Prólogo

Estávamos a entrar no último trimestre de 2018 quando a direção do jornal Observador me chamou para uma reunião com o meu colega que cobria os temas de Religião, o João Francisco Gomes. Dias antes, o Conselho dos Cardeais – um órgão consultivo criado em 2013 pelo Papa Francisco para o ajudar no governo da Igreja Católica e na reforma da Cúria Romana – tinha feito um anúncio inédito. O papa Francisco queria convocar os bispos de todo o mundo para debaterem no Vaticano o tema dos abusos sexuais de crianças por membros do clero. A cimeira estava já marcada para fevereiro de 2019.

Aquele ano de 2018 acabou por ser crucial no tema dos abusos de crianças na Igreja, um dossiê que Bergoglio tinha já herdado de Ratzinger. O papa Francisco deslocara‑se ao Chile onde o caso do padre Fernando Karadima, acusado de abuso sexual, revelava envolvimento por parte da hierarquia da Igreja. Antes de uma celebração, o papa foi abordado por jornalistas que queriam saber qual a sua opinião sobre uma possível ocultação por parte do bispo Juan Barros. Francisco daria uma resposta que provavelmente o faria arrepender‑se. «No dia em que trouxerem uma prova contra o bispo Barros, eu falarei. Não há uma única prova, tudo é calúnia.» Juan Barros seria um dos 34 bispos a renunciar ao cargo meses depois.

No regresso a Roma, em resposta às perguntas de vários jornalistas que o acompanharam na viagem8, Francisco reafirmou a sua confiança na inocência do bispo, embora tenha admitido que podia ter usado outras palavras. Aproveitou para pedir desculpa às vítimas, garantindo que as investigações iriam continuar. E continuaram. Ele próprio acabaria por mandar dois investigadores do Vaticano ao Chile, que um mês depois lhe trariam um relatório de 2300 páginas com várias atrocidades que acabaram por ditar a queda de dezenas de bispos chilenos. Era mais um relatório que revelava a prática que há anos marcava os casos de abuso sexual na Igreja: a ocultação, o segredo e a mudança de padres de paróquia e até de país, sem nunca efetuarem qualquer denúncia às autoridades civis, e sem qualquer consequência.

Ainda durante esse ano, ficámos a conhecer uma investigação que durou dois anos na Pensilvânia e descobriu casos de abusos cometidos por mais de 300 padres contra mais de mil vítimas. Também nos Estados Unidos, o cardeal norte‑americano Theodore McCarrick, que tinha sido arcebispo em Washington, já com 87 anos, era acusado por uma vítima, um homem de 60 anos, que serviria de gatilho, e de exemplo, para várias outras denúncias que se seguiram.

A 20 de agosto, a dias de visitar a Irlanda, o papa acabaria por redigir uma carta onde reconhecia o problema dos abusos. «Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava a ser causado em tantas vidas. Nós negligenciámos e abandonámos os pequenos», escreveu na «Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus». O tema dos abusos ocupava assim cada vez mais espaço na governação do papa Francisco, que acabaria a ditar medidas concretas que marcam agora a história desta grande instituição que é a Igreja Católica Romana.

Naquela reunião de trabalho, eram estas as questões da direção do Observador: «Há abusos sexuais por parte de membros da Igreja Católica em tantos países. E em Portugal?». Nós, como jornalistas, tínhamos a obrigação de perceber se a prática que estava a acontecer em todo o globo se mimetizou em Portugal.

Dos Moonspell para a literatura. Fernando Ribeiro traz "Café Kanimambo" ao É Desta Que Leio Isto de junho

Fernando Ribeiro junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 22 de junho, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "Café Kanimambo", que chegou às livrarias a 29 de maio e assinala o regresso do vocalista dos Moonspell à literatura, depois de publicar o seu primeiro romance, "Bairro sem saída", em 2021.

Além da análise da obra, esta conversa permitirá também traçar a relação entre música e literatura, aproveitando a experiência do músico em palcos por todo o mundo, com a banda portuguesa de heavy metal.

"Entre o thriller e a narrativa hardcore, 'Café Kanimambo', segundo romance de Fernando Ribeiro, é a confirmação do autor como uma das vozes mais acutilantes da nova ficção nacional, num livro perturbante que não deixará ninguém indiferente", pode ler-se na apresentação da obra.

Pode ler também um excerto deste livro aqui.

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Eu, jornalista de Justiça, via‑me agora a trabalhar com o meu colega de Religião no tema que iria ser debatido no Vaticano, pela hierarquia da Igreja, meses depois. E foi assim que começámos a nossa primeira grande investigação ao tema publicada no Observador, à qual chamámos «Em Silêncio», por ter sido exatamente o que encontrámos ao longo do nosso trabalho: uma Igreja fechada em copas, em silêncio, com poucas respostas para nos dar, vítimas silenciadas pela Igreja e pelo trauma que ainda hoje enfrentam, uma Justiça nalguns casos conivente com a Igreja, desvalorizando os depoimentos das vítimas e preferindo acreditar nos membros do clero.

Depois da cimeira em Roma, fomos acompanhando como em Portugal se foram aplicando as medidas impostas pelo Vaticano. E se foi fácil perceber, logo de início, alguma resistência e desvalorização do que se considerava serem casos pontuais em território nacional, também as diferentes velocidades a que foram criadas as Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis em cada diocese, a pedido do papa, revelavam que ainda não se tinha quebrado o silêncio.

Em finais de 2021, quando França libertava o seu relatório sobre os abusos na Igreja Católica, um grupo de católicos portugueses pedia ao presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, para tomar medidas. E assim a CEP acabava por criar uma Comissão Independente com o objetivo de estudar esta realidade em Portugal e de «Dar Voz ao Silêncio», como foi seu apanágio. Só conhecendo a realidade seria possível tomar medidas.

O trabalho da Comissão Independente, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, durou um ano e concluiu que desde os anos 1950 em Portugal poderá ter havido 4815 vítimas, que antes de completarem 18 anos foram alvo, por membros do clero, dos mais variados crimes de abuso sexual previstos na lei civil. A maioria nunca apresentou queixa, muitos contaram‑no pela primeira vez à Comissão Independente – isto décadas depois de terem sido abusados e de ainda hoje sobreviverem atormentados por esses crimes.

Na apresentação do relatório final da comissão, num auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa – onde a comissão foi gradualmente dando conta da evolução do seu estudo –, foram reproduzidos violentos relatos de vítimas perante vários bispos, entre eles José Ornelas, sentados na fila da frente.

A sociedade precisava de ouvir a crueza e as duras descrições destes crimes para acordar para esta realidade. E a comissão conseguiu‑o, mesmo tendo de ultrapassar vários dilemas éticos, por que também nós, como jornalistas, passámos, porque para obter informação é preciso questionar as vítimas e fazê‑las reviver o que passaram, acordando sequelas e traumas que nunca se curam. A cada vez que estas vítimas ouvem falar de abusos sexuais revivem e voltam a sofrer tudo o que consideram guardado «numa gaveta», como me chegou a contar uma das várias vítimas cuja história me chegou.

«Não foi fácil escutar, registar ou ler cada um destes textos. As descrições eram emocionalmente intensas, transportavam a voz destes adultos para a sua experiência infantil de abuso e a forma como o mesmo os marcou até aos dias de hoje», lê‑se no relatório da Comissão Independente9, palavras das quais me apodero para descrever o que eu própria como jornalista senti ao longo dos últimos anos.

É que, apesar de os crimes de abuso sexual no seio da Igreja serem uma pequena fatia dos crimes de abuso sexual ocorridos na nossa sociedade, têm características complexas e únicas. Para os crentes, o padre representa Deus e essa sensação de domínio, de divindade, de espiritualização adensa o silenciamento das vítimas e relação de poder por parte do agressor.

Muitas vítimas responderam à comissão que os seus agressores lhes diziam que aquele ato sexual era «um desígnio divino», que era algo «natural» do qual não tinham de sentir medo, que era a «vontade de Deus», uma purificação. Esta é a razão por ter chamado a este livro, que dedico a todas as vítimas, Em Nome do Pai.

Em 2021, o João Francisco Gomes publicou o livro Roma, temos um Problema, e conta como a Igreja Católica lidou com dois mil anos de abusos sexuais. Com todas as investigações jornalísticas que têm sido feitas desde então, o trabalho da Comissão Independente e, agora, as reações da Igreja Católica e de toda a sociedade, impunha‑se traçar um retrato que está agora mais completo e definido. E é ao que me proponho nas próximas páginas.

*Todos os nomes das vítimas utilizados são fictícios para proteger a sua identidade. As moradas também foram salvaguardadas.

A Vergonha e a Culpa

Passaram 20 anos, mas o tempo para uma vítima de abuso sexual é inútil. Não apaga e dificilmente cura. Há momentos em que parece que a memória tomou conta do trauma, que o arrumou, mas, quando menos se espera, ele reaparece como uma visita inesperada.

Assim se sente Mariana. Ainda hoje, já uma mulher de 33 anos, pensa todos os dias no rumo que a sua vida teria levado se, naquele dia, ainda uma criança de 12, não tivesse respondido à mensagem que o padre – 20 anos mais velho – lhe enviou. Foi a primeira de milhares de comunicações, ao longo de anos, que alimentaram o que ainda pensou ser uma relação amorosa – e da qual nasceria uma criança, já ela era maior de idade.

Desde que foi mãe, a vida de Mariana tem sido tomada por um sentimento de culpa demasiado grande, por ter cedido, por ter permitido encontros, por ter crescido a sentir‑se apaixonada. Nalguns momentos sente‑se forte, como que resolvida, pronta a reerguer‑se e voltar a estudar, trabalhar e encontrar um companheiro. Mas, depois, é como que engolida pelas memórias, que a consomem e lhe roubam a garra para se segurar e continuar a sobreviver. Um sofrimento que só com ajuda psiquiátrica parece conseguir aliviar.

Livro: "Em Nome do Pai"

Autor: Sónia Simões

Editora: Oficina do Livro

Data de lançamento: 14 de junho

Preço: € 18,00

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Foi um longo caminho até perceber que o que vivera não foi uma história de amor, mas um crime que se prolongou no tempo e lhe toldou a infância e a adolescência, com repercussões na idade adulta. Nascida e criada no seio de uma família católica, numa pequena aldeia no norte do país, aquele sacerdote era visita da sua casa, amigo da família. Na comunidade era visto quase como um «rei», uma imagem inabalável pela sua simpatia e por tudo o que fazia pelas pequenas paróquias que liderava. Ela era ainda uma criança, sem poder para o afastar. Já mais crescida ainda o tentou, mas ele voltava sempre. Tinha um completo domínio sobre ela.

Quando entrou na universidade, numa cidade longe dali, o padre chegou a arrendar‑lhe um apartamento para poderem manter a relação. Ele dividia‑se entre o serviço pastoral em várias aldeias e as visitas clandestinas a Mariana. E ela estudava ao mesmo tempo que sonhava que um dia seriam um casal e poderiam estar juntos em público.

Até ao dia em que engravidou, tinha ela 23 anos. À medida que a sua barriga ia crescendo, as esperas pelo padre tornavam‑se cada vez mais angustiantes. Num desses encontros, fazia ela planos para o futuro, o padre anunciou‑lhe que não podia registar a criança e dava‑lhe a hipótese de pedir a alguém que desse o nome por ele ou de ela parir no estrangeiro. Demorou algum tempo a perceber o peso daquela informação que, sem ela perceber, iria acordá‑la para o que estava a viver. Não era apenas aquele bebé que teria apenas o nome da mãe no registo. A relação entre ambos iria permanecer clandestina e nada iria mudar.

Mariana acabou a dar à luz num hospital em território nacional e o bebé foi registado pelos dois. Ainda fizeram uma discreta cerimónia de batismo, conduzida por um amigo do padre, longe da aldeia onde se tinham conhecido. Mas a informação do nascimento chegaria lá na mesma. O padre tinha sido pai, mas conduzia as paróquias pelas quais era responsável como se nada tivesse acontecido.

Naquele ano de 2015, nos primeiros meses de vida do bebé, estava decidida a libertar‑se daquele enredo. Marcou uma reunião com o bispo e contou‑lhe quem era o pai da sua criança e deslocou‑se ao Tribunal de Família e Menores para regular o poder paternal. Quando a ouviram, responderam‑lhe o que parecia não ter percebido: «A senhora tem de denunciar o que passou à Polícia.» Nesse dia, Mariana ainda se deslocou à Polícia Judiciária, mas, quando se apercebeu do penoso processo que poderia enfrentar, não apresentou queixa. Sentia‑se demasiado frágil psicologicamente para avançar.

Uma denúncia anónima

Mariana tentava autonomizar‑se quando recebeu um telefonema da Polícia Judiciária, em finais de novembro daquele ano de 2015. Dois meses antes o Ministério Público tinha recebido uma queixa anónima10 contra o sacerdote com quem teve um bebé. Além de negócios suspeitos em sociedade com outro pároco, acusavam‑no de envolver‑se com raparigas mais novas e de, naquele momento, haver mesmo uma menor grávida, à espera de um filho dele. Perante os dois diferentes tipos de crime, a procuradora mandou a Polícia Judiciária (PJ) seguir naquele processo as suspeitas de ilícitos sexuais.

Os inspetores da PJ não perderam muito tempo. Quando lhe telefonaram para a ouvir já tinham palmilhado as paróquias onde o padre tinha responsabilidades. Traziam a informação de que ele teria mudado de funções recentemente e fora substituído. E ninguém apontava um dedo ao seu comportamento. Comentava‑se em surdina que tinha sido pai, mas a mãe era já uma mulher adulta. Sem uma pista, os inspetores viraram‑se para o Registo Civil, à procura de dados sobre ele. E encontraram o nome de uma criança, com cerca de um ano, cuja mãe era Mariana e o pai era o padre.

Assim que recebeu o telefonema da inspetora da PJ, Mariana sentiu‑se confusa. O dia em que tinha ido às instalações da Judiciária já ia longe e nessa altura não avançara com qualquer denúncia. Só quando se sentou na cadeira à frente da polícia percebeu porque a chamavam. Os investigadores queriam saber mais sobre o homem com quem tinha tido uma criança. Sobre a sua vida, os seus relacionamentos e se ela teria alguma informação acerca de uma menor de idade que ele engravidara pouco antes.

Mariana contou a história dela e assumiu que o seu relacionamento tinha começado quando ela era ainda menor. O primeiro contacto físico aconteceu quando ela tinha 14 anos e a relação prolongara‑se até ao nascimento do bebé, com algumas interrupções. Porém, fora mãe há cerca de um ano, tinha agora 24 anos de idade e o seu caso já nada valia para a Justiça. Os crimes tinham prescrito. Quanto ao resto, desconhecia.

Esta sequência de episódios na vida de Mariana foi fundamental para fazê‑la despertar para a sua vida ao longo da última década. Nos meses seguintes procurou mensagens em telemóveis antigos, desabafos em diários escritos à mão, conversas com o padre em várias redes sociais, até reconstruir a sua história e encontrar‑lhe um início. Naquelas primeiras mensagens que ele lhe enviou, ela tinha 12 anos, era ainda uma criança que foi sendo conquistada até ao primeiro beijo, dois anos depois.Um traço comum a alguns padres suspeitos de abusos estudados em vários países, como veremos, que concluem que estes agressores fazem todo um caminho, que pode prolongar‑se no tempo, até consumarem o primeiro ato sexual.

Nesta pesquisa incessante, Mariana pensava estar a resolver‑se, a arrumar tudo para se libertar e seguir com a sua vida. Mas as consequências desta descoberta tornaram‑se catastróficas. Saber que tinha sido vítima de vários crimes revelou‑se um fardo demasiado pesado para conseguir carregar sozinha. E Mariana acabou internada a receber tratamento psiquiátrico.

Hoje sente‑se mais forte, mas não curada. As memórias são como as visitas que vão aparecendo quando não esperamos. Como ela, há pelo menos centenas de outras vítimas de abusos por membros do clero que partilham o mesmo. À Comissão Independente chegaram 512 testemunhos, a maior parte na primeira pessoa. Um processo difícil, porque a cada vez que as vítimas recordam o que viveram e sofreram recuam a «um tempo traumático das suas infâncias», como se lê no relatório final daquele grupo de trabalho. E revivem o trauma.