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, que tropel é este que jorra nos meus ouvidos, uma manada em correria e um estampido de touro ribatejano, que cavalos são esses que fui proibido de montar pelo tio Diniz, de espingarda alçada, sacola à bandoleira, de cabedal esfarrapado, que planície sem fim é aquela, que lezíria, que rio lento, que paul, que pego, que céu imóvel, que falcão peregrino alça as asas mais alto que os freixos, que bufo-real sopra mais sólido que o vento, que coração de lata no meu peito, enferrujado de quase nove décadas de vida, que palavras estalam na minha escrita, que Blimunda-Pilar me escalda o olhar, mo enfurece por saber que a vou perder, que Sol, que Lua me acenam, despedindo-se, que ferro é aquele que, rubro de fogo, inscreve na minha carne a comunidade do Ribatejo, da Golegã, que vara vibra no braço do campino, tornei-me em adulto o touro da minha infância e arremessei-me contra o mundo, o pampilho transformou-se na minha caneta e gravei nas minhas células a força da besta contra o homem, nunca me rendi, nem mesmo quando, no primeiro congresso na legalidade do Partido, o Pavilhão dos Desportos inteiro votava a favor do ditame do comité central o fim da expressão «ditadura do proletariado», um braço no ar, um único voto entre não menos de mil delegados, o meu, em protesto, não hipotequei o juízo, mesmo que limitado, ao Partido, e como estampido de um touro e o tropel de um cavalo, votei contra, paninhos quentes e meias sopas nunca foram comigo, que horas são estas que me escurecem o olhar, sombrias como as minhas personagens do Ensaio, sombras de sombras lhes chamei eu, menos a Mulher do Médico, que transporta resistência e esperança, sombras da claridade das minhas ideias, as personagens figuram ideias com carne, ossos, sangue e nervos, sobretudo nervos, alegorias lhes chamaram, apaga-se-me a vista, nascidos do escuro morremos no escuro, já o vejo dentro de mim, ao escuro, um túnel forrado de negridão, um preto feltroso, mas cintilante, como a terra fértil do Evangelho trazido pelo anjo que se revela diabo, não translúcida, antes baça e opaca, feita do éter espiritual que o padre Bartolomeu foi buscar à Holanda protestante, sim, de pedra mole, o barro da vida e da morte que me leva pela mão, nada vejo, sinto a fragrância do perfume da Pilar, onde está ela, pouco cheiro, a morte é isto, um túnel de forro preto que envolve o meu corpo, acolchoando-o, entristeço-me, falta-me aqui o Cão das Lágrimas a meu lado, de mim compadecido, por mim chorando, o corpo, descomposto pela doença, está a morrer, está morrendo, dizem os brasileiros, mais acertado, como não tenho alma, nela não acredito, ficam a minha esforçada obra e o meu intenso amor pela Pilar, filha e netos, seria altura de deixar uma frase lapidar, de que os jornais tanto gostam, síntese do que pensei e defendi, mas nada me vem, as dores da agonia preenchem-me a consciência, nos primeiros cinquenta anos de vida augurei um futuro radioso, os últimos trinta e cinco dececionaram-me, o homem, metade indiferente à sorte alheia, metade ruindade, chamaram-me pessimista, catastrofista, verdadeiramente realista me deveriam chamar, prático, objetivo, racional, embalo-me sonolento entre as doses de morfina, não vejo solução positiva para o homem, disse-o no Ensaio e na Terra do Pecado, não encontrei motivos para outra coisa pensar, nenhuma esperança me estimula, sei que na velhice reside o tempo de se pensar que connosco morre o mundo, não penso assim, penso que, como o corpo do homem, o mundo está morrendo desde que nasceu e séculos ainda arrastará esta aflitiva decadência, mas não retornará a tempos luminosos, não se trata da morte de um império para outro nascer, de uma idade para outra irromper radiosa, a globalização tem destas coisas, o seu fim é o fim, preciso de interromper o curso da mente que me força a pensar em apocalipses, olha, lá vêm eles, não os convoquei, apareceram-me, apercebi-me hoje, manhãzinha, um sol frio a encher-me a casa, vieram com aquele linguajar ribatejano que arrasta as vogais, como se indecisos em falar, a boca aberta, suspensa no tempo, titubeante, os lábios entre o ó e o zê, fui para Lisboa aos dois anos, já balbuciei como alfacinha, a minha linguagem é a da cidade, nas férias galhofava com a avó Josefa, imitando-lhe a articulação das vogais, nem abertas nem fechadas, lábios rasos como a planície, olhos alongados como o horizonte, o primeiro a assomar foi aquele de quem não sei o nome mas cuja figura reconheço, o meu bisavô mouro, altivo, faces curtidas pelo sol, atravessara o sertão do Alentejo a pé, chapéu preto espanhol, jaqueta de caçador, caçadeira entre as mãos, olhos claros de berbere, ombros estreitos, como os meus, cabelo encaracolado como o meu, pele castanha de seu natural, alçou a mão direita, delgada e impositiva, os dois molossos sentaram-se, cada um do seu lado, fixando-me, não agressivos, dóceis, finalmente via-o, dele não restam fotografias, deitara-me, as dores sofridas, o analgésico a borbulhar no estômago, as pálpebras vacilantes, o olhar turvo, quero dizer amor em castelhano à Pilar, que me ampara a mão, me leva aos lábios um sumo de laranja, sussurro em português, amor, o avô Jerónimo e a avó Josefa também aqui estão, sentados na borda da cama, o berbere ao fundo do quarto parece impaciente, de atalaia com os dois sabujos, sempre assim vivera, ele, o meu bisavô, em alerta, diziam-me que era homem de nunca agradecer, só faço o que devo e se tenho o que mereço nada devo agradecer, o seu olhar disse-me, chegou a hora, não te ponhas a disfarçar, basta, viveste o suficiente, alcançaste o que nenhum outro português alcançou, tu, aquele puto da Azinhaga, conhecido no mundo inteiro, pernas esguias, peito esquálido, bem te via a saltar poças e charcos, a apanhar cobras-d’água nos pauis, sapos nos brejos, sanguessugas nas represinhas, vê lá aonde chegaste, não mais longe nem mais perto do que o senhor, que atravessou o Mediterrâneo não sei como, escalou a serra do Caldeirão, quem sabe se não se alimentou de medronho, embebedando-se, labutou no meu Alentejo como um ganhão, talvez aqui tenha pernoitado no casinhoto dos antepassados dos Mau-Tempo, pensei em si na cooperativa, no Lavre, à noite, à volta da fogueira, por vezes vislumbrava-lhe o espectro, uma sombra ondeante adelgaçada em torno das labaredas, e veio parar à Golegã, a um baldio, que ocupou, fez uma choça de troncos e ramagens, caçava e pescava para comer, acolheu os dois cães e oferecia-se para trabalhos ao portão dourado e verde das quintas, recebido pelas serviçais das senhoras de avental bordado alvíssimo que lhe abriam as pernas à entrada das cocheiras, procedo de um bisavô mouro ou berbere como o padre António Vieira, somos os dois o retrato vivo da história, ele com Cristo no tempo de Cristo, eu sem Cristo e sem o tempo dele, ele em nome de Cristo a denunciar e a criticar, eu em nome do homem a denunciar e a criticar, a certidão de nascimento da minha mãe regista-a neta de avô incógnito, aquele famoso bisavô berbere, mouro é que devia ser, cuja fama de arrasa-corações e arranca-pinheiros nunca enganou ninguém, deu-nos os genes, a parecença comum, o ar de família, esqueleto alto, corpo delgado, tez morena, feições vincadas cortadas a enxó, olhos pequenos e estreitos, rosto quadrado, que reunia, numa espécie de tribo reconhecível à légua, os Saramago da Azinhaga, a cepa masculina que nos compôs não era daquelas paragens ribatejanas, viera de África, como o australopiteco primitivo, e acrescento, um dos poucos homens que o visitou, disse-me a avó Josefa, foi morto e enterrado ali mesmo, vinha pedir explicações ao mouro por este lhe ter cativado a mulher e recebeu em cheio no peito a descarga da caçadeira, quem foi este homem que me deu o antigo ser, a Pilar beija-me os olhos, dá-me força para descerrar as pálpebras, recebo novo comprimido de morfina para me aplacar as dores, a minha mãe senta-se na borda da cama, orgulhosa de mim, com o mesmo sorriso feliz da Casa do Alentejo na apresentação de Levantado do Chão, ri-se entre o avô e a avó, vestidos à ribatejana, cotim e camisa de flanela aos quadrados, o avô com a cinta enrolada, o barrete ribatejano a escorregar da cabeça suada, ele descalço, ela de tamancos gretados de cortiça, a mãe à urbana, malinha de falsa pele na mão comprada nos saldos do Grandella, vestido escuro listrado de fazenda, camisa creme de folhos, punhos rendados, chapéu imitação barata de boina francesa, olhei, pálpebras trémulas, para o retângulo da porta, sombreado pelo sol esquivo que perfurava as cortinas de tule, receava a aparição do meu pai polícia, não, este não veio, assomou o meu pai jornaleiro, calças amarfanhadas de brim, cara amarrotada, botas empoeiradas de carneira velha, um colete amachucado, as mãos enroladas uma na outra, a enxada ao lado, a pá de valar, levantava o dedo, alçava-o mais alto que os companheiros oferecendo-se para a jorna da semana, o maioral, de má catadura, não o queria na campanha, forçado porém a aceitá-lo, o peito rijo do pai, forte
para o trabalho, disciplinado, maldizente, sempre crítico dos aleijões do mundo, legado que me deixou, em Lisboa ajustou-se como polícia, virou para o lado feio do mundo, quando entrou no quarto, pé ante pé, desconfiado, trajava a farda de militar da primeira guerra mundial, cotim cinzento, capote de mescla, botões de metal, botas untadas de sebo, castanhas, brilhantes, tachas a explodir no soalho, polainas de couro curtido, não viera o pai polícia, viera o pai jornaleiro e o pai soldado, libertador, que me contava histórias do gás mostarda e das baionetas dos boches, depois virou pai polícia, repressor, deu um passo dentro do quarto, um frio fúnebre arrepiou-me, é verão, está calor, evaporara-se o sol frio, adviera um sol brilhante, refulgente, o céu brilha claro, azulíneo, nunca resolvi a infância triste que tive com um pai impositivo, autoritário, um salazarzinho de trazer por casa, um polícia, cabo, depois subchefe de esquadra, não me lembro de a mãe me dar um abraço, um beijo, havia uma atmosfera de desconfiança, habituei-me a prenunciar segundas intenções, daí talvez a necessidade que sinto da análise, de ver além da superfície, vivíamos em casas repartidas com outros casais, os irmãos Barata, eu dormia num colchão velho ao lado da cama de meus pais, o pai roncava com a força do resfolegar dos porcos da Azinhaga, deitava-se primeiro, a mãe depois, agitada mas silenciosa, delicada, olhei para a figura fantasmática do avô Jerónimo, exposto na roda da Santa Casa, onde estariam os seus porcos, o pai jornaleiro não, nunca o conheci, histórias que o pai polícia contava, não a mim, aos Baratas homens, ao jantar, painho do Pombalinho sobre a mesa, fatias de pão duro, chourição e vinho carrascão, torresmos e morcela preta, davam-lhe nas tascas da rua dos Cavaleiros, à Mouraria, vigiadas pelo pai, que lhes expulsava bêbados e párias, e algum dinheiro, e mulheres da rua, à noite, quando regressava da esquadra do Socorro, ofereciam-se, ele aproveitava, encostava-as à parede, penetrava-as, nada podia fazer com a mãe enquanto eu estivesse no quarto, havia constrangimento, eu percebia mas desconhecia o porquê, está aí o miúdo, dizia a mãe para o pai, porra para o pingarelho, ajuntava o pai, aplicando mal a palavra aprendida em Lisboa, a Pilar ajeita-me a almofada, sinto um fio de baba a escorrer-me pela comissura esquerda dos lábios que ela limpa com um lencinho branco, esguicho os lábios docemente, presumindo beijar-lhe a mão, fico-me pela intenção, que os lábios pouco me obedecem, a Pilar adivinha e beija-me as faces, prenuncio que chorava, sinto, junto ao nariz, o restículo de humidade de uma ou duas lágrimas, não precisamos de falar, sabemos quem somos um para o outro, o que faremos, recordo o provérbio «casamento e mortalha no céu se talha», fomos talhados um para o outro, harmonizávamo-nos em corpo e pensamento, em tudo nos proporcionávamos, ao contrário da minha primeira experiência sexual com a Domitília, ansioso, desajeitado e punido, habitávamos a mesma casa, ela filha de um dos Barata, fomos apanhados, ela e eu, metidos na mesma cama a brincar aos noivos, ativos, curiosos de tudo quanto no corpo existe para ser tocado, penetrado e remexido, apanhámos umas palmadas no rabo, creio recordar que sem demasiada força, lembro-me de estar na varanda das traseiras (um quinto andar altíssimo), de cócoras, com a cara metida entre os ferros, a chorar, enquanto a Domitília, na outra ponta, me acompanhava nas lágrimas, mas não nos ficou de emenda, uns anos depois, ela foi visitar a tia Conceição, e o caso é que não havia ali tia nem tio, nem meus pais estavam em casa, graças ao que tivemos tempo de sobra para acercamentos e investigações que, embora não chegando a vias de facto, deixaram inapagáveis lembranças a um e a outro, ou pelo menos a mim, que ainda estou a vê-la, nua da cintura para baixo, a Pilar ao telefone, ouço em eco, cara contrita, repesada, chama o médico, levanta a voz, diz vale!, vale!, aceno-lhe levemente com a cabeça, tenho dificuldade em falar, a língua não se move, dou-lhe ordens mas ela não obedece, Pilar, não vale a pena, é o fim, o fim dos fins, o momento derradeiro, os meus avós e os meus pais já aí estão, até veio o bisavô com os dois rafeiros, seria ocasião para fazer uma contrição se deus existisse, não consigo, de nada me arrependo, deus é só um nome na cabeça dos homens, um sentimento útil para dar crédito à esperança no futuro dos deserdados, devo perdoar àqueles que me martirizaram de acusações falsas, umas, outras mentirosas, outras ainda carregadas de má-fé, o que foi, foi, o que aconteceu de mau ou de bom, aconteceu, nada há a perdoar ou a acusar, talvez àqueles que se aprazem nas malfeitorias contra os seus semelhantes, o meu pai avança um pé, já o conheço, insinua-se para dominar, uma presença autoritária, a mãe levanta-se, dá-lhe o lugar na borda da minha cama, não, mãe, percebi a tua submissão, hoje não a percebo, o avô Jerónimo interpôs-se, nunca gostou do genro, agradecia-lhe o pão sobre a mesa em Lisboa, que não faltava, mais não, ergo um dedo, o demonstrador direito, soergo a custo as pálpebras, o pai desaparece, não o quero aqui, os avós também o não querem, o bisavô desinteressa-se, semente da família mas não parte dela, corpo delgado, hirto, musculoso da faina, solitário, tinha tudo para agradar às carnes rijas das ribatejanas, faz-me plantão sem saber o porquê, desconhece-me o porquê da fama, admira-se, não sabia ler, não sabe o que é ser escritor, o motor da minha vida, o meu destino, sempre chegamos aonde nos esperam, e a escrita esperava-me desde que folheei a Athena e um poema de Ricardo Reis me impressionou, como se ali visse espelhada a minha vida, teria eu, não me lembro, não mais que dezassete anos — «Para ser grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui / Sê todo em cada coisa / Põe quanto és no mínimo que fazes / Assim em cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive» —, foi uma revelação, uma hierofania, deleitosa como as de santa Teresa de Ávila, não guerreira e violenta como as de Joana d’Arc, o anúncio que tinha descoberto na escrita o deus que não há, ela deu-me sustento, física e mentalmente, sem ela a vida não teria tido sentido, mas tardou a chegar o reconhecimento da sua qualidade, afrontei-me por um labirinto da escrita que me realizava — e alimentava — no dia a dia, mas não me satisfazia, a mim e aos leitores, bendito desemprego para o qual me arrastou aquele ano revolucionário, é agora ou nunca, decidi-o no restaurante da Madragoa que frequentava com a Isabel, vou escrever, só, mais nada, disse-lhe, tomado de um entusiasmo adolescente, tinha cinquenta e quatro anos, não tinha trabalho e as finanças claudicavam, virava os bolsos e nem um tostão, foi bom porque me forçou a renascer, apeteceu-me ir à porta e gritar a toda a gente, vou ser escritor, agora sim, ando, meu deus (é uma expressão), a tentar desde os vinte e quatro, trinta anos inúteis, o meio da vida, a maturidade, eu sempre a traduzir os outros, a escrever para revistas, a publicar os livros dos outros, como um serviçal das editoras, a Isabel pareceu ficar assustada, comia pescada cozida com feijão-verde, suspendia o garfo no ar antes de lhe voltear os dentes para cima, ajeitando-o à boca, o mindinho espetado como um farol, o seu tique aristocrata, relíquia de educação de menina fina, sosseguei-a, continuaria as traduções e as revisões, recordo-me que lhe disse, se não me deixam mudar  o mundo — acabara de ser despedido do Diário de Notícias, acusado de comunista —, nada impede que me mude a mim próprio, a Isabel, cética, respondeu-me, essa é a maior revolução, um homem ser homem, não ser isto ou aquilo, mas homem, e, para ti, ser homem é ser escritor, eu sei, respondi, andei sempre pelos caminhos da escrita, tu sabes, tentei tudo, crónica, poesia, editor, romance, mas o fracasso tornara-se evidente, o leitor não me desprezava, não podia afirmá-lo, pura e simplesmente não se interessava pela minha escrita, desconhecia-me, como todos desconhecem o meu primeiro conto infantil, A Menina e o Baloiço, lírico mas pessimista, metáfora para todos os sonhos paradisíacos das crianças esboroados pelo crescimento, permanecendo distantes e utópicos e, finalmente, envolvidos num manto de tristeza e solidão, que a menina tenta vencer com as «saudades de uma mão na sua mão», isto é, com a solidariedade, um homem juntar-se a outro homem como única forma de combater o fracasso após a vivência da felicidade utópica ao modo da mente de uma criança, emerge a distopia da verdadeira realidade: «Um denso nevoeiro começou a levantar-se do chão.

Dos Moonspell para a literatura. Fernando Ribeiro traz "Café Kanimambo" ao É Desta Que Leio Isto de junho

Fernando Ribeiro junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 22 de junho, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "Café Kanimambo", que chegou às livrarias a 29 de maio e assinala o regresso do vocalista dos Moonspell à literatura, depois de publicar o seu primeiro romance, "Bairro sem saída", em 2021.

Além da análise da obra, esta conversa permitirá também traçar a relação entre música e literatura, aproveitando a experiência do músico em palcos por todo o mundo, com a banda portuguesa de heavy metal.

"Entre o thriller e a narrativa hardcore, 'Café Kanimambo', segundo romance de Fernando Ribeiro, é a confirmação do autor como uma das vozes mais acutilantes da nova ficção nacional, num livro perturbante que não deixará ninguém indiferente", pode ler-se na apresentação da obra.

Pode ler também um excerto deste livro aqui.

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As cidades ocultaram-se atrás dele, e os campos, e o mar. Já não havia céu azul. Era tudo uma espessa e húmida nuvem onde passavam murmúrios e vozes antigas. A menina tremia de frio. Não tinha medo, só o frio. Estendeu os pés à procura dos degraus [da escada que levava à tábua do baloiço], e não havia degraus. Então deixou-se escorregar da sua tábua de oiro, e caiu. Caiu lentamente, como em sonhos, um pouco triste e cansada.

Quando chegou ao chão, ficou enrolada como um pequeno animal ou a casca de um fruto. O nevoeiro começou a dissipar-se devagar, rolando em volutas desmanchadas. Por entre elas, rompiam raios de sol. E de repente desapareceu. A menina olhou para cima. O baloiço lá estava, muito mais alto que antes, com a sua tábua de oiro e as cordas floridas. Mas não havia degraus.

Então a menina sentou-se e esperou. Perto de si abria-se uma rosa com a paciência do tempo reencontrado. A menina aproximou o rosto da flor terrestre e ali ficou à espera que a fossem buscar: porque era menina e tinha saudades doutra mão na sua mão», sempre este buraco entre o sonho e a realidade que, desde a juventude, se não antes, me tornou cético, não consigo ser como o Vieira, homem feliz em infelizes circunstâncias, batalhando contra estas com uma vontade furiosa, crente no paraíso do Quinto Império como eu no comunismo, ambos tentámos tornar o mundo mais justo mas eis que logo este se entortava, verdadeiramente nunca deixou de ser torto, nós, porém, filhos do ideal, sonhávamo-lo direito, reto, Vieira à luz das parábolas de Cristo, eu à luz dos ensinamentos de Marx, não estávamos enganados, ele foi o homem mais fracassado da história de Portugal, nada do que sonhou se cumpriu, o Quinto Império nunca veio, os índios do Maranhão e do Grão-Pará foram exterminados, os judeus condenados pela Santa Inquisição e os pretos continuaram a ser barbaramente escravizados, mas, como ele, é forçoso prolongar o sonho de um mundo justo, a um homem decente não resta outra coisa, mesmo sabendo ser ilusão o bem universal, uma construção lírica da mente humana, a minha conhecida ironia nasce daqui, da crítica azeda contra a sociedade que retira os degraus da escada da felicidade utópica à criança-tornada-adulta, forçando-a à solidão e à tristeza, a crítica contra o interesse material que rege as sociedades e exige a expulsão platónica dos poetas da cidade, protestei, exigi o poeta na cidade na minha crónica «Salta, Cobarde!», a assistência revolta-se e o orador encerra apressadamente a sessão, eu próprio, apresentado na crónica como um ele, sofro da doença do lirismo, não consigo evitar: «Muitas vezes estas minhas prosas navegam em barcas engrinaldadas, com acompanhamento de violinos poéticos, de efeitos de luz que vou buscar às transparências cristalinas, às rendas vegetais, aos esbatidos das visões aquáticas. É pendor de que me não libertarei nunca e de que (porque não dizê-lo?) não me envergonho», mais tarde escrevi novo conto infantil, A Maior Flor do Mundo, a avó Josefa, na borda da minha cama, chora ao modo das avós, baixinho, habituadas a anos de convívio com a desgraça, mais um pranto murmurado do que um choro, «Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. (…)

E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. (…) Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. (…) Porque foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu. (…) Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”

Pré-publicação de

Livro: "O último minuto na vida de Saramago"

Autor: Miguel Real

Editora: Companhia das Letras

Data de lançamento: 12 de junho

Preço: € 16,65

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É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua», e o avô, «um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pôde ser nunca», cabe-me agora a vez de morrer, os meus deuses humanos já chegaram, e imito a tua simplicidade, «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!», disse-me a avó um dia, eu também gostaria de continuar, sentir de novo a alegria dos pobres, a festa dos amigos, a pureza das crianças, a resignação dos velhos, o amor com a Pilar, mas morro feliz, vivi mais do que queria ter vivido, não sofri de imaginação suficiente para acreditar que seria um dos mais conhecidos escritores do mundo, não da Azinhaga, que outro não tem, não de Lisboa, que muitos e presumidos tem, uma cáfila de pedantes intelectuais, tão publicitados quanto medíocres, não de Portugal, estufa histórica de ótimos escritores, de dom Diniz a Agustina, mas mesmo do mundo, orgulha-me e responsabiliza-me, era este o lugar aonde eu, não o querendo, não o ambicionando, deveria chegar, tinha aprendido uma lição, que um escritor só é deveras grande se for um transgressor, um contestatário do poder, aprendi-o com Gil Vicente, com Sá de Miranda, com Camões, com Vieira, Garrett e Alexandre Herculano, Eça de Queirós e Antero de Quental, com todos os que se sentaram na história da literatura portuguesa e combateram a situação herdada, desafiaram o pensamento dominante, Gil Vicente censurado mal chegou a Inquisição, Sá de Miranda trinta anos exilado em Cabeceiras de Basto, descontente com os louvaminheiros do empório que substituíra o império, Camões expulso da corte, preso, exilado à força na Índia, Vieira quatro anos a escarrar sangue, ele o diz, aprisionado nos cárceres de custódia do Santo Ofício em Coimbra, Herculano desconsolado em Vale de Lobos, Antero suicidando-se, desgostoso da decadência de Portugal, ai dos poetastros que se encostam ao poder, dele recebendo benefícios, exigindo comendas, morrendo bafejados pelos louvaminheiros do Estado, espero que o horroroso Cavaco Silva não vá ao meu enterro, vir para esta casa foi o caminho certo, não podia mais, abria o jornal em Lisboa e via a feira de vaidades de políticos de pacotilha, títeres de um poder maior, senti o nojo que Sá de Miranda sentiu em Coimbra, a corte de dom João III dominada pelos arrivistas interesseiros, o sentimento de Camões quando escreveu que «fraco rei faz fraca a forte gente», a denúncia satírica de Gil Vicente aos corregedores, aos fidalgos presunçosos, aos clérigos de banhas gordas, quando Vieira escreveu que «Não» era a palavra mais importante do mundo e quando Antero de Quental, sentado, ergueu a pistola sob a palavra «Esperança», tudo por que eu lutara no Diário de Notícias se esboroou diante de mim, não me bastou denunciar as fracas e balofas elites portuguesas, já não aguentava, caía lentamente na resignação, Lanzarote foi um recomeçar de vida após a censura do governo de Cavaco ao meu Evangelho, fui para o exílio voluntário, como Pessoa, isolado, recolhido, vivera em Lisboa, Pascoaes em Gatão, Brandão em Guimarães, Teixeira-Gomes em Bougie, Régio em Portalegre, Torga em Coimbra, avô, tu ensinaste-me que não se deixa os porcos passar frio ao relento da noite, os porcos são, para o homem, os animais dos pobres, os que servem para tudo, como os trabalhadores, sessenta anos a labutar para pôr o pão sobre a mesa a filhos e netos e, no final, se não tinham dinheiro para pagar ao vigário da paróquia, o corpo jogado para a vala comum com um lençol roto a servir de mortalha, tu levavas os porcos para a cama, para os aqueceres, abraçaste-te ao tronco das árvores quando partiste da tua casa para não mais regressar, morreste desgraçadamente em Lisboa, enterrado — meu deus! — no assético e burguês cemitério de Benfica, foi a tua lição que aprendi, não a do pai, policial repressor, sabujo para os de cima, opressor para os debaixo, um buraco de princípios, uma montanha de interesses, um cérebro sem utopias, apenas a conta bancária e a ordem nas ruas lhe interessava, a figura do pai já desapareceu do quarto, ainda bem, os avós sorriem para mim em aprovação, o bisavô mouro, rosto granítico, olhar esmeralda, afaga os dois mastins como se, acarinhando os animais, a mim me acariciasse, a Pilar move-se, inquieta, senta-se no lugar da minha mãe, que, antiga mulher portuguesa, saiu, seguiu o meu pai, fico com a impressão de que a roda do mundo ribatejano que girou na minha família brotou em flor na minha vida, fui, a ser verdade que todos têm um destino traçado, a sua realização final, mortos há mais de meio século ninguém hoje falaria dos ribatejanos Jerónimo e Josefa, menos do meu bisavô, de quem nem o nome sei, ou soube e esqueci-me, há estes mistérios na vida das famílias, um justifica o todo, dando sentido a séculos de anonimato, gostaria de me soerguer na cama mas não tenho força, abraço mentalmente os avós, agradeço-lhes o exemplo de luta contra o infortúnio e, simultaneamente, a humildade de se sentirem satisfeitos com o que tinham, sorrindo para o neto que lhes habitava a casa nas férias grandes, deram-me a felicidade possível e a ilimitada liberdade do horizonte azul da planície e do fio verde do Almonda, ali, a beijar o Tejo, no correr dos dois rios percebi que sempre fica algo do que passa, que é a marca do nosso carácter, a ética frontal do meu bisavô, por vezes violenta, e a ética de luta diária pela sobrevivência dos meus avós, sem mentiras e imposturas, sim, avós, quando penso na minha infância e adolescência, não penso na Mouraria, no Alto do Pina, na Penha de França, na Morais Soares, penso na Azinhaga, onde, mesmo triste e melancólico, fui feliz, feliz em circunstâncias infelizes, como diria padre Vieira: «Olho agora o rio [Almonda] que conheço tão bem. A cor das águas, a maneira como escorregam ao longo das margens, as espadanas verdes, as plataformas de limos onde encontram chão as rãs, onde as libélulas (também chamadas “tira-olhos”) pousam a extremidade das pequenas garras — este rio é qualquer coisa que também me corre no sangue, a que estou preso desde sempre e para sempre (…). E, contudo, estas águas já não são as minhas águas», não, não eram já, comecei a afastar-me da Azinhaga quando casei com a Ilda, chamei a Lisboa, aventureiramente, «Josephville», a cidade do José, sentia-me fora das suas muralhas, Lisboa pertencia aos poderosos do Estado Novo, eu, uma roda dentada no interior do seu mecanismo, ajudava-o a funcionar mas recusei-me a participar, ousei desejar conquistar Lisboa, deixei para trás o curso de serralharia, o trabalho de mecânico nas oficinas do Hospital de S. José, fiz-me empregado de escritório, patente baixa, passava o dia a avaliar prémios para companhias de seguros numa calculadora mecânica, comecei a escrever, frequentava a única biblioteca de Lisboa aberta à noite, a do Palácio Galveias, varria todos os livros das estantes, ensaios e romances, ia escrevendo enquanto lia, ansiava marcar o ponto às 18 horas e sair para comer uma bucha e ir para a biblioteca, se o parco ordenado não dava para conquistar as benesses da cidade, conquistá-las-ia através da literatura, escrevi A Viúva, concentrei no romance todo o meu saber de filho de camponeses da Golegã, misturei o que lera em Camilo, enviei a um editor, que publicou com o título alterado, Terra do Pecado, para atrair leitores, foi um fiasco, tinha vinte e cinco anos e sentia pela primeira vez o fel da derrota, proporcional ao triunfo que sentira quando recebera o primeiro exemplar, caí do júbilo ao fracasso em quinze dias, percorria com avidez as livrarias da Baixa, exemplares amontoavam-se nos escaparates, os leitores não os compravam, mas não desisti, uma possante raiva tomou conta do meu sangue, dos meus músculos, comecei um segundo, um terceiro, contos, peças de teatro, percebi que demoraria longos anos a conquistar Lisboa, a torná-la uma Josephville, mas tinha encontrado o caminho certo, o único, a escrita, tinha descoberto o aríete com que derrubaria os portões e as muralhas da cidade, vazei a minha experiência dos prédios pobres em que habitara e descrevi um deles, os andares iluminados por um olho interior ao edifício, uma Claraboia, novo desastre, a editora nem me contactou, lá ficou até que, conquistada Lisboa, agora, sim, podia chamá-la «Josephville», fui lá chamado, estavam interessados em publicá-lo, mas eu não estava, posso ser vencido mas não desonrado, sairá a público após a minha morte, a Pilar e o Zeferino velarão para que saia, não sei porque escrevi esta frase: «algumas pessoas levam a vida à procura da infância que perderam. Creio que sou uma delas», já depois de publicadas As Pequenas Memórias, uns anos antes, não foi um cliché, foi sentido, a verdade é que a minha infância na cidade foi tranquila, uma mãe doméstica, recatada, passando do estatuto de camponesa para o de burguesa de classe baixa, um pai autoritário, marialva, habitávamos prédios da pequena burguesia dos escalões inferiores do funcionalismo público, a paz reinava em volta, melhor, a pacatez orquestrada pelo Estado Novo que emergia, não faltava pão sobre a mesa, embora dormisse no quarto dos pais, sentia de noite as baratas a atravessarem o meu corpo, subiam e desciam quase em carreiro, como as formigas, todos os anos acompanhava a mãe na primavera à loja de penhores, deixava lá os cobertores do inverno, via-a partir para os prédios dos ricos a lavar as escadas, porém, com exceção da morte do meu irmão Francisco, a família não sofreu calamidades, doenças graves ou miséria, eu vivia, como as crianças pobres dos bairros em torno da Rua Morais Soares, nem mais nem menos, o que se poderia chamar de normalidade pequeno-burguesa na moral, nos costumes, e sempre tinha os meus momentos de felicidade, o verão passado com os avós, os tios e tias e os primos em Azinhaga, o Almonda, «o rio da minha aldeia», os animais da lezíria, a atração pelos cavalos, o medo dos cães, a afeição aos porcos, a aventura pelas margens de salgueiros, a subida aos freixos altos, a pesca, o horizonte da campina, as rotinas simples mas alegres, e, sobretudo, uma espécie de liberdade infantil, experimentar novidades, andar livre e descalço, coisas estranhas vedadas à criança citadina, tenho saudades destes tempos em que a minha mente cruzava a pacatez urbana com a aventura quase exótica, ou insólita, das férias na Azinhaga, ah, avós Josefa e Jerónimo, tantas as saudades da vossa integridade, da humildade e simplicidade do vosso viver, a cidade corrompe e mais corrompe a vida adulta, o interesse, a competição, o dinheiro, não por acaso designado por vil metal, a necessidade de sobressair, quebrar o anonimato em que vivia como operário das oficinas do Hospital de S. José, era preciso forçar a vontade para não resignar, trabalhava nas cocheiras que outrora acolhiam as carruagens da elite que visitava o colégio dos jesuítas, o Colégio de Santo Antão, as cocheiras de duques e cardeais, berlinda puxada por seis cavalos ajaezados a veludo trançado a ouro e prata, palafreneiro de maça de prata, lia na biblioteca, à noite, que ali, onde eu arranjava radiadores e bombas de água, a filosofia escolástica condenara à estagnação o pensamento português nascido com os Descobrimentos, reanimado na Aula da Esfera sob impulso estrangeiro, fazia-me impressão lá entrar para arranjar os carros e as ambulâncias de serviço, parecia que espectros do mal e do bem ali vagueavam inquietos, atormentando-se mutuamente e a mim, procurei livros sobre os jesuítas na biblioteca das Galveias, fiquei confuso, uns elogiavam, outros denegriam, um autor havia, Borges Grainha, que confessava orgulhar-se do seu futuro epitáfio: «O maior inimigo dos jesuítas», consideravam os republicanos a Ordem de Jesus o mais pérfido e malévolo instrumento do atraso civilizacional português e, por extensão, da estagnação da totalidade do Império, eu pressentia por ali, entre motores e escapes, o meu padre António Vieira a arder de febre da fé, cujo Sermão de Santo António aos Peixes acabara de descobrir e me maravilhara, um português tão belo e, simultaneamente, tão acusador da flatulência das elites económicas e políticas de Portugal, o que eu via e vivia dava-lhe razão, a minha vida dava-lhe razão, eu era hoje para o Estado o que o tupi fora para padre Vieira no século XVII, operário esmagado pelo trabalho, auferindo o que me permitia sobreviver mas não expandir social e culturalmente, eu era um tupi em tudo, comido pelos polvos e tubarões, menos nas ameaças de morte dos reinóis, a leitura à noite libertava-me, não a imaginação, mas o entendimento, tinha dezanove anos e começava a perceber o que era ser explorado e o que era ser explorador, não, não, estava longe de me tornar comunista, sequer de me envolver em rebeliões, parecia-me que o mundo sempre estivera torto, sofrendo de aleijões, lia Garrett e a assustadora pergunta, quantos pobres devem existir para se fazer um rico, Antero e a necessidade de um Bem ético, não religioso, pus-me a ler teorias do progresso, que depois registei n’ A Terra do Pecado, sim, havia progresso material, mas não moral, uma película finíssima, tecida pela cultura, separava o homem do animal, os animais matam-se e comem-se uns aos outros, mas nenhum animal é cruel, nenhum animal tortura outro animal, o mesmo homem ternurento para o filho bebé humilha quando não massacra os inferiores, os servos, os lacaios, os serviçais, os plebeus, sentia-me impotente, nada podia mudar, os livros e a biblioteca atraíam-me, sabe-se lá porquê, porventura compensavam a minha solidão, as amizades que não tinha, a melancolia que me roía os neurónios, instruía-me como a um antigo anarquista e esperantista, lendo, lendo, lendo até me ficar este vício da leitura e da inquirição pegado à alma, digo, à mente, quantas mais perguntas fazia menos respostas encontrava, e uma, principal, antepunha-se a todas as outras — porque, nascendo os homens iguais, são as sociedades tão desiguais, sim, a pergunta inicial do Contrato Social de Rousseau a que, um século mais tarde, Proudhon responderia acusando a propriedade: a propriedade é um roubo, a resposta não me convenceu, tão grudado estava à ideia de que cada homem devia possuir os instrumentos da sua prosperidade, tratava-se, pensava eu, de uma questão de justiça, de distribuição, homem bom seria aquele que providenciasse aos restantes o acesso à propriedade, se todos tivessem um mínimo ninguém deveria preocupar-se com os que tinham muito, só muito depois, nos meus trintas, como colaborador da Seara Nova, é que percebi, raio fulminante que me atravessou o cérebro rachando-o ao meio entre uma mente juvenil, digamos assim, não católica mas obediente à sua moralzinha, não estado-novista mas também não preocupado em não sê-lo, não aprendiz de serralheiro mecânico ansiando por subir na carreira, não cidadão resignado buscando no cinema e na leitura compensações fáceis para as frustrações próprias, e um homem-cidadão maturo, adulto, consciente e, porque consciente, pessimista e lúcido, ou lucidamente pessimista, a intuir que só pela coragem e diligência dos homens bons, caldeadas no sangue e suor das massas pobres industriosas, a justiça e a igualdade reinariam no futuro, no presente, com a PVDE e a PIDE, a Legião Portuguesa, o Limoeiro, a censura, o campo de concentração do Tarrafal, enfim, sob uma repressão violenta e avassaladora, seria impossível, mas cada esforço e diligência, uma gota que fosse, significava um milímetro de avanço na construção de uma sociedade mais igualitária, pelo menos não tão desigual, só mais tarde cheguei à ideia comunista, exigindo uma sociedade absolutamente igualitária, que vazei nos editoriais do Diário de Notícias, sinto a Pilar a debruçar-se sobre mim, suspendi o pensamento, ela preocupa-se com o definhamento do meu corpo, a morfina tira-me as dores mas apressa-me a morte, passa-me a mão pelo peito, liso, sem volume, a barriga uma arca vazia, deixei ordenada a cremação, o corpo, o espírito concentrado nas palavras que escrevi, um amigo, enfim, um dos que se aproximam das pessoas conhecidas, tentando gozar de igual efémera fama, aconselhou-me, há um mês ou dois, que os meus amigos deviam providenciar um «movimento», foi assim que ele disse, para instalarem o meu corpo no Panteão Nacional, joguei a mão ao ar, enfastiado, não era dado a honrarias nem ante- nem post-mortem, o panteão sabe-me a velharias patrioteiras, românticas, republicanas, positivistas, que nada têm que ver comigo, queriam transformar-me numa múmia, para lhe tirar a ideia da cabeça informei-o de que já dera ordem para a cremação do corpo, ele pareceu alegrar-se e disse que para isso existem os cenotáfios, sepulcros vazios, mandei-o calar-se, recordo que instantaneamente pensei como desejo a terra rasa, talvez um lugar especial, mas terra natural, tão natural como o corpo e a morte de todos os homens, não quero enfiar-me no parnaso artificial do orgulho patriótico das elites, aquelas que, pela ignorância e pelo desprezo, levaram Camilo e Manuel Laranjeira ao suicídio, puseram a pistola na mão de Antero e de Mouzinho da Silveira e condenaram à morte Soares dos Reis, e, uma geração depois — tem sido sempre assim —, os filhos dos que os desprezaram, os eternos Cavacos que, sem originalidade, governam o país desde o século XVII, incensam loas e inscrevem os nomes dos suicidados no memorial das glórias do reino, não, não quero participar nessa mascarada, quero que as minhas cinzas se misturem com a terra, este dito meu amigo pôr-se-á em bicos de pés no meu funeral, chorará lágrimas de crocodilo até que a televisão o entreviste e ele ganhe os minutos de fama americanos, disse-lhe, não acredito que deixem entrar um comunista no Panteão, ele, um ex do PCP, admirou-se, perguntou-me, ainda és comunista, saiu-me a resposta de rompante, sou um comunista do século XXI, a História e a sua interpretação é que mudaram, eu permaneço com os mesmo sonhos políticos, a Pilar sai e regressa, traz uma sopa num tabuleiro, mais um puré que uma sopa, custa-me abrir a boca, peço-lhe com os olhos que esqueça, não vale a pena, já não vale a pena, avisa-me que o médico está para chegar, repito, a custo e vagaroso, mais soletrado que falado, não vale a pena, prefiro deixar-me ir lentamente, seguro-lhe a mão, nela deponho todo o meu amor, toda a gratidão por ter sido a melhor companheira dos meus últimos anos de vida, ela insiste com a sopa, força-me a descerrar os lábios, faço-lhe a vontade, diz-me que me dará força, desliza-me o creme na boca, engulo-o como um castigo, ela percebe, não insiste, recordo a colherada de óleo de fígado de bacalhau que a mãe me dava quando me via frágil, de tez amarelada, e me custava a levantar-me da cama, sabe mal mas faz bem, dizia ela, de sorriso artificial espetado na boca, a pele das faces cor de azeitona de quem descende de avô mouro, os dentes brancos esfregados com casca de salgueiro do Ribatejo, não era bela a minha mãe, mas feia também não, era o que os homens designam por engraçada, simpática, recordo os meus passeios à Baixa ao sábado à tarde quando pequenino, talvez quatro, cinco anos, já ia a seu lado, a pé, desenvolto, olhar de águia real, ansioso de novidades, elétricos a descerem da Praça do Chile para a Rua da Palma, o cheiro fétido no interior agoniava-me, espantava-me com a relíquia de um ou outro fiacre de aluguer puxado a cavalo, recordo o cheiro ácido do alcatrão a ser depositado sobre as pedras pretas oitocentistas, as famílias às varandas da Almirante Reis, saias de folhos até aos pés, nas mais velhas ainda sobressaía a anquinha, as senhoras a beberem chá, os homens cerveja, as crianças capilé, a música a gorjear das janelas ovais do salão de uma sociedade recreativa ali nos Anjos cujo nome não me vem à memória, as beatas de pretíssimo vestidas no pórtico da igreja do bairro, em frente ao casarão da «sopa dos pobres», filas de farroupilhas a meio da tarde aguardando o serviço do jantar, resquício do sidonismo, que eu, mais tarde, adolescente envergonhado, enfileirei, o cheiro intenso a marisco sempre que passávamos por uma cervejaria, fazendo-me crescer água na boca, a minha mãe a dar-me um carolo, cavalheiros do século XIX trajados de casaca, abas de grilo, dizia, poucos automóveis, muitas carroças de carrego puxadas a muares, apanhadores de papel, que, ao fim do dia, venderiam para cearem, para jantar não daria, ardinas com revistas e jornais estendidos no chão, um realejo manobrado por um macaco a meio da Almirante Reis, a minha tia, criada dos senhores Formigais, gostava muito da música do realejo, dizia, não o esqueci, se tiver um filho quero que ele adormeça todos os dias a escutar este som, dizia assim mesmo, este som, não esta música, barraca de robertos à entrada do Martim Moniz, adorava o boneco armado de um porrete que, urrando, não parava de bater no diabrete, recordo o portal da capela da Senhora da Saúde, viúvas baixas, gordas, carrapito alto na cabeça, trajadas de preto, sapatas pretas, saia preta larga, blusa preta, bata preta, lenço preto amarrado sob o queixo prognata de neandertal, peludo, crucifixo de ouro ao pescoço, terço de prata forjada enrolado na mão, assim as desenho hoje inspirado em imagens da mulher do povo da minha infância, no caminho para a Baixa a mãe comprava-me um pirolito, que me deliciava, eu juntara uma pequeníssima quantia durante a semana, rogando um tostão ao pai, aos Barata, e, no regresso, triunfante, comprava à senhora Aninhas, sentada num banco de pinho, a cesta aberta dos doces, dois suspirinhos, por vezes uma bolinha de Berlim, que vinha até casa lambendo e mastigando, a mãe, de vestido claro, rendado e franzido, cansada do passeio, mas alegre, olhos negros brilhantes, cabelo vincado pela aba do chapéu florido, não me beijava, mas sorria-me, por vezes afagava-me melancolicamente uma face com a mão calosa da lavagem das escadas, foi num destes passeios que ouvi a minha tia, pela primeira vez, falar do pai natal, uma moda americana, diziam os Formigais, eu só conhecia o menino jesus a descer pela chaminé e a depositar no sapato, na bota, na meia, as prendas para os meninos bonzinhos, comentou a mãe, já nos basta um pai todo o ano, eu, precoce racionalista, não acreditava no menino jesus a descer a chaminé, uma coisa estúpida, túnica farruscada, quando poderia entrar pela janela ou bater à porta, o meu pai e outro pai Barata faziam barulho no corredor e fingiam espantar-se com a chegada do jesus menino, eu, do quarto, deitado, não acreditava, achava aquilo tudo, não direi um disparate, mas uma coisa sem coerência, um deus a sujar-se numa chaminé, sempre fui um incréu, um anticlericalista precoce, recordo que os Formigais me levavam à missa e, sempre que os fiéis baixavam a cabeça, eu levantava-a para espiolhar o que se passava no altar, nada me comovia na igreja, nem os paramentos medievais dos padres, só me agitava a curiosidade da análise, como se entrasse na nave eclesial vestido de pequeno Sherlock Holmes, sentia-me mal na casa dos Formigais ricos, os móveis escuros, porventura mogno, graves, provectos, cumulados de arrebiques, os pingentes de cristal dos candeeiros, os tapetes persas encomendados de Marrocos, a cama de semidossel que a minha tia, orgulhosa, me mostrava como se fosse sua, as colchas trançadas a fio de ouro, a senhora Formigal roliça, vestidos pesados e escuros a rasar os calcanhares, o pescoço de gola branca rendada, os punhos de folhos, casacos de pele vistosa, raposa pura, diziam-me, luvas de pelica, um anel de pérolas na mão esquerda, na direita de diamantes incrustados sobre um aro de prata de lei, um crucifixo de casquinha e ouro pendido no peito, um rosto de lagarto o senhor Formigal, feiçudo e comprido, sinto-me hoje, desfalecido, como me senti há três anos, numa noite de dezembro, às quatro horas da madrugada, «morri», como escrevi mais tarde, para «ressuscitar» nove horas depois, aqui em Lanzarote, «um colapso orgânico total, uma paragem das funções do corpo levaram-me ao último limiar de vida, lá onde já é tarde demais para despedidas. Não recordo nada. Pilar estava ali, estava também Maria, minha cunhada, uma e outra diante de um corpo inerte, abandonado de todas as forças, donde o espírito parecia ter-se ausentado, que mais tinha de irremediável cadáver que de ser vivente», foram elas que me contaram o que foram aquelas horas, «Ana, a minha neta, chegou na tarde do mesmo dia, Violante no seguinte. O pai e o avô ainda era como a pálida chama de uma vela que ameaçasse extinguir-se ao sopro da sua própria respiração. Soube depois que o meu corpo seria exposto na biblioteca, rodeado de livros e, digamos assim, de outras flores», novo ataque no ano passado, do mal que em mim se alojou, espalhado por várias doenças, fui internado mas saí são e salvo, aguardando o próximo assalto, o fim aproxima-se, cumpri o que deveras devia ter cumprido, tenho a consciência limpa, mais não podia ter feito, conquistei a cidade, a minha «Josephville», se deus existisse devia agradecer-lhe ter-me permitido que fosse além do que poderia ter sido, mas, como ele é uma mera ideia na mente dos homens, agradeço a mim próprio, à minha constância, à minha força de vontade, à minha disciplina de escrita, que me animavam a seguir em frente quando as muralhas da cidade se estreitavam, por vezes me acusavam, como sucedeu naquele novembro, quando os próprios camaradas do Partido se afastaram de mim, chamavam-me esquerdista, radical, pequeno-burguês, vi-me desempregado, o Partido criava um jornal, o diário, e, sugerido o meu nome, recusaram a minha admissão, isolei-me aos cinquenta e três anos, sobrevivi a fazer traduções, parti para Lavre, para a cooperativa agrícola, tirei notas e notas, atentei nos camponeses a narrarem histórias populares à volta da fogueira, gestas de avós e de pais, narrações de avantesmas e avejões, vivos e mortos juntos como um cortejo de espectros da história, e escrevi Levantado do Chão, trinta e três anos depois do meu falhado primeiro romance, o meu renascimento como romancista, meu deus, parece impossível, perguntava no romance quem é deus, existe mesmo, será apenas uma ideia humana, porque vivemos desigualmente, porque não aprendemos com a história a não cometer os mesmo erros, e cometemo-los, que valor tem a palavra e a linguagem, serão as ideias um reflexo ou uma deformação da realidade, pode a arte mudar o mundo, quem sou eu senão um cruzamento da influência familiar e social, por que razão tem um homem prazer em humilhar outro ser humano, em explorá-lo, em matá-lo, o defeito não estará na educação, como afiançara Verney, ou na civilidade, na criação de uma ética laica, profana, como defenderam Herculano e Antero, e tornava-me pessimista, o homem era um animal coberto por uma película de educação, de civilização, vazei estas ideias céticas na Terra do Pecado, um alforge literário de pessimismo, a vida não me tratara bem e eu respondia-lhe justificando o meu mal-estar com o mal-estar da humanidade, a tendência para o mal, no mínimo para o infortúnio, pela exploração, pela afirmação e mando nasciam os senhores Formigais, a opulência sobre os pobres, limitando-lhes o acesso ao poder com leis castradoras e ordenados menos que suficientes, NÃO é a palavra mais perigosa do mundo, escreveu o padre Vieira, sim, continua a ser, é preciso uma montanha de força e de vontade para que um homem diga NÃO, não se deixe sucumbir à chantagem da sobrevivência, ao pão sobre a mesa, ao seguro contra a doença, ao prémio no emprego, à obediência servil aos chefes, e pense pela sua própria cabeça, não segundo os seus interesses, mas segundo um bem ético comum, que, no final da minha vida, concluí refluir na Carta dos Direitos Humanos, porventura acrescido de alguns artigos sobre direitos ambientais, é o esqueleto de ideais que pode unir todos os homens de boa vontade, todas as nações amantes da paz, todos os políticos de coração generoso, aqueles para quem o anjo do Senhor ou do Homem tocou as trombetas na noite de nascimento do Cristo, o NÃO é hoje um SIM ao mundo que eu sonhei quando aderi ao Partido, mundo a que chamei comunista, Bandarra, padre Vieira e Pessoa quinto império, Agostinho da Silva terceira idade do mundo, Natália Correia espírito santo e o meu sapateiro de Claraboia, libertário falhado, anarquismo — um mundo de igualdade, sem lei, sem rei, sem patrão, sem chefe, sem deus, um mundo de liberdade nascido da vontade boa de todos os homens, ideal que então me aproximou da União Soviética e de Cuba e hoje de todos os povos que lutam pela liberdade que, sendo de cada um, é sempre de todos, como dos povos da Palestina ou de Chiapas, continuo a vincular-me ao Partido, no qual reconheço a abnegação da luta pelos outros e o ideal de paz e igualdade que, segundo Cristo, deve guiar a humanidade, não encontro noutro partido esta necessidade de ideal que deve guiar os homens para os distinguir dos animais, se nele, no PCP, sobram os erros, são, porém, compensados por inúmeras virtudes, não desisto deste ideal, morrerei com ele e com orgulho de o ter, os senhores Formigais e um colega meu do liceu, do Gil Vicente, morador num palacete da Graça, mostraram-me o esplendor da riqueza, a exuberância do luxo e a hipocrisia das elites, indiferentes à sorte dos restantes, às vizinhas barracas da Curraleira, que eu, pequenino, mirava, absorto, intrigado, da janela da casa da Picheleira, uns cubos de pranchas de madeira e placas enferrujadas de metal, os buracos das janelas tapados com cartão canelado, veredas enlameadas, emporcalhadas, crianças nuas focinhando nos vazadouros do Alto do Pina, tragando cascas de maçã e banana, roendo ossos de costeletas de porco deitadas para o lixo, as barracas do Vale Escuro, antro de miséria, que eu, nunca acostumado, vislumbrava dos pobres andares que habitava entre a Morais Soares e a Penha de França, as mulheres alugadoras do corpo das ruas sujas da Mouraria e do Intendente que circundavam a Rua dos Cavaleiros, faziam a felicidade dos pobres, um orgasmo ali, encostado à parede, o guarda-noturno, de mão arrepiada com uma nota, a fingir que não via, não havia dinheiro para o quarto, recordo uma noite um homem descalço, as calças baixadas pelos joelhos, a acometer o centro do corpo de uma velha prostituta, dei por mim a pensar, há pouco tempo, que aquele ideal de pureza social que desejo para a humanidade nasceu nas minhas longas caminhadas solitárias na Azinhaga, quando, criança, vindo de Lisboa, chegava à aldeia, a primeira coisa que fazia era tirar os sapatos, na Azinhaga todos andavam descalços menos os feitores e os senhores das quintas, claro, esses nem a pé andavam, faziam-se transportar em charretes, o lacaio a orientar a parelha ou a correr a seu lado, a quem chamavam, medievalmente, palafreneiro, uma chusma montada de campinos a fazer de guarda, dava segurança às senhoras Formigais do Ribatejo, temidas dos ímpetos do touro bravo, o meu último ato, nas despedidas de Azinhaga, era calçar de novo os sapatos, como se por sinais dissesse que ia para outro mundo, um mundo muralhado e adverso, foi aquele mundo humilde, modesto mas respeitoso, onde todos eram iguais, o pouco mais que alguns tinham não os distinguia dos restantes, que eu fiz mais tarde reviver com o nome de comunismo, como se quisesse trazer para a cidade a atmosfera de santidade laica da Azinhaga, de partilha no arraial de sábado à noite, da festa da matança do porco, o amado porco de engorda sacrificado alegremente para alimento de todos, não havia morte mais útil, não me custava a solidão da lezíria, a lentidão das águas do Almonda e do Tejo, que passavam sem parecer que passavam, casavam-se com a minha melancolia, e, se sou pessimista como dizem que sou, isso vem deste sentimento de impotência e submissão que eu, criança, depois adolescente, constatava habitar aquelas gentes, uma igualdade gerada no sacrifício, na tormenta, no sofrimento, não nascida do NÃO afirmado como um SIM, foram centenas de anos de cadáveres às costas que retratei em Levantado do Chão nos Mau-Tempo que, na sua existência, nunca souberam o que seria Bom-Tempo, a miséria acumulada, as ordens impositivas de latifundiários e mentes bispais, de generais e regedores, ordens dos políticos da Golegã e de Santarém, os Mau-Tempo tinham já nascido dóceis e obedientes, tornara-os milenarmente iguais, faltava-lhes agora o NÃO libertador, que supus chegar com o 25 de Abril, mas não, continuaram submissos, embora de outra maneira, foram anestesiados, comprados, deram-lhes abastança, prosperidade, fizeram-lhes casas de banho, abriram-lhes luz e água canalizada, estradas muitas, armaram-lhes uma televisão em cada sala, mas não a liberdade de serem o que sempre desejaram, eles próprios, abertos generosamente aos outros, dividiram-nos pela cobiça, pelo mais e maior que nunca desejaram, tornaram-nos consumidores, hedonistas e mal-educados, para quem a tradição é coisa para esquecer, sinónimo de velharia, e a cultura coisa inútil que não serve para, como dizem na vizinha Almeirim, «comprar melões», o dinheiro corrompeu-os, o meus primos disputaram a posse da casa onde nasci como se de uma mansão se tratasse, sou de uma Azinhaga e de um povo que não existem já e eu, se era melancólico, mais me tornei, se era pessimista, mais fiquei, e hoje, meu último dia de vida, a Pilar atormentada, a minha família sofrida, a defunta e a viva, a melancolia espelha-se nas minhas faces como aquele horizonte ribatejano que, de tão sólido e extenso, tão milenar como as muralhas de uma cidade, tão vedado de redes e sebes de silvas, de canadas e valados, limita os braços do homem para que alguns deles saboreiem uma liberdade exclusiva, tanto falhanço sofri antes da minha primeira realização que bem depressa concluí ser a felicidade, como a religião, uma invenção para tornar a vida mais suportável