PRÓLOGO DO AUTOR

Bebedores mui ilustres e mui preciosos sifilíticos (pois a vós, e não a outros, são dedicados os meus escritos), Alcibíades, no diálogo de Platão intitulado O Banquete, elogiando o seu preceptor Sócrates, sem controvérsia o príncipe dos filósofos, diz, entre outras palavras, que ele era semelhante aos Silenos(1). Silenos eram outrora pequenas caixas parecidas com as que vemos agora nas lojas de boticários, pintadas em cima com figuras divertidas e frívolas, como harpias, sátiros, gansos refreados, lebres cornudas, patos albardados, bodes voadores, cervos atrelados e outras tantas figuras imitadas com esmero para incitar o mundo a rir. À imagem de Sileno, mestre do bom Baco; mas, no seu interior, eram guardadas drogas finas, como o bálsamo, o âmbar cinzento, o cardamomo, o almíscar, o óleo de civeta, pedrarias e outras coisas preciosas. Ele dizia que Sócrates era semelhante porque, vendo-o de fora e avaliando-o pela sua aparência exterior, não daríeis por ele uma casca de cebola, de tal modo ele era feio e ridículo na sua pose, com o nariz pontiagudo, o olhar de touro; tinha o rosto de um louco, simples nos costumes, rústico no vestuário, pobre de fortuna, desafortunado com mulheres, inepto para todos os cargos do Estado, sempre a rir-se, sempre a beber à saúde de qualquer um, sempre a troçar, sempre a dissimular a sua divina sabedoria. Mas, se abrísseis essa caixa, iríeis encontrar no interior uma celeste e inestimável droga: entendimento mais do que humano, virtudes maravilhosas, coragem invencível, sobriedade sem par, segurança perfeita, desprezo incrível por tudo aquilo que faz com que os homens tanto velem, corram, trabalhem, naveguem e batalhem.

A que propósito aspira, na vossa opinião, este prelúdio e exórdio inicial? Ele deve-se ao facto de vós, meus bons discípulos, e alguns outros loucos ociosos, ao lerdes os divertidos títulos de certos livros da nossa invenção, como Gargântua, Pantagruel, Bebedolas, A Dignidade das Braguilhas, Ervilhas com Toucinho cum commento(2), etc., julgardes demasiado facilmente que no interior deles apenas se fala de zombarias, galhofas e mentirolas divertidas, visto que a tabuleta exterior (que é o título), caso vos fiqueis por ela, é geralmente acolhida com irrisão e chacota. Mas não é com semelhante ligeireza que devem ser avaliadas as obras dos humanos. Pois vós mesmos dizeis que o hábito não faz o monge; e um homem pode estar vestido de hábito monacal sem que no seu interior tenha o que quer que seja de monge; e outro homem pode estar vestido com uma capa à espanhola sem que a sua coragem tenha qualquer relação com Espanha. É por isso que se tem de abrir o livro e examinar cuidadosamente aquilo que nele é dito. Vereis então que a droga nele contida é de um valor bem diferente daquele que a caixa prometia. O que quer dizer que as matérias aqui tratadas não são tão galhofeiras como o título que as encima sugeria.

E, admitindo o caso de encontrardes em sentido literal matérias suficientemente divertidas e que correspondam bem ao nome, todavia não vos deveis ficar por aí, como perante o canto das sereias(3), mas sim interpretar no mais elevado sentido o que porventura julgais levianamente dito.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Nunca abristes uma garrafa? Canalha! Voltai a lembrar-vos da atitude que tínheis. Nunca vistes um cão encontrando um osso medular? Trata-se, como diz Platão no livro II de A República, do mais filosófico animal do mundo. Se o vistes, pudestes observar com que devoção ele o espia, com que cuidado o retém, com que fervor o agarra, com que prudência o corta, com que zelo o parte e com que diligência o sorve. Quem o induz a fazê-lo? Qual a esperança do seu estudo? Qual o bem que procura? Nada mais do que um pouco de medula. É certo que esse pouco é mais delicioso do que muitas outras coisas; porque a medula é um alimento elaborado até atingir a perfeição natural, como diz Galeno(4) no livro III das Faculdades Naturais e no livro XI de O Uso das Partes do Corpo.

É na esteira deste exemplo que vos convém serdes sábios para cheirar, sentir e apreciar estes livros de grande valor, ágeis na caçada e ousados no combate. Depois, por meio de um estudo curioso e de uma meditação frequente, deveis partir o osso e sorver a substantífica medula. Ou seja, interpreto estes símbolos pitagóricos com a firme esperança de que a referida leitura vos tornará sábios e corajosos. Pois ides encontrar nela um gosto muito diferente e uma doutrina mais oculta, a qual vos revelará muito elevados arcanos e mistérios horríficos, tanto no que respeita à nossa religião como no que respeita ao Estado político e à vida económica.

Acreditais verdadeiramente que Homero, ao escrever a Ilíada, estivesse a pensar nas alegorias com que o calafetaram Plutarco(5), Heráclides do Ponto(6), Eustáquio(7), Cornuto(8) e em tudo aquilo que Poliziano(9) foi roubar a estes? Se acreditais nisso, não vos aproximais nem de perto nem de longe da minha opinião, que decreta que Homero as imaginou tão pouco quanto Ovídio, nas suas Metamorfoses, sonhou com os mistérios do Evangelho, coisa que um tal frade Lubin(10), autêntico parasita, se esforçou por demonstrar, para o caso de vir a encontrar pessoas tão loucas como ele ou, como diz o provérbio, farinha do mesmo saco.

Se não acreditais nisso, porque não fazeis o mesmo com estas divertidas e novas crónicas? Embora, ao escrevê-las, eu não pensasse mais nisso do que vós, que estáveis porventura a beber como eu. Porque, na composição deste livro magistral, eu não perdi ou empreguei nem mais nem menos tempo do que aquele de que necessito para tomar a minha refeição corporal; ou seja, para beber e comer. Além disso, é o momento apropriado para escrever sobre estas elevadas matérias e ciências profundas. Como bem o sabiam fazer Homero, modelo de todos os filólogos, e Énio(11), pai dos poetas latinos, tal como testemunha Horácio, embora um desgraçado tenha dito que os seus carmes cheiravam mais a vinho do que a azeite.

Semelhante coisa disse dos meus livros um herege(12), mas ele que vá à merda. Não é o odor do vinho muito mais guloso, gozoso, gracioso, mais celeste e delicioso do que o do azeite? E eu entenderia até como uma glória se dissessem de mim que gastei mais em vinho do que Demóstenes(13) em azeite, pois se dizia dele que gastava mais em azeite do que em vinho. Por mim, entendo apenas como uma honra e uma glória o facto de ser chamado e considerado bom folgazão e bom camarada, e é a esse título que sou bem-vindo em todas as boas companhias de pantagruelistas; um impertinente repreendeu Demóstenes por as suas orações cheirarem como o avental de um azeiteiro sujo e repugnante. Deveis, em suma, interpretar todos os meus feitos e ditos na sua perfeitíssima parte, mostrar reverência para com o cérebro caseiforme que vos deleita com estas belas historietas, e fazer tudo o que puderdes para que eu esteja sempre alegre.

E agora, meus amores, folgai e lede alegremente o que se segue, para conforto do corpo e benefício dos rins. Mas escutai, pilas de burro: que a úlcera vos deixe coxos se não vos lembrardes, em troca, de beber à minha saúde; eu não tardarei a pagar-vos na mesma moeda.

Gargântua & Pantagruel, Vol. I
Gargântua & Pantagruel, Vol. I créditos: E-Primatur/Gustave Doré

CAPÍTULO I

DA GENEALOGIA E DA ANTIGUIDADE DE GARGÂNTUA

Remeto-vos para a Grande Crónica Pantagruelina(14), que vos dará a conhecer a antiguidade e a genealogia com que Gargântua chegou até nós. Nela compreendereis mais pormenorizadamente como nasceram os gigantes neste mundo e como deles, em linha directa, saiu Gargântua, pai de Pantagruel; e não vos zangueis por disso me abster agora. Ainda que a coisa seja de tal ordem que, quanto mais recordada for, mais agradará a vossas senhorias, como atesta a autoridade de Platão no Filebo e no Górgias e a de Horácio, que diz que certos temas, como certamente estes, são tanto mais deleitáveis quanto mais vezes são repetidos.

Deus queira que cada um de vós saiba com tanta certeza a sua genealogia, desde a arca de Noé até à nossa época. Penso que muitos que são hoje na terra imperadores, reis, duques, príncipes e Papas descendem de vendilhões de relíquias e de reles vindimadores. Tal como, inversamente, muitos são mendigos de asilo, indigentes e miseráveis, e descendem do sangue de uma linhagem de grandes reis e imperadores, tendo em conta a admirável sucessão dos reinos e dos impérios:

Dos Assírios aos Medos.
Dos Medos aos Persas.
Dos Persas aos Macedónios.
Dos Macedónios aos Romanos.
Dos Romanos aos Gregos.
Dos Gregos aos Franceses.

E, para que fiqueis a saber alguma coisa de quem vos fala, julgo que sou descendente de algum rico rei ou príncipe de outros tempos. Pois nunca tereis visto um homem tão obstinado quanto eu em ser rei e rico, com o objectivo de fazer banquetes, de não trabalhar, de não me preocupar com nada e de enriquecer muito os meus amigos e todas as pessoas de bem e instruídas. Mas com isto me reconforto: sê-lo-ei no outro mundo, e talvez ainda mais do que agora ousaria desejar. E vós, reconfortai a vossa infelicidade com este pensamento, ou com outro melhor, e bebei do fresco, se o puderdes fazer.

Voltando à vaca fria, digo-vos que um dom soberano dos céus nos conservou a antiguidade e a genealogia de Gargântua, mais completa do que qualquer outra; excepto a do Messias, da qual não falo, pois não me cabe fazê-lo, além de que os diabos (são eles os caluniadores e os denunciantes) a tal se opõem. E ela foi encontrada por Jean Audeau, num prado que havia perto de Arceau Galeau, abaixo de Olive, na direcção de Narsay. Ao limparem os fossos, os cavadores tocaram com as suas enxadas num grande túmulo de bronze, de um tamanho incomensurável, pois não lhe descobriram então o termo, visto que ele se embrenhava demasiado no interior dos açudes de Vienne. Ao abrirem-no num determinado sítio assinalado, por cima de um vaso à volta do qual estava escrito em letras etruscas Hic bibitur(15), descobriram nove frascos na ordem pela qual se medem os quilos na Gasconha. Desses frascos, aquele que estava no meio cobria um grosso, gordo, gris, bonito, pequeno e bafiento livro, com um odor menos intenso, mas não inferior ao das rosas. Nele foi encontrada a referida genealogia, minuciosamente escrita em letras de chancelaria. Não em papel, não em pergaminho, não em cera, mas sobre casca de olmeiro; porém, tão desgastada pelo tempo que mal se conseguia distinguir três letras seguidas.

Eu próprio (embora indigno) ali fui chamado, e com grande esforço de lunetas pratiquei a arte de ler letras não evidentes, tal como ensina Aristóteles, e traduzi-as, como podeis ver, pantagruelizando, ou seja, bebendo à larga e lendo os feitos horríficos de Pantagruel. No final do livro havia um pequeno tratado intitulado As Bagatelas Antidotadas. Os ratos e as baratas ou (para que não minta) outros malignos animais tinham roído o começo; o resto já o acrescentei mais abaixo por respeito pela antiguidade.

Gargântua & Pantagruel, Vol. I
Gargântua & Pantagruel, Vol. I créditos: E-Primatur/Gustave Doré

Mas virá o ano, marcado por arco turquês,
Por cinco fusos e três cus de marmita,
No qual um rei demasiado pouco cortês
Será vencido num hábito de eremita.
Ah, piedade! Por uma reles hipócrita
Deixaríeis perderem-se tantos arpentes?
Cessai, pois esta máscara ninguém imita.
Retirai-vos junto do irmão das serpentes.

Passado esse ano, aquele que é reinará
Tranquilamente com os seus bons amigos.
Nenhum grito ou golpe então dominará.
Todo o bem-querer ali encontrará abrigos.
E o descanso que foi outrora prometido
Às pessoas do céu no seu campanário virá.
Todo o estábulo que já se viu punido
Num real palafrém, por fim, triunfará.

E durará esse tempo de trapaça
Até que Março sinta a mordaça.
Depois virá um que todos ultrapassa;
Delicioso, agradável, belo sem compasso.
Elevai os vossos corações, ide ao repasto,
Todas as minhas fezes. Pois esse finado
Por nenhum bem recuará seu passo,
De tal modo será o passado lamentado.

Finalmente, aquele que de cera foi
Irá alojar-se no gonzo de um ponteiro.
E não mais se aclamará «Senhor, oi!»
O malabarista que segura o caldeiro.
Ah! Quem segurasse o punhal inteiro:
Seriam limpos todos os zunidos obtusos
E poder-se-ia de modo bem matreiro
Ridicularizar toda esta loja de abusos.

Gargantua
Gargantua créditos: E-Primatur/Gustave Doré

CAPÍTULO III

COMO GARGÂNTUA ESTEVE ONZE MESES NO VENTRE DA SUA MÃE

Grandgousier(25) era no seu tempo um bom folgazão, que gostava de emborcar copos como qualquer homem que então estivesse vivo, e dava-lhe especial prazer comer salgados. Por isso, tinha geralmente um bom abastecimento de presuntos de Mayence e de Bayonne, muitas línguas de boi fumadas, abundância de chouriços na estação deles e carne de vaca salgada com mostarda. Reforço de butargas, provisão de salsichas, não de Bolonha (pois ele receava o veneno dos Lombardos), mas de Bigorre, de Brenne e de Rouergue. Na sua idade viril desposou Gargamelle(26), filha do rei dos Papillons(27), bela moça e com uma bonita carantonha. E faziam tantas vezes juntos o animal com duas costas, esfregando-se alegremente um no outro, que ela não tardou a engravidar de um belo filho que esteve nada menos do que onze meses no seu ventre.

Pois tanto tempo, ou até mesmo mais, podem as mulheres transportar uma criança no ventre, sobretudo quando se trata de alguma obra-prima ou de uma personagem que deve fazer grandes proezas no seu tempo. Como diz Homero, a criança (da qual Neptuno engravidou a ninfa(28)) nasceu volvido um ano: foi no décimo segundo mês. Porque (como diz Aulo Gélio(29) no livro III) esse longo tempo convinha à majestade de Neptuno, para que aquela criança se pudesse formar com perfeição. Por razão semelhante, Júpiter fez durar quarenta e oito horas a noite em que dormiu com Alcmena. Porque em menos tempo não teria podido forjar Hércules, que limpou o mundo de monstros e de tiranos.

Os antigos senhores pantagruelistas confirmaram aquilo que eu digo e declararam não apenas possível mas também legítima a criança nascida de mulher no décimo primeiro mês após a morte do marido.

Hipócrates(30), livro A Alimentação.
Plínio(31), livro VII, cap. V.
Plauto(32), in A Cestinha.
Marco Varro(33) na sátira intitulada O Testamento, alegando a autoridade de Aristóteles a este respeito.
Censorinus(34), livro Do Dia do Nascimento.
Aristóteles, livro VII, cap. III e IV de A Natureza dos Animais.
Aulo Gélio, livro II; cap. XVI. Sérvio(35), acerca das Éclogas, explicando este verso de Virgílio: «A mãe ao fim de dez meses»(36), etc.
E mil outros loucos. O seu número viu-se aumentado pelos juristas. «Dos Seus Legítimos», «Sem Testamento», parágrafo «Filhos».
E nas Autênticas «Das Restituições», «Sobre Aquela que Pariu ao 11.º Mês».

Além disso, eles ainda garatujaram a sua reafiambrada(37) lei «Gallus», além da Pandecta «Dos Filhos e Herdeiros Póstumos», e da lei VII, na Pandecta «Do Estatuto do Homem», e de outras das quais não ouso agora falar.

Por intermédio dessas leis, as mulheres viúvas podem livremente enroscar-se com outro, dois meses depois do falecimento do marido. Peço-vos o grande favor, a vós meus bons companheiros, de, no caso de encontrardes algumas que mereçam que eu abra a braguilha, virdes até cá acima mostrar-mas. Pois, se ficaram grávidas no terceiro mês, o seu fruto será herdeiro do defunto. E, conhecida a gravidez, elas correm descaradamente para outro lugar, e seja o que Deus quiser, visto que a barriga está cheia. Tal como Júlia, filha do imperador Octaviano, apenas se entregava aos seus tamborileiros quando se sentia grávida, do mesmo modo que um navio só recebe o seu piloto quando está calafetado e carregado. E se alguém as censura por se deixarem remendifornicar(38) assim durante a sua gravidez, visto que os animais durante a sua prenhez não toleram nunca um macho cobridor, elas respondem que não são animais, mas sim mulheres, com pleno conhecimento dos belos e alegres pequenos direitos de reenchimento, como outrora respondeu Popúlia, segundo o relato de Macróbio(39), no livro II das Saturnais. Se o diabo não quer que elas engravidem, ter-se-á de torcer o espicho, e boca fechada.

CAPÍTULO IV

COMO GARGAMELLE, ESTANDO GRÁVIDA DE GARGÂNTUA, COMEU UMA GRANDE QUANTIDADE DE TRIPAS

A ocasião e a maneira como Gargamelle pariu foi a seguinte. E, caso não acrediteis, que o vosso ânus descaia. O ânus dela descaiu depois de jantar, no terceiro dia de Fevereiro, por ela ter comido demasiada dobrada. A dobrada é feita com as tripas grossas de cornões(40). Cornões são bois engordados no estábulo e em prados revezantes(41). Prados revezantes são aqueles onde cresce erva duas vezes por ano. Destes gordos bois foram mortos trezentos e sessenta e sete mil e catorze, para que ficassem salgados no Carnaval e para que na Primavera tivessem boi da estação em quantidade, e assim comemorassem a salga no início das refeições e fosse melhor a entrada no vinho.

Gargântua & Pantagruel, Vol. I
Gargântua & Pantagruel, Vol. I créditos: E-Primatur/Gustave Doré

As tripas foram copiosas, como já sabeis; e estavam tão saborosas que todos chupavam os dedos. Mas o grande bico-de-obra era não se poder guardá-las durante muito tempo. Pois acabariam por apodrecer, o que parecia indecente. Pelo que ficou decidido que as devorariam sem que nada se perdesse. Convidaram, para esse efeito, todos os cidadãos de Cinais, de Seuillé, de La Roche-Clermault, de Vaugardy, sem se esquecerem de Le Coudray, Montpensier, do vau de Vède e de outros vizinhos, todos eles bons bebedores, bons camaradas e belos jogadores de chinquilho. O gentil Grandgousier teve nisso enorme prazer, e ordenou que tudo se escoasse das gamelas. Disse, porém, à mulher que comesse menos, visto que ela se aproximava do termo da gravidez, e que aquela tripagem não era carne muito recomendável. «Aquele (dizia ele) que masca a membrana tem grande vontade de mascar merda». Apesar destas admoestações, ela comeu dezasseis almudes, emborcou quinhentos e quarenta litros e mais seis marmitas. Que bela matéria fecal se devia revolver no seu interior!

Depois do jantar, foram todos em desordem até ao salgueiral, e aí, sobre a erva alta, dançaram ao som das alegres flautas e das doces cornamusas, tão animadamente que era um divertimento celeste vê-los folgarem assim.

CAPÍTULO V

AS CONVERSAS DOS MUITO BÊBEDOS

Em seguida, puseram-se animadamente à conversa naquele mesmo local. E eram garrafas a chegar, presuntos a saltar, copázios a voar, jarros a tilintar.

— Tira!

— Traz!

— Vira!

— Mistura!

— Dá-mo sem água, assim mesmo, meu amigo.

— Esvazia galantemente esse copo!

— Traz-me do clarete, copo transbordante!

— Basta de sede!

— Ah, maldita febre, será que não vais passar?

— Pela minha fé, comadre, não posso emborrachar-me.

— Estais enregelada, amiga?

— Sim!

— Pela barriga de São Quenet, falemos de beber!

— Eu só bebo a certas horas, como a mula do Papa.

— Eu só bebo do meu breviário, como um belo frade superior.

— O que surgiu primeiro, a sede ou a bebida?

— A sede. Pois quem teria bebido sem sede no tempo da inocência?

— A bebida. Pois privatio presupponit habitum(42). Eu sou clérigo. Faecundi calices quem non fecere disertum(43).

— Nós, os inocentes, bebemos mesmo quando não temos sede nenhuma.

— Eu, que sou pecador, nunca bebo sem sede. E se não beber pela presente, bebo pela sede futura. Antecipando-a, compreendeis? Bebo pela sede vindoura. Bebo eternamente, numa eternidade de bebedeira e numa bebedeira de eternidade.

— Cantemos e bebamos. Entoemos um motete.

— E quem me serve esse clarete?

— Mas será que só posso beber por procuração?

— Molhai-vos para vos secardes ou secai-vos para vos molhardes?

— Não percebo nada de teórica, da prática ainda me socorro um pouco.

— Despacha-te!

— Molho, humedeço, bebo. E tudo isso por medo de morrer.

— Bebei sempre e nunca morrereis.

— Se não bebo, fico a seco. Eis-me morto. A minha alma vai desaparecer num charco qualquer. A alma nunca pode habitar em seco.

— Taberneiros, ó criadores de novas formas, transformai-me de não bebedor em bebedor!

— Perenidade de irrigação para este secas e nervosas tripas!

— Bebe para nada, quem não o sabe sentir.

— Este entra no interior das veias, nada sobrará para o urinol.

— Eu lavaria de bom grado as tripas daquele vitelo que preparei esta manhã.

— Enchi bem o meu estômago.

— Se o papel das minhas dívidas bebesse tanto como eu, os meus credores iriam ficar toldados quando chegasse o momento de as liquidar.

— Esta mão suja-vos o nariz.

— Ah, quantos copos ali entrarão antes de este sair de lá!

— Um copo com tão pouco vinho é coisa para nos partir o pescoço.

—Isto chama-se um engodo de frascos.

— Qual é a diferença entre garrafa e bilha?

— Grande, porque a garrafa é tapada com uma rolha e a bilha com uma verga.

— Essa é boa!

— Os nossos pais beberam bem e esvaziaram as cabaças.

— Está bem cagado, cantado. Bebamos!

— Quereis levar alguma coisa à ribeira? Aquele ali vai lavar as tripas.

— Não bebo mais do que uma esponja.

— Bebo como um templário.

— E eu tamquam sponsus(44).

— E eu sicut terra sine aqua(45).

— Um sinónimo de presunto?

— É um promotor da beberagem. É uma prancha. Pela prancha desce-se o vinho até à cave, pelo presunto até ao estômago.

— Toca a beber, toca a beber. Ainda há espaço. Respice personam, pone pro duos, bus non est in usus(46).

Gargântua & Pantagruel, Vol. I
Gargântua & Pantagruel, Vol. I créditos: E-Primatur/Gustave Doré

— Se eu subisse tão bem como emborco, em breve estaria todo inteiro nos ares.

— Assim se tornou rico Jacques Coeur(47).

— Assim cresce a mata nos baldios.

— Assim conquistou Baco a Índia.

— Assim a filosofia conquistou Melinde.

— Pequena chuva abate grande vento. Longas beberagens interrompem a trovoada.

— Mas, se o meu colhão mijasse tal urina, não gostaríeis de a chupar?

— Seguro-o já a seguir.

— Pajem, vem cá, é a minha vez de te sugerir a minha nomeação.

— Sorve, Guillot, o vinho ainda não acabou.

— Eu vou mover um processo contra a sede, acusando-a de enganosa. Pajem, anota devidamente o meu recurso.

— Só mais este restinho!

— Dantes eu bebia tudo, agora não deixo nada.

— Não nos apressemos, é necessário misturar tudo muito bem.

— Aqui estão tripas para degustar, dobrada apetitosa, este boizinho raiado de negro. Ah, por Deus, vamos despachar tudo isto proveitosamente.

— Bebei ou eu…

— Não, não!

— Bebei, rogo-vos.

— Os pássaros só comem quando lhes batemos na cauda. Eu só bebo quando me lisonjeiam.

— Lagona edatera(48).

— Não há uma única nesga do meu corpo a que este vinho não venha mitigar a sede.

— Este excita-ma bem.

— Aquele ali iria de todo bani-la.

— Proclamemos, ao som de frascos e de garrafas, que aquele que perdeu a sede não a venha procurar aqui. Longos clisteres de beberagem expulsaram-no de casa.

— O grande Deus criou as estações, e nós fazemos as degustações.

— Tenho a palavra de Deus na boca: Sitio(49).

— A pedra chamada áaßsauoç (50) é tão inextinguível como a sede que tem a minha paternidade.

— O apetite vem enquanto comemos, dizia Hangest(51) em Mans. A sede desaparece quando se bebe.

— Remédio contra a sede?

— Ele é o contrário daquele que é dado contra a mordedura de cão: correi sempre atrás do cão, ele nunca vos morderá; bebei sempre antes da sede, e ela nunca vos apanhará.

— Apanhei-vos a dormir, malandro. Taberneiro celeste, não nos deixeis adormecer. Argos(52) tinha cem olhos para ver; de cem mãos, como tinha Briareu(53), precisa um taberneiro para infatigavelmente verter.

— Ah, molhemos, é tão bom secar.

— Do branco verte todo, em nome do diabo, verte-o cheiinho. Já se me péla a língua.

— Brindemos, amigos!

— A ti, companheiro, à nossa, à nossa!

— Isso, isso! Temos de devorar tudo!

— Ó lachryma Christi(54)!

— Mas é Devinière, é vinho Pinot!

— Ah, o gentil vinho branco é, pela minha alma, um vinho de tafetá.

— Hum, hum, este é de trás da orelha, bem enroupado e de boa lã.

— Coragem, meu companheiro!

— Para este jogo nada temos a recear, pois me calhou uma boa vaza.

— Ex hoc in hoc(55). Não há qualquer encantamento. Todos vós o pudestes ver. Sou disso mestre encartado.

— Upa, upa, sou o padre Macé!

— Ah, os bebedores! Ah, os sequiosos!

— Pajem, meu amigo, peço-te que aqui enchas e coroes o meu vinho.

— Como um chapéu de cardeal!

— Natura abhoret vacuum(56).

— Achais que uma mosca se atreveu a bebê-lo todo?

— À moda da Bretanha!

— Esvaziai, esvaziai a pinga!

— Engoli-a, pois não há melhor remédio!

Gargântua & Pantagruel, Vol. I
Gargântua & Pantagruel, Vol. I créditos: E-Primatur/Gustave Doré

CAPÍTULO VI

COMO GARGÂNTUA NASCEU DE UMA FORMA MUITO ESTRANHA

Enquanto eles tinham estas pequenas conversas de beberagem, Gargamelle começou a sentir-se mal do ventre. Ao aperceber-se disso, Grandgousier levantou-se da relva e reconfortou-a gentilmente, pensando que o mal tivesse a ver com a criança, dizendo-lhe que descansasse debaixo do verde do salgueiral e que em breve se sentiria fresca e aliviada, pelo que lhe convinha adquirir uma coragem nova para a nova vinda do seu pequerrucho, e que, mesmo que a dor a arreliasse um bocadinho, esta não seria porém longa, e a alegria que viria logo a seguir tirar-lhe-ia todo aquele aborrecimento, de modo que nem sequer se voltaria a lembrar disso.

— Coraçãozinho de ovelha! — dizia ele. — Despachai-vos deste e não tardaremos a fazer outro.

— Ah! — disse ela. — Como vós, homens, falais tão à-vontade. Por Deus que me vou esforçar, já que isso vos agrada. Mas quisesse Deus que vós o tivésseis cortado.

— O quê? — disse Grandgousier.

— Ah, sois um bom homem e compreendeis-me bem.

— O meu membro? — disse ele. — Sangue das cabras! Se isso vos parece bem, mandai trazer uma faca.

— Ah! — disse ela. — Isso não agradaria a Deus. Deus me perdoe, não o disse do coração, e nada façais a mais ou a menos por causa das minhas palavras. Mas terei muito com que me inquietar hoje se Deus não me ajudar, e tudo devido ao vosso membro, que vós fazeis jorrar tão facilmente.

— Coragem, coragem — disse ele —, não vos preocupeis com o resto, pois os dados estão lançados. Ainda vou beber mais uns copos. Se, entretanto, vos acontecer qualquer mal, eu estarei por perto, num abrir e fechar de olhos virei ter convosco.

Pouco tempo depois, ela começou a suspirar, a lamentar-se e a gritar. Depressa acorreram inúmeras parteiras de todos os lados. E, apalpando-a por baixo, encontraram algumas pelagens, de bastante mau-gosto, e pensaram que fosse a criança, mas era o ânus que se soltava, devido ao amolecimento do intestino da direita, ao qual chamais a tripa grossa, por ela ter comido demasiadas tripas como declarámos mais acima.

Então uma velha imunda da companhia, que tinha a reputação de ser excelente curandeira e que viera há sessenta anos de Brisepaille, perto de Saint-Genou, fez-lhe um adstringente tão horrível, que todos os seus buracos ficaram de tal modo obstruídos e comprimidos e só muito dificilmente se conseguiria alargá-los com os dentes, o que é uma coisa bastante horrível de pensar. À imagem do diabo, que, escrevendo o falatório de duas finórias na missa de São Martinho, ia com os dentes esticando o pergaminho.

Devido a este inconveniente, foram em cima alargados os flancos da matriz pelos quais a criança saltou e entrou na veia cava, trepando pelo diafragma até ao cimo dos ombros (onde a referida veia se divide em duas), tomou o seu caminho à esquerda e saiu pela orelha desse mesmo lado.

Assim que ele nasceu, não chorava como as outras crianças, «buá», «buá», mas gritava em voz alta: «beber, beber, beber», como se convidasse toda a gente a beber, de tal modo que foi ouvido em toda a região, desde Beauce até Vivarais.

Duvido que acrediteis piamente nesta estranha natividade. Se não acreditais, isso em nada me preocupa, mas um homem de bem, um homem de bom senso, acredita sempre naquilo que lhe dizem e que encontra por escrito. Será este facto contra a nossa lei, a nossa fé, contra a razão, contra a Santa Escritura? Pela minha parte, não encontro nada escrito nas Santas Bíblias que seja contra isto. Mas se tivesse sido esse o desígnio de Deus, vós diríeis que não o teria podido fazer? Ah, por misericórdia, não ataranteis nunca os vossos espíritos com esses vãos pensamentos. Pois digo-vos que a Deus nada é impossível. E, se Ele quisesse, as mulheres teriam daqui em diante os seus filhos pelas orelhas.

Não foi Baco engendrado da coxa de Júpiter?
Não nasceu Rocquetaillade do calcanhar da sua mãe?
Crocquemuche(57), por sua vez, da pantufa da sua ama?
Não nasceu Minerva da orelha do cérebro de Júpiter?
E Adónis da casca de uma árvore de mirra?
Castor e Pólux da casca de um ovo posto e chocado por Leda?

Mas ficaríeis ainda mais surpreendidos e espantados se eu vos expusesse agora todo o capítulo de Plínio em que se fala de partos estranhos e contra a natureza. E, todavia, estou bem longe de ser um mentiroso tão ousado como ele foi. Lede o sétimo livro da sua História Natural, capítulo III, e parai de me moer o juízo.

Gargântua & Pantagruel, Vol. I
Gargântua & Pantagruel, Vol. I créditos: E-Primatur/Gustave Doré

CAPÍTULO XXI

OS ESTUDOS DE GARGÂNTUA, SEGUNDO A DISCIPLINA DOS SEUS PRECEPTORES SOFISTAS

Passados assim os primeiros dias, e com os sinos recolocados no sítio que lhes pertencia, os cidadãos de Paris, em sinal de reconhecimento por essa gentileza, ofereceram-se para tratar e alimentar a sua égua sempre que ele quisesse, o que muito agradou a Gargântua, e mandaram-na ir viver para a floresta de Bièvre. Creio que ela já lá não deve estar.

Feito isto, ele dispôs-se a estudar com todas as suas forças segundo as prescrições de Ponócrates. Mas este, de início, ordenou-lhe que agisse como estava acostumado, para tentar perceber como é que, durante tanto tempo, os seus antigos preceptores o tinham tornado tão fátuo, pateta e ignorante. Dividia então o seu tempo de maneira a acordar geralmente entre as oito e as nove horas, fosse dia ou não, como lhe tinham prescrito os seus velhos regentes, evocando o que diz David: Vanum est vobis ante lucem surgere(58).

Depois dava cambalhotas, saltava como os carneiros, espojava-se na palha da cama durante algum tempo, para melhor alegrar os seus espíritos animais, e vestia-se de acordo com a estação, mas o que preferia era usar uma grande e comprida túnica de espesso tecido frisado, forrada de pele de raposa. Penteava-se depois com um pente de Almain(59), ou seja, com quatro dedos e o polegar. Pois os seus preceptores diziam que pentear-se, lavar-se ou limpar-se eram uma perda de tempo neste mundo.

Em seguida cagava, mijava, vomitava, arrotava, peidava-se, bocejava, cuspia, tossia, soluçava e assoava-se como um arcediago, e comia, para combater o orvalho e o ar maligno, belas tripas fritas, belas carnes assadas, belos presuntos, belos cabritos grelhados e muitas sopas de matinas.

Ponócrates admoestou-o de que não devia comer tanto ao sair da cama, sem antes ter feito algum exercício. Gargântua respondeu: «O quê? Não fiz eu suficiente exercício? Revirei-me seis ou sete vezes no meio da cama antes de me levantar. Não é bastante? O Papa Alexandre assim fazia por conselho do seu médico judeu(60), e viveu até ao dia da sua morte, apesar dos invejosos. Os meus primeiros mestres acostumaram-me a isto, dizendo-me que o pequeno-almoço tornava boa a memória, e por isso eram eles os primeiros a beber. E tenho-me sentido sempre muito bem, e almoço ainda melhor. E disse-me Mestre Thubal (que foi o melhor do seu curso em Paris) que o importante não é correr depressa, mas partir no momento certo; do mesmo modo, a saúde total da nossa humanidade não consiste em beber à larga, um copo a seguir ao outro, como os patos, mas sim em começar a beber logo de manhã. Unde versus(61):

Nunca devemos acordar cedo,
Beber de manhã tira-nos o medo.»

Depois de ter comido pontualmente, ia à igreja e traziam-lhe num grande cesto um grosso breviário empantufado que pesava, quer em gordura, quer nos fechos e no pergaminho, à volta de onze quintais e seis libras. Ali ouvia vinte e seis ou trinta missas. Entretanto, chegava o seu capelão titular, encasacado como uma poupa e com o hálito muito bem medicado à conta de xarope vinháceo. Com ele resmoneava todas aquelas litanias; e debulhava-as tão cuidadosamente que não caía no chão um único grão.

Ao sair da igreja, traziam-lhe numa carroça de bois um montão de rosários de Saint-Claude, qualquer deles tão grosso como o molde de um barrete, e, passeando pelos claustros, pelas galerias ou pelo jardim, ele rezava mais do que dezasseis eremitas.

Ele estudava depois durante uma indolente meia-hora, com os olhos pousados sobre o livro, mas (como diz o cómico) a sua alma estava na cozinha(62).

Mijando então um bacio inteiro, sentava-se à mesa. E, como era por natureza fleumático, começava a sua refeição por algumas dúzias de presuntos, de línguas de boi fumadas, de pedaços de caviar, de chouriços, e outros que tais precursores do vinho.

Enquanto isso, quatro dos seus servidores deitavam-lhe continuamente na boca, umas a seguir às outras, pazadas cheias de mostarda; depois, bebia um trago descomunal de vinho branco para aliviar os rins. Em seguida, consoante a estação, comia toda a carne que lhe apetecia, e só parava de comer quando sentia a barriga completamente esticada.

Para beber ele não conhecia fim nem regra, pois dizia que as metas e os limites de beber só eram atingidos quando o bebedor vê a cortiça da sua pantufa inchar meio palmo.

Gargântua & Pantagruel, Vol. I
Gargântua & Pantagruel, Vol. I créditos: E-Primatur/Gustave Doré

CAPÍTULO XXIII

COMO GARGÂNTUA FOI INSTRUÍDO POR PONÓCRATES COM UMA DISCIPLINA TAL, QUE NÃO PERDIA NEM UMA HORA DO DIA

Quando Ponócrates ficou a saber da viciosa maneira de viver de Gargântua, decidiu instruí-lo diferentemente em letras, mas foi tolerante nos primeiros dias, por considerar que a natureza não suporta mudanças súbitas sem grande violência.

Então, para melhor começar o seu trabalho, rogou a um sábio médico daquele tempo, chamado mestre Théodore, que lhe dissesse se achava possível reencaminhar Gargântua para uma via melhor. Aquele purgou-o de modo canónico com heléboro de Anticira, e com esse medicamento lhe limpou do cérebro toda a alteração ou perversa habituação. Foi também graças a esse meio que Ponócrates o fez esquecer-se de tudo o que aprendera com os antigos preceptores, tal como fizera Timóteo(63) com os seus discípulos que tinham sido ensinados por outros músicos.

Para melhor o conseguir fazer, introduziu-o na companhia das pessoas sábias que ali havia, na emulação das quais lhe cresceria o espírito e o desejo de estudar de outro modo e de se valorizar.

Pô-lo em seguida num tal ritmo de estudo, que ele não perdia uma única hora do dia, consumindo todo o seu tempo nas letras e no saber honesto.

Gargântua acordava então por volta das quatro horas da manhã. Enquanto o esfregavam, liam-lhe alguma página das divinas escrituras em voz alta e distinta, com uma pronúncia adequada à matéria, e disso estava encarregado um jovem pajem natural de Basché, que se chamava Anagnosta(64). Segundo o tema e o argumento destas lições, muitas vezes se entregava a venerar, adorar, rezar e suplicar ao bom Deus, do qual a leitura lhe mostrava a majestade e o juízo maravilhoso. Depois ia aos locais secretos fazer a excreção das digestões naturais. Aí, o seu preceptor repetia aquilo que tinha sido lido, explicando-lhe os pontos mais obscuros e difíceis.

Ao regressarem, observavam o estado do céu: se ele estava como o tinham visto na noite precedente, e em que signos entrava o Sol, e também a Lua, naquele dia. Feito isto, Gargântua era vestido, penteado, frisado, arranjado e perfumado, e, durante esse tempo, repetiam-lhe as lições do dia anterior. Ele próprio as dizia de cor e aplicava-lhes alguns casos práticos relativos ao estado dos homens, comentários que ele era por vezes capaz de estender por duas ou três horas, mas que em geral terminavam assim que ele ficava completamente vestido. Depois, durante umas boas duas horas, eram-lhe feitas leituras.

Em seguida eles saíam, discutindo sempre o tema da leitura, e iam fazer desporto em Bracque ou nos prados, jogando à bola, à péla ou à bola de três, e exercitavam elegantemente os corpos tal como antes tinham exercitado as almas. Todos os seus jogos eram livres, pois interrompiam a partida quando lhes apetecia, e terminavam geralmente quando sentiam o corpo suado ou quando já estavam cansados. Eles eram então muito bem enxugados e esfregados e mudavam de camisa; e, passeando tranquilamente, iam ver se o almoço estava pronto. Aí, enquanto esperavam, recitavam claramente e eloquentemente algumas das sentenças retidas da lição.

Gargântua & Pantagruel, Vol. I
Gargântua & Pantagruel, Vol. I créditos: E-Primatur

Livro: "Gargântua & Pantagruel, Vol. I"

Autor: François Rabelais

Editora: E-Primatur

Tradutor: Manuel de Freitas

Data de Lançamento: 2 de maio

Preço: € 29,90 

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Chegava, entretanto, o senhor apetite e oportunamente se sentavam à mesa. Ao início da refeição era lida uma qualquer história divertida de antigas proezas, até que ele tomasse o seu vinho. Então, se lhe parecesse bem, continuava-se a leitura, ou começavam alegremente a conversar juntos, falando, nos primeiros meses, das virtudes, das propriedades, dos efeitos e da natureza de tudo o que lhes era servido à mesa. Do pão, do vinho, da água, do sal, das carnes, dos peixes, dos frutos, das ervas, das raízes e do modo como estes eram preparados. Graças a esse procedimento, ele aprendeu em pouco tempo todas as passagens a esse respeito em Plínio, Ateneu(65), Dioscórides(66), Júlio Pólux(67), Galeno, Porfírio(68), Opiano(69), Políbio(70), Heliodoro(71), Aristóteles, Eliano(72), entre outros. Enquanto falavam desses assuntos mandavam frequentemente que trouxessem os referidos livros à mesa, para melhor se certificarem. E tão bem e tão completamente ele reteve na memória aquilo que era dito, que não havia médico daquele tempo que soubesse metade do que ele sabia. Conversavam depois acerca das lições que tinham sido lidas de manhã, e terminavam a refeição com uma qualquer compota de marmelo, limpavam os dentes com um ramo de lentisco, lavavam as mãos e os olhos com bela água fresca, e davam graças a Deus com alguns belos cânticos feitos em louvor da magnificência e da benignidade divinas. Depois disso, traziam-lhes cartas, não para jogarem, mas para nelas aprenderem mil pequenas gentilezas e novas invenções, todas elas provenientes da aritmética.

Foi desse modo que ele se afeiçoou àquela ciência numérica, e todos os dias, a seguir ao almoço e ao jantar, lhe dedicava o seu tempo tão agradavelmente como o costumava dedicar aos dados ou às cartas. Tanto ficou a saber dela, quer na teoria, quer na prática, que o inglês Tunstal(73), que escreveu amplamente sobre esse tema, se comparado com ele, não percebia patavina daquilo. E não apenas desta, mas também de outras ciências matemáticas, como a geometria, a astronomia e a música. Pois enquanto esperavam a digestão e a assimilação dos alimentos, dedicavam-se a mil divertidos instrumentos e figuras geométricas, tal como praticavam as leis astronómicas. Deleitavam-se depois a cantar musicalmente a quatro ou cinco vozes, ou a partir de um tema que lhes apetecesse trautear. No que respeita aos instrumentos de música, ele aprendeu a tocar alaúde, espineta, harpa, flauta alemã e de nove buracos, viola e sacabuxa.

Passada assim essa hora e terminada a digestão, ele purgava-se dos excrementos naturais. Entregava-se depois ao seu estudo principal durante três horas ou mais, fosse para repetir a leitura matinal, fosse para prosseguir o livro começado ou ainda para escrever e devidamente traçar e formar as letras antigas e romanas.

Feito isso, saíam de casa com um jovem cavalheiro de Touraine, chamado o escudeiro Gymnaste, que lhe revelava a arte da cavalaria. Ele mudava então de roupa, montava um corcel, um rocim, um ginete, um cavalo bravo, um cavalo afável, e fazia-o dar vinte voltas, rodopiar no ar, transpor um fosso, saltar uma paliçada, fazer um curto círculo tanto à direita como à esquerda. Aí ele não destruía a lança, pois é a maior vaidade do mundo afirmar «destruí dez lanças num torneio ou numa batalha», coisa que imaginamos ser dita por um carpinteiro; mas glória verdadeiramente digna de louvor é ter-se com uma lança destruído dez inimigos. Em suma, com a sua lança afiada, sólida e rígida, ele partia uma porta, furava um arnês, derrubava uma árvore, atravessava uma argola, arrancava uma sela de armas, um lorigão, um guante. E fazia tudo isto armado dos pés à cabeça.

No que respeitava ao passo de desfile e a fazer chamamentos com a língua aos cavalos, não havia ninguém que o fizesse melhor do que ele. Comparado com ele, o volteador de Ferrara não passava de um macaco. Tinha aprendido, em particular, a saltar de um cavalo para o outro sem tocar no chão – chamava-se-lhes cavalos de volteio – e a montar de ambos os lados, com a lança empunhada, sem estribo, e a guiar a seu bel-prazer, sem rédeas, o cavalo. Pois tais coisas são úteis para a disciplina militar.

Num outro dia, exercitava-se no machado, e tão bem o fazia deslizar, tão solidamente o apertava em cada estocada, tão agilmente o descia em círculo, que o promoveram a cavaleiro de armas, nas provas de campo e nas restantes. Depois, manejava o chuço, brandia a espada de duas mãos, a espada bastarda, a espanhola, a adaga e o punhal, com armadura, sem armadura, com escudo infibular, com capa, com broquel.

Ele caçava o cervo, o cabrito-montês, o urso, o gamo, o javali, a lebre, a perdiz, o faisão, a abetarda. Jogava à bola grande e fazia-a saltar no ar, ora com o pé, ora com o punho. Lutava, corria, saltava, mas não ao salto de três passos, nem ao pé-coxinho, nem ao salto de Alemão – «porque (dizia Gymnaste) tais saltos são inúteis, e de nenhum préstimo na guerra». Mas com um salto ele atravessava um fosso, voava por cima de uma sebe, subia seis degraus ao longo de uma muralha, e dessa mesma maneira trepava a uma janela com a altura de uma lança.

Ele nadava em águas profundas, para a frente e para trás, de costas, com todo o corpo; apenas com os pés, atravessava todo o rio Sena com uma mão no ar, segurando um livro sem o molhar, e puxando o manto com os dentes tal como fez Júlio César(74). Depois, usando apenas uma mão, entrava com grande força num barco, dali se lançava novamente à água de cabeça, sondava o fundo, descia às grutas dos rochedos, mergulhava nos abismos e nos precipícios. Fazia depois voltar o barco, dirigia-o, conduzia-o apressadamente, lentamente, seguindo a corrente, indo contra ela, retinha-o no meio de uma eclusa, guiando-o com uma mão enquanto a outra esgrimia um grande remo, estendia a vela, subia ao mastro pelos cordames, corria as estacas, punha as bolinas em contravento, segurava firmemente o leme.

Saindo da água, subia velozmente até ao cimo da montanha, e descia com idêntica obstinação; trepava às árvores como um gato, saltava de uma para outra como um esquilo, cortava os grossos ramos como um novo Milo(75). Com dois punhais afiados e dois punções experimentados, subia ao topo de uma casa como um rato e descia depois de cima a baixo com uma tal disposição dos membros, que a queda não lhe provocava qualquer ferimento.

Lançava o dardo, a barra, a pedra, a lança, o chuço, a alabarda, esticava a fundo o arco, retesava com os rins as fortes arbaletas de assalto, apontava com o olho o arcabuz, punha o canhão na carreta, fazia tiro ao alvo, ao papagaio, de baixo para cima, de cima para baixo, de frente, de lado, para trás como os Partas. Atavam-no a um cabo que pendia para terra de uma qualquer alta torre e subia por ele com as duas mãos, descendo depois com mais firmeza e segurança do que qualquer de vós faria num prado bem nivelado. Colocavam uma grande vara apoiada a duas árvores na qual ele se pendurava com as mãos e ia e vinha, sem que os pés em nada tocassem, de modo que nem em grande corrida se conseguiria apanhá-lo.

E, para exercitar o tórax e os pulmões, ele gritava como mil diabos. Ouvi-o uma vez chamar Eudemon desde a porta Saint-Victor até Montmartre. Estentor(76) nunca conseguiu ter uma voz assim na guerra de Tróia. E, para fortificar os nervos, fizeram-lhe dois grandes blocos de chumbo derretido, pesando cada um deles oito mil e setecentos quintais, aos quais ele chamou halteres. Levantava-os do chão em cada uma das mãos e elevava-os no ar por cima da cabeça, e assim os mantinha durante três quartos de hora ou mais, o que revelava uma força inimitável. Jogava às barras com os mais fortes. E, quando era chegado o momento, aguentava-se nos seus pés tão firmemente que se permitia afrontar o mais aventuroso, caso este o quisesse mudar de lugar, como outrora fazia Milo, em imitação do qual tinha também uma romã na mão, e oferecia-a a quem lha conseguisse tirar.

Tendo assim aplicado o seu tempo, e depois de ele ter sido esfregado, limpado e vestido de fresco, regressavam muito tranquilamente e, ao passarem por certos prados ou por outros lugares herbosos, observavam as árvores e as plantas, comparando-as com os livros dos autores antigos que escreveram sobre elas, tais como Teofrasto(77), Dioscórides, Marino(78), Plínio, Nicander(79), Macer(80) e Galeno, e levavam uma grande quantidade delas para casa, das quais se encarregava um jovem pajem chamado Rhizotome(81), que tratava também das enxadas, das picaretas, dos sachos, das pás, dos enxadões e de outros instrumentos necessários para bem arborizar.

Ao chegarem a esse local, enquanto o jantar era preparado, repetiam algumas passagens do que se tinha lido e sentavam-se à mesa. Convém notar aqui que o almoço deles era sóbrio e frugal, pois comiam unicamente para refrear os latidos do estômago, mas o jantar era copioso e demorado. Pois nisso consiste o verdadeiro regime prescrito pela boa e segura medicina, por mais que um monte de médicos imbecis, desfazendo-se em disputas na escola dos sofistas, aconselhe o contrário. Durante aquela refeição, era continuada a lição do almoço e, enquanto lhes parecesse bem, o resto do tempo era dedicado a temas úteis e letrados.

Depois de terem feito a acção de graças, entretinham-se a cantar musicalmente, a tocar instrumentos harmoniosos ou com esses pequenos passatempos que se fazem com cartas, dados e copos, e assim se ocupavam folgadamente e se divertiam por vezes até à hora de se irem deitar, indo outras vezes procurar a companhia de pessoas letradas ou de pessoas que tinham visto países estrangeiros. Em plena noite, antes de se retirarem, iam até ao local mais descoberto da sua morada ver a disposição do céu e observavam os cometas, se houvesse alguns, as figuras, situações, aspectos, oposições e conjunções dos astros.

Depois, com o seu preceptor, ele recapitulava abreviadamente, segundo o modo dos pitagóricos, tudo aquilo que tinha lido, visto, aprendido, feito e ouvido durante todo o dia. Louvavam então Deus criador, adorando-o e reiterando a fé que tinham nele, glorificando-o pela sua bondade imensa; e, dando-lhe graças por todo o tempo passado, recomendavam-se à sua divina clemência para todo o tempo futuro. Feito isto, entregavam-se ao repouso. 

Gargântua & Pantagruel, Vol. I
Gargântua & Pantagruel, Vol. I créditos: E-Primatur/Gustave Doré

CAPÍTULO XXIV

COMO GARGÂNTUA OCUPAVA O TEMPO QUANDO O DIA ESTAVA CHUVOSO

Quando acontecia o dia estar chuvoso e instável, todo o tempo antes do almoço era ocupado como de costume, excepto o facto de terem de acender um belo e claro fogo para corrigir a humidade do ar. Mas depois do almoço, em vez dos exercícios, ficavam em casa e, em jeito de apoterapia(82), entretinham-se a enfeixar molhos de feno, a partir e a serrar lenha e a malhar gavelas no celeiro. Depois, estudavam a arte da pintura e da escultura ou voltavam a pôr em prática o antigo jogo das tábuas, tal como o escreveu Leonico(83) e como o joga o nosso bom amigo Lascaris(84). Ao jogá-lo, rememoravam as passagens dos autores antigos de que era feita menção ou a partir dos quais se colocava uma metáfora. De modo semelhante, iam ver como se estiravam os metais, ou como se fundia a artilharia, ou iam ver os lapidários, os ourives e os cortadores de pedras, ou os alquimistas e os moedeiros, ou os tecedores, os tecelões, os fabricantes de veludo, os relojoeiros, fabricantes de espelhos, impressores, fabricantes de órgãos, tintureiros e outros trabalhadores parecidos, e, dando sempre gratificações, eles aprendiam e observavam o engenho e a mestria dos ofícios. Iam ouvir as leituras públicas, os actos solenes, as repetições, as declamações, os discursos de defesa dos nobres advogados, os sermões dos pregadores evangélicos. Ele passava pelas salas e pelos locais destinados à esgrima, e aí experimentava todas as armas lutando contra os mestres, mostrando-lhes que sabia tanto ou mais do que eles. E, em vez de herborizarem, visitavam as lojas dos farmacêuticos, ervanários e boticários, e observavam atentamente os frutos, raízes, folhas, gomas, sementes, unguentos exóticos, bem como o modo como estes eram transformados. Ele ia ver os saltimbancos, os prestidigitadores e os charlatães, e observava os seus gestos, astúcias, cambalhotas e a sua bela lábia, sobretudo a dos que vêm de Chauny, na Picardia, pois eles são por natureza grandes tagarelas e belos enunciadores de patranhas acerca de elefantes cor-de-rosa.

Ao regressarem para o jantar, comiam mais sobriamente do que nos outros dias, e carnes mais secas e mais magras, para que a intensa humidade do ar, necessariamente comunicada ao corpo por contiguidade, fosse desse modo corrigida e não se lhes tornasse incómoda pelo facto de não se terem exercitado como costumavam fazer.

Assim foi educado Gargântua; e progredia de dia para dia, aproveitando como vós bem sabeis que pode fazer um homem jovem, com bom senso para a sua idade, em semelhante exercício, quando este se vê continuado. E, embora este lhe tenha de início parecido difícil, com a continuação tornou-se-lhe tão suave, ligeiro e deleitável que mais parecia um divertimento de rei do que os estudos de um aluno. Todavia, para o aliviar daquela violenta tensão do espírito, Ponócrates escolhia, uma vez por mês, um dia bastante claro e sereno em que saíam ao amanhecer da cidade e iam ou a Gentilly, ou a Bolonha, ou a Montrouge, ou à ponte de Charenton, ou a Vanves, ou a Saint-Cloud. E aí passavam todo o dia a regalarem-se o melhor de que eram capazes: gracejando, divertindo-se, bebendo o mais que podiam, jogando, cantando, dançando, espojando-se num qualquer belo prado, desanichando passarocos, apanhando codornizes, rãs e lagostins-do-rio.

Mas, embora esse dia fosse passado sem livros nem leituras, de modo nenhum era passado sem proveito. Pois num belo prado eles recitavam de cor alguns versos agradáveis de A Agricultura, de Virgílio, de Hesíodo, do Rústico de Poliziano; inventavam alguns epigramas em latim e punham-nos depois em língua francesa, recorrendo a rondós e a baladas. Ao banquetearem-se de vinho misturado com água, separavam a água tal como ensinam Catão(85) em A Vida Rústica e Plínio: usando uma taça de hera, lavavam o vinho num amplo bacio de água e retiravam-no depois com um funil; faziam passar a água de um copo para o outro e construíam vários pequenos maquinismos autómatos, ou seja, que se movem por si mesmos.

Notas:

  1. Apesar da referência a Platão, a imagem de Sileno aqui veiculada por Rabelais é claramente devedora do adágio «Sileni Alcibiadis», de Erasmo de Roterdão (1466-1536). Outro adágio erasmiano que influenciou este «Prólogo» é «Phytagorae Symbolae».
  2. Em latim no original. Tradução: «com um comentário».
  3. Cf. Homero, Odisseia, XII, v. 39-54 e v. 165-200.
  4. Cláudio Galeno, ou Élio Galeno, mais conhecido como Galeno de Pérgamo (c. 129-c. 217): médico e filósofo romano de origem grega.
  5. Lúcio Méstrio Plutarco (46-120): historiador, biógrafo e filósofo grego.
  6. Heráclides do Ponto (c. 390 a.C.-c. 310 a.C.): filósofo e astrónomo grego que foi discípulo de Platão. Segundo Abel Lefranc, estudioso de Rabelais e autor de uma minuciosa, ainda que incompleta, edição crítica das suas obras [Oeuvres de François Rabelais, Paris, Champion, 1912-1931], terá sido erroneamente atribuído a Heráclides do Ponto um livro intitulado De Allegoriis apud Homerum.
  7. Eustáquio de Tessalónica (c. 1115-c. 1195): bispo e académico bizantino que escreveu extensos comentários sobre as obras de Homero.
  8. Lúcio Aneu Cornuto (?-54): escravo libertado de Séneca que fundou uma escola em que ensinava a doutrina estóica. Os poetas Lucano e Pérsio foram seus alunos.
  9. Agnolo Ambrogini, mais conhecido como Angelo Poliziano (1454-1494): poeta renascentista florentino.
  10. Apelido genérico e depreciativo de frade pateta, ocioso ou lascivo. Literalmente, «Lubin» significa «matreiro», «devasso», «desregrado».
  11. Quinto Énio (239 a.C.-169 a.C.): dramaturgo e poeta romano.
  12. No original «Tirelupin»; adulteração do termo «turlupin», que designava o membro de uma seita herética.
  13. Demóstenes (384 a.C.-322 a.C.): célebre orador e político grego.
  14. Esta genealogia surge, de facto, logo no primeiro capítulo de Pantagruel.
  15. Em latim no original. Tradução: «Aqui bebe-se».
  16. Invasores germânicos derrotados por Mário, conhecido como o terceiro fundador de Roma, em 101 a.C.
  17. Segundo a mitologia grega, rei de Creta filho de Europa e de Zeus.
  18. A águia, que é também o símbolo do império germânico.
  19. Doutores hebraicos que estudavam os textos bíblicos.
  20. Deusa que personifica o erro, segundo a mitologia grega.
  21. Rainha das Amazonas, filha de Otrera e de Ares.
  22. Deusa romana que era considerada protectora das mulheres.
  23. Deusa romana dos infernos.
  24. Referência a Cipião, o Africano (?-183 a.C.): general e político romano, que, ao derrotar Aníbal, pôs termo ao domínio de Cartago.
  25. Literalmente, «grande garganta».
  26. Nome forjado a partir de «gargamello», que significava «garganta» no dialecto do Languedoque.
  27. Literalmente, «borboletas».
  28. Tiro, mãe de Pélias e de Neleu.
  29. Aulo Gélio (123-165): jurista, escritor e gramático romano.
  30. Hipócrates (460 a.C.-370 a.C.): médico e escritor grego.
  31. Caio Plínio Segundo (23-79), mais conhecido como Plínio, o Velho: naturalista romano.
  32. Tito Mácio Plauto (c. 230 a.C-180 a.C.): dramaturgo romano.
  33. Marco Terêncio Varro (116 a.C.-27 a.C.): académico e autor satírico romano.
  34. Censorinus: gramático e filósofo romano do século iii.
  35. Mauro Sérvio Honorato: gramático italiano do século v.
  36. Cf. Virgílio, Bucólicas, IV, v. 61.
  37. No original «robidilardicque»; termo forjado por Rabelais a partir de «rodilardique» (de «rodilard», equivalente de «rongelard», «morde-toucinho», com provável sentido licencioso) e de «rober» («descascar», «furtar»).
  38. No original «rataconniculer»; termo licencioso formado a partir de «rataconner» («consertar», «remendar»).
  39. Ambrósio Teodósio Macróbio (370-430): escritor, filósofo e filólogo romano.
  40. No original «coiraux» (termo dialectal da região de Anjou): «bois que se alimentam na manjedoura».
  41. No original «guimaulx» (termo dialectal da região de Poitou): «prados que são ceifados duas vezes por ano».
  42. Em latim no original. Tradução: «a privação pressupõe o hábito».
  43. Em latim no original. Tradução: «Como eram eloquentes aqueles que inventaram os cálices fecundos».
  44. Em latim no original. Tradução: «não mais do que uma esponja».
  45. Em latim no original. Tradução: «como terra sem água».
  46. Em latim no original. Tradução: «Respeitai a pessoa, trazei para dois, não está na moda beber».
  47. Jacques Coeur (c. 1395-1456): banqueiro e mercador francês cuja fortuna se tornou lendária.
  48. Em latim no original. Tradução: «Toca a despejá-lo».
  49. Em latim no original. Evocação paródica das palavras de Jesus na Cruz: «Postea sciens Jesus quia omnia consummata sunt, ut consummaretur Scriptura dixit: Sitio.» («Depois disso, Jesus, sabendo que tudo se consumara, para se cumprir totalmente a Escritura, disse: “Tenho sede!”» – João, 19, 28, tradução utilizada: Bíblia Sagrada, Lisboa/Fátima, Difusora Bíblica/Franciscanos Capuchinhos, 2014).
  50. Em grego no original. Tradução: «amianto».
  51. Jerôme de Hangest (c.1480-1538): bispo de Mans e doutor em teologia.
  52. Personagem da mitologia grega a quem uns atribuíam quatro olhos (um par à frente e um par atrás) e outros uma infinidade de olhos espalhados pelo corpo.
  53. Personagem da mitologia grega dotada de vários membros.
  54. Em latim no original. Tradução: «lágrimas de Cristo» (literalmente), mas pode também tratar-se de uma alusão a um vinho moscatel produzido em Montefiascone, perto do Vesúvio, que tinha esse mesmo nome.
  55. Em latim no original. Tradução: «Daqui para ali».
  56. Em latim no original. Tradução: «A natureza tem horror ao vazio».
  57. São desconhecidas as lendas que possam estar associadas a Rocquetaillade e a Crocquemouche, mas é possível que Rabelais aluda aqui a Jean de Roquetaillade (1310-c. 1362), teólogo e alquimista francês que pertenceu à ordem franciscana.
  58. Em latim no original. Tradução: «É inútil que vos levanteis antes da manhã».
  59. Jacques Almain foi um doutor escolástico da Universidade de Paris. Rabelais faz aqui um trocadilho entre Almain e «main» («mão»), uma vez que Gargântua utiliza como pente os seus dedos.
  60. Alusão a Bonnet de Lates, judeu convertido, que foi médico e astrólogo do Papa Alexandre VI.
  61. Em latim no original. Tradução: «Daí os versos».
  62. Cf. Terêncio, Eunuco, v. 816.
  63. Alusão a um episódio narrado por Quintiliano (cf. Institutio oratoria, II, III).
  64. Nome forjado a partir do grego, com o significado «leitor».
  65. Ateneu de Náucratis (c. 170-223): gramático, poeta e retórico grego.
  66. Pedânio Dioscórides (40-90): botânico, farmacólogo e físico grego.
  67. Júlio Pólux (?-238 d.C.): gramático e lexicógrafo e grego.
  68. Porfírio de Tiro (c. 234-c. 306): filósofo neoplatónico.
  69. Opiano de Apameia: poeta greco-romano do século iii.
  70. Políbio de Cós: médico grego que foi discípulo de Hipócrates e viveu no século iv a.C.
  71. Heliodoro de Emesa: escritor que foi bispo de Trica e que viveu nos séculos iii e iv.
  72. Cláudio Eliano (c. 175-235): escritor e professor romano.
  73. Cuthbert Turnstal (1476-1559): bispo de Durham, autor de um famoso tratado de aritmética publicado em Londres, em 1522.
  74. Alusão a um episódio narrado por Plutarco (Vida de Júlio César, XLIX, IV).
  75. Milo de Crotona, famoso lutador grego do século vi a.C.
  76. Estentor é uma personagem mitológica referida uma única vez na Ilíada, onde nos é dito que ele gritava como cinquenta homens (cf. Virgílio, Eneida, v. 784).
  77. Teofrasto (c. 371-287 a.C.): biólogo e filósofo grego que sucedeu a Aristóteles na direcção da escola peripatética.
  78. Marino: célebre anatomista do século ii muito louvado por Galeno, mas que nunca terá escrito qualquer tratado de botânica.
  79. Nicander de Cólofon: físico, gramático e poeta grego do século ii a.C.
  80. Emilio Macer (?-16 a.C.): poeta romano que escreveu textos didácticos e foi influenciado pela obra de Nicander de Cólofon.
  81. Nome forjado a partir do grego, com o significado «cortador de raízes».
  82. Prática de desenvolvimento corporal recomendada por Galeno.
  83. Provável referência a Niccolò Leonico Tomeo (1456-1531), humanista e professor de filosofia veneziano que escreveu o livro De ludo talario (1524).
  84. Janus Lascaris (1445-1535): intelectual grego que foi bibliotecário de François I, rei de França.
  85. Marco Pórcio Catão (234 a.C.-149 a.C.): político e escritor romano.