Setembro. É o mês em que a cidade de Coimbra volta de férias e veste o traje que lhe dá o nome e a fama da cidade dos estudantes. É o mês em que Lisboa vê os turistas de cara espantada e curiosa a tirarem, timidamente, a máquina fotográfica para registar o momento em que jovens de capa ao ombro e bandeira ao alto tomam conta das praças e jardins da capital. É o mês em que no Porto, sobre a Avenida dos Aliados e a Rua de Santa Catarina, se estende um manto de negro.
O dicionário diz-nos que praxe é um termo proveniente do grego prâksis que significa “ação, transação ou negócio”. Como definição atual, praxe é sinónimo de “uso estabelecido", “uma prática habitual” ou também “um conjunto de normas de conduta”.
Se o termo é polissémico na sua etimologia, também é muito diversificado na sua prática quando falamos em praxes universitárias. De instituição para instituição, de curso para curso e de cidade para cidade, a praxe é encarada de diferentes maneiras. Colocar tudo no mesmo saco é negligenciar uma pluralidade de visões sobre como utilizar - o que vem sendo dito como tradição académica -, a praxe para integrar os novos alunos.
Mas a praxe é tudo menos consensual.
Para compreender as recentes polémicas em torno desta prática é necessário olhar para a sua história. A instauração, proibição e restauração da praxe é quase um processo cíclico que é, nada mais, nada menos, do que o reflexo da interação entre o mundo universitário, os movimentos estudantis e as políticas do Governo.
Investidas, os primórdios da praxe
A praxe nasceu no século XVII, muito diferente da prática a que assistimos hoje. Nem o nome era o mesmo. À época, a então designada “investida” era o meio de receção aos novatos ao ensino superior. Baseada em “insultos”, “troças” ou castigos, este tipo de prática veio a marcar de forma muito negativa a imagem do mundo académico.
O relato do médico e filósofo Ribeiro Sanches dá uma pequena imagem do que eram estas investidas, “Não havia defensa daquelas bárbaras e indecentes investidas, feitas com violência e desacatos, armados os agressores como para assaltar um castelo: e destes excessos resultaram mortes, incêndios e sacrilégios”.
Também o Rei D. João V se viria a opor a uma prática que ele mesmo classificou como sendo uma “barbaridade”. O século XVIII marcaria assim a primeira proibição da prática das investidas.
Na sequência da morte de alguns novatos, o Rei fez publicar: “Hey por bem e mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofendera outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos”.
A primeira vez que o ciclo se completou
O século XIX recuperou a investida, desta vez sob o nome que todos conhecemos: a praxe.
A prática do “canelão” marcou este período. Esta praxe violenta, consistia em os alunos mais velhos receberem os jovens estudantes na faculdade com pontapés nas canelas.
Procurando já projetar uma justificação baseada na tradição, algumas práticas do século anterior foram também recuperadas, como o rapanço - que consistia em cortar o cabelo aos novatos - e a pastada - que se baseava em colocar os “caloiros” em posições de animais a simular um pasto. A situação ganhou uma dimensão tal que, em 1873, um estudante, depois de ver o cabelo cortado à força, matou um dos agressores.
A praxe escrita em forma de lei: os primeiros códigos
O Palito Métrico foi um dos primeiros documentos a tratar a praxe. Em 1746, o Palito pretendia ser um manual nos rituais de iniciação em Coimbra nos séculos XVIII e XIX através de uma abordagem - que aos olhos de uma pessoa nos dias de hoje, apenas pode ser considerada medieval -, que definia que o mínimo que podia acontecer a um novato era fazê-lo passar por animal, metendo-lhe palha na boca e dando-lhe açoites para o domesticar. À época, a filosofia das praxes baseava-se no pressuposto de transformar o novato, de o fazer passar por um ritual de purificação que o elevasse à condição de humano, deixando assim de ser um animal.
Desengane-se quem pensa que a praxe, na época, terminava no final do primeiro ano. Resgatando o relato de António Manuel Nunes, nos Cadernos do Noroeste, é relembrado que alguns rituais envolviam alunos mais velhos e finalistas, “rasgar as vestes e ser violentamente sovado com palmadas no momento em que se acabava o curso”.
A escalada de violência só podia ter um resultado. Em 1902 o canelão é abolido e em 1910, com a implementação da República, é colocado um fim à praxe. Foram anos de agitação política em que a praxe era o menor dos temas num país em metamorfose e em que um sistema de ensino se encontrava num processo de redefinição. As lutas do campo da educação eram outras: a justiça social e a liberdade. A praxe foi sendo assim esquecida...
Mas não totalmente. Em Coimbra fazia-se por não esquecer, e a restauração desta prática era algo que vários grupos de universitários ambicionavam.
A primeira codificação da praxe de Coimbra acontece no século XX. Sob o nome Leis Extravagantes da Academia de Coimbra ou Código das Muitas Partidas. A moca, a colher e a tesoura ilustram a capa como sendo “a triologia simbólica da perseguição aos caloiros”, símbolos esses que resistem até hoje. A colher relacionada com “a figura de veterano aplicando com uma colher a sanção de unhas a um caloiro”, a moca para praxes mais brutais e a tesoura ligada aos cortes de cabelos.
Em 1919 a praxe volta a reaparecer e o ressuscitar do movimento resulta, em 1957, na publicação do Código da Praxe Académica de Coimbra que estabelece as normas e os símbolos da “praxe coimbrã”.
Um debate com várias dezenas de anos
As capas dos jornais ferveram. É marcante a atitude do O Diário de Lisboa que publicou durante vários dias seguidos a fio cartas e artigos em tom inflamados, de ambas as partes. “Se há caloiros que tudo suportam, há os que não sofrem sem raiva no coração as humilhações impostas por indivíduos tantas vezes intelectualmente coxos”, lê-se num excerto publicado pelo Público. Do lado dos adeptos da prática coimbrã: “O que se pretende com as inofensivas brincadeiras a que os caloiros são submetidos é ver como estes reagem a elas e, se for caso disso, tentar demonstrar-lhes que a excessiva arrogância e o amor-próprio em demasia ser-lhes-ão prejudiciais na sua vida futura.”
Aníbal Frias, num artigo publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais, em 2003, diz que a praxe volta a emergir “devido a um aumento da concorrência entre a velha Universidade de Coimbra e outros estabelecimentos de ensino superior, técnico-científicos, então criados em Lisboa e no Porto”.
Com o 25 de abril o ensino universitário começou a ser pulverizado um pouco por todo o país e cada instituição procurou utilizar a praxe como fator de autenticidade, tentando criar uma tradição lhes desse uma vida própria e que as integrasse no mundo académico.
O movimento de mais uma restauração da praxe, que teve várias quebras durante o Estado Novo devido à luta dos movimentos estudantis, partiu de Coimbra. Em 1979, uma lista comandada pela Juventude Social Democrata vence Associação Académica de Coimbra. Com Maló de Abreu à frente da associação, organiza-se uma “Queima das Fitas disfarçada”; e em 1980, regressa a Queima das Fitas. A capa e a batina foram naturalmente compondo as vestes dos estudantes e a praxe… a praxe não ficou para trás.
Os anos 80 e 90 ficaram marcados por um ‘boom’ na criação de novas instituições de ensino, quer sejam elas de cariz público ou privado. Os novos jovens cresciam longe das amarras da ditadura, mas não sem o pesadelo dela. Por isso queriam saber mais, queriam aprender, queriam que lhes chegasse tudo aquilo a que tiveram inibidos durante o Estado Novo.
A partir dos anos 1990, a praxe vulgariza-se. Frias fala de “praxes híbridas”, “onde os empréstimos do modelo coimbrão se associam a traços locais”. Até hoje o relato deste autor é verdadeiro e ainda se verifica. Cidades sem tradição académica, pegando na linha histórica criada em Coimbra, envergam o símbolo da praxe e reivindicando a sua própria história e tradição.
O Portugal praxado do século XXI
Foi aliás a partir da disseminação das praxes neste nosso século, acompanhada pelo aparecimentos dos novos media, que o tema ganha uma dimensão polémica com vários casos de abuso. O livro “Desobedecer à Praxe” - também ele polémico -, de Bruno Moraes Cabral e João Mineiro compila vários desses casos.
O primeiro remonta a novembro de 1999 e aconteceu na Escola Superior de Educação de Leiria, quando uma aluna se declara vítima de agressões físicas e de humilhações durante a praxe. A ‘caloira’ foi presente ao ‘tribunal de praxe’ que ditou a sua sentença: o corte do cabelo. O episódio marca a primeira vez que alguém mostrou intenção de iniciar um processo em tribunal por abusos dentro da praxe, mas tal nunca chegou a acontecer.
Aquele foi apenas o mote para o que viriam a ser vários anos de denúncias de abusos e de, em alguns casos, crimes. Em outubro de 2004 é relatada a primeira morte ligada à praxe. Felícia Cabrita, através da revista Grande Reportagem denunciou a morte de Diogo Macedo. A jornalista chega mesmo a falar em assassinato do aluno pelos seus colegas durante uma praxe da tuna. O caso aconteceu no seio da Universidade Lusíada de Famalicão, a mesma universidade que no ano passado foi obrigada pela justiça a pagar 90 mil euros à família de Diogo, na sequência do desfecho do processo em tribunal.
Em setembro de 2012, Cristina Rainho, aluna da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Beja ficou inanimada e entrou em paragem cardiorrespiratória durante uma atividade de praxe. Apesar de ter sido socorrida a tempo, e vir a ser internada no hospital, acabaria por nunca recuperar tendo falecido um ano mais tarde.
A dezembro de 2013 aconteceu o caso que mais chocou o país. Seis estudantes da Universidade Lusófona morrem arrastados por uma onda na praia do Meco.
Estes casos chocaram pela brutalidade. Pessoas morreram, mas ao contrário do que se pode pensar não foram casos isolados, são apenas os mais evidentes relatos de uma lista que inclui várias denúncias ligadas a humilhações de cariz sexual e agressões físicas, onde consta, inclusive, casos em que as vítimas são professores que tentaram impedir atividades de praxe.
Os relatos tornam-se ainda mais assustadores pelas vezes em que os alunos vitimados recuaram nas denúncias à PSP. E pelo espetro geográfico que não se focam apenas nos grandes centros urbanos, onde se situam também as maiores universidades, mas por serem transversais a todo o país.
Manuel Heitor, o ministro que declarou combate à praxe
O novo ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, assumiu o combate à praxe definindo a prática como “fascizante” e como “uma das maiores pragas que temos de combater”.
No início deste ano letivo o ministro escreveu uma carta dirigida a todos os portugueses, na qual manifesta repúdio pelas imagens de humilhação que todos os anos são transmitidas nos meios de comunicação social e classifica a praxe como algo contrário aos princípios da liberdade individual.
A carta culmina no ponto em que Heitor propõe atividades de divulgação científica como alternativa à praxe, declarando mesmo uma percentagem do orçamento anual que deve ser dedicado a essas nova forma de receção aos novos alunos.
O ministro responsável pela pasta do Ensino Superior elogiou ainda aqueles que têm procurado promover uma alternativa à praxe. Uma declaração que acompanha o crescimento de movimento de integração aos novos alunos, em alternativa à praxe.
O aumento desses movimentos que recebem os alunos com roteiros pela cidade e projetos baseados na cultura, tem sido acompanhado por um processo de mutação da própria praxe na forma como a conhecemos.
A praxe solidária tem ganho terrenos dentro de muitas instituições com os alunos mais velhos a mobilizarem os recém-chegados para atos de voluntariado.
É por isso fácil de se dizer, que se há altura em que a praxe não é uniforme, esta é a altura. Uns constroem uma nova identidade, outros lutam para manter a possibilidade de vincar a sua prática académica dentro universo que é a praxe. Aguardaremos para ver em que parte do ciclo é que estamos, tendo em conta que o Executivo, e a maioria que o suporta, estão contra esta prática.
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