes, entre Salamanca e Zamora, para cumprir a Convenção de Albufeira. No entanto, segundo a agência de notícias EFE, a necessidade de fazer esta descarga da quarta maior barragem espanhola em termos de capacidade teria obrigado a uma obra de emergência, para uma captação flutuante de água, de forma a garantir o abastecimento de 48 povoações de Zamora.

Tal descarga planeada foi alvo a 20 de setembro dos protestos de cerca de três mil agricultores das províncias de León, Zamora e Salamanca no centro da cidade de León para exigir a paragem da libertação de água para Portugal. A Associação de Comunidades de Rega da Bacia do Douro (Ferduero) disse estarem em causa “libertações extraordinárias” de água e considerou que se tratava de uma "espoliação" que estava a ocorrer de forma unilateral e sem qualquer tipo de diálogo, acusando o Ministério da Transição Ecológica e Desafio Demográfico espanhol de voltar continuamente as costas à irrigação e ao mundo rural.

António Gouveia Henriques recorda uma ressalva da Convenção de Albufeira, que permite um regime de exceção: se houver “níveis de precipitação abaixo de determinados limiares”, Espanha não é “obrigada a cumprir estes volumes anuais”, tratando-se de uma “espécie de situação de emergência para anos muito secos”.

Na leitura do professor do IST, “Espanha estava à espera de ter a possibilidade de declarar o estado de exceção no caso do Douro. No entanto, os números demonstram que a precipitação não foi inferior aos tais limiares, apesar de estarem próximos disso. Ou seja, não pôde declará-lo”, diz. “Eles começaram a despejar para cumprir genericamente os valores que estavam acordados, mas os agricultores da parte de Espanha de repente viram que as albufeiras estavam a baixar e a ficar com problemas no que toca à necessidade de água para rega”, observa.

Porque é que isto acontece?

Os especialistas contactados pelo SAPO24 ambos convergem quanto à principal razão para estas descargas súbitas: a produção energética.

“Se a água for libertada de seguida, permite que toda ela seja turbinada para produzir energia. É algo do interesse económico das empresas que produzem eletricidade”, explica José Eduardo Ventura.

“um rio não pode funcionar umas horas e depois parar de acordo com os consumos de eletricidade”António Gouveia Henriques

António Gonçalves Henriques é da mesma opinião. “Espanha tem sempre capacidade de turbinar essa água, portanto interessa-lhe concentrar em pequenos períodos. Por um lado, produz às horas de ponta de consumo, em que a energia é muito mais valiosa, muito mais cara, e por outro consegue colocar grandes potências de rede”, afirma.

O tema tem sido discutido do outro lado da fronteira, tendo o Governo espanhol aberto uma investigação em agosto de 2021 quanto às empresas que gerem barragens nas bacias hidrográficas do Douro, Tejo e Miño-Sil. Por exemplo, no caso da barragem de Ricobayo — que armazena água do rio Esla, o mais caudaloso afluente do Douro —, o nível das águas passou de 95% para 11% em quatro meses, com esvaziamentos especialmente notórios em junho e julho do ano passado, a coincidir com os preços máximos da eletricidade.

A Iberdrola, que explora essa barragem, alegou não ter atuado em má prática em momento algum no que toca à gestão da água, mas a empresa espanhola foi também alvo de críticas semelhantes quanto às descargas de barragens em Cáceres — que afeta o Tejo — e Saragoça. A prática em si não é ilegal, mas tem sido cada vez mais contestada, especialmente face à seca que tem vindo a persistir na Península Ibérica.

Ademais, a questão é que, como adianta o professor do IST, “um rio não pode funcionar umas horas e depois parar de acordo com os consumos de eletricidade”. Ou, por outras palavras, “a libertação de água ‘aos bochechos’ não é consentânea com a manutenção dos ecossistemas, porque vão ter períodos em que não há escoamento”, acrescenta o docente da Universidade Nova.

Que problemas causa?

Por um lado, as águas, ao ficarem tanto tempo paradas nas barragens espanholas, são sujeitas a processos de eutrofização, ou seja, a acumular nutrientes em excesso, o que gera matéria orgânica prejudicial aos ecossistemas. “Quanto menor é o escoamento, maior é a concentração da poluição”, aponta José Eduardo Ventura.

“Não é só uma questão de garantir o bom estado da água; o problema é que vamos tendo ecossistemas ribeirinhos durante uma série de dias sem água. Às vezes, quando ela vem, já é tarde”José Eduardo Ventura

Nos últimos anos, tem sido frequente a presença de Azolla — uma planta aquática exótica invasora que surge quando as águas se encontram estagnadas e poluídas por fosfatos e nitratos — e algas no rio Tejo, provenientes da barragem de Cedillo, na província de Cáceres. Este ano foi marcado pelo mesmo fenómeno, não obstante os protestos de organizações ambientais e das garantias da APA de que está em coordenação com as instâncias espanholas para debelar o problema.

Por outro, quando não há água do lado português, os ecossistemas sofrem. “Não é só uma questão de garantir o bom estado da água; o problema é que vamos tendo ecossistemas ribeirinhos durante uma série de dias sem água. Às vezes, quando ela vem, já é tarde”, lamenta o professor da Universidade Nova de Lisboa.

Além disso, essa água que é libertada para o lado português é necessária para o abastecimento de populações e para consumo agrícola, especialmente tendo em conta a situação de seca que o país enfrenta: 60,4% do território encontra-se em seca severa e 39,6% em seca extrema, o que já obrigou o Governo a suspender o uso dos recursos hídricos de 15 albufeiras nacionais a partir de outubro.

E agora?

De acordo com a nota emitida pelos governos português e espanhol, estes comprometem-se a:

  • Reforçar a coordenação da gestão da água;
  • Melhorar os diagnósticos;
  • Solucionar constrangimentos estruturais que comprometem o cumprimento dos objetivos estabelecidos na Convenção de Albufeira e dos objetivos da Diretiva Quadro da Água, designadamente no domínio do abastecimento de água às populações, nos usos para regadio, na exploração dos aproveitamentos hidroelétricos, bem como de outras atividades socioeconómicas que se desenvolvem nas bacias hidrográficas partilhadas.

Além disso, ambos os países disseram ainda que vão realizar “uma reunião de alto nível para balanço do ano hidrológico 2021/22 e para planear o futuro da temática da escassez de água e da seca na Península Ibérica” algures no próximo trimestre.

Para os especialistas consultados pelo SAPO24, o principal foco de Portugal tem de estar em estabelecer caudais ecológicos mínimos para garantir a saúde dos rios no seu lado da fronteira.

“Está na altura de rever o tratado. Cabe-nos a arte de conseguir negociar com eles condições que sejam vantajosas para nós, mas também temos de ver o ponto de vista dos agricultores espanhóis que vêem libertar a água para o lado de cá”, frisa José Eduardo Ventura. António Gouveia Henriques é da mesma opinião, dizendo compreender a frustração dos agricultores espanhóis por verem uma enorme quantidade de água ser escoada de súbito para Portugal sem benefício para qualquer uma das partes.

“Parece que não há problemas, que está tudo a correr bem, apesar das reclamações quer de Portugal, quer de Espanha”António Gouveia Henriques

Para o ex-diretor da APA, Portugal tem a obrigação de definir esses caudais, como Espanha já fez da sua parte, para que deixemos de depender de valores provisórios, como os que vigoram desde 2008. “Em Toledo, que é muito para montante em relação à fronteira portuguesa, o Tejo tem um valor mínimo de 10 litros cúbicos por segundo e não pode ir abaixo deste valor”.

Já o nosso país “não fez esse trabalho, não definiu nunca caudais ecológicos e não falou com Espanha para dizer que precisamos de ter determinados valores para manter o rio constante”, crítica, lembrando que as alterações climáticas mudaram o paradigma e obrigam a uma redefinição da relação entre os dois países no que toca aos recursos hídricos.

Apesar dos rios internacionais nascerem em Espanha, o país "tem e não tem" a 'faca e o queijo na mão'. Explica o docente do IST que o país vizinho é obrigado a cumprir a diretiva do Quadro da Água da União Europeia, pelo que "Portugal pode sempre invocar que Espanha não está a cumprir legislação comunitária, porque esta é muito clara: é responsabilidade de ambos os países da manutenção do bom estado das águas". No entanto, permanece a "fraca capacidade técnica para negociar".

Além disso, para António Gouveia Henriques, tem havido um certo “desleixo” das duas partes no que toca ao acompanhamento do tema, recordando que a Conferência das Partes — o órgão máximo para regular o cumprimento da Convenção de Albufeira e que é composto por membros de ambos os governos — não se reúne desde 2015, pelo menos oficialmente. “Parece que não há problemas, que está tudo a correr bem, apesar das reclamações quer de Portugal, quer de Espanha”, aponta.

A complicar toda esta situação está a eventual aprovação do novo Plano Hidrológico da Bacia do Tejo, que poderá minimizar ainda mais as descargas para Portugal, o que poderia escalar a tal "guerra de água" aventada pelo El Mundo.

Tal possibilidade foi rejeitada em absoluto por Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Ação Climática. “Não há guerra nenhuma relativamente à água. Há sim, da parte de Portugal e de Espanha, trabalho conjunto e permanente (…) e aquilo que é uma compreensão relativamente a um ano particularmente difícil do lado de cá e do lado de lá”, disse. No entanto, não há qualquer menção quanto à discussão deste tema no comunicado conjunto dos dois países.

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