Prólogo

À beira

Moscovo

Residência oficial do presidente, Novo-Ogarevo, região de Moscovo, 23 de fevereiro de 2022

Pouco depois das 11 da manhã, Vladimir Putin entrou num dos três helicópteros Mi-8 da frota presidencial, no heliporto da sua residência oficial de Novo-Ogarevo, 30 quilómetros a noroeste do centro de Moscovo. Por razões de segurança, dois Mi-8 iguais, de conceção soviética, descolaram com ele, formaram e aceleraram para leste, em direção ao Kremlin.

O pessoal de bordo, tal como todos os outros funcionários de Novo-Ogarevo, tinham vivido em isolamento estrito devido à covid-19, antes de ficar na proximidade física do Pervoe Litso russo — literalmente, a «Primeira Pessoa», que é como o presi- dente é referido no interior da organização. Durante quase dois anos, desde o início da pandemia, exigira-se a todos os visitantes de Novo-Ogarevo e das residências presidenciais perto do Lago Valdai e de Sótchi, onde Putin passara a maior parte do confina- mento, que ficassem uma semana de quarentena e que fizessem testes diários, em blocos de hotéis especialmente transformados para esse fim, nos terrenos de cada residência. Sempre intensamente reservado, o contacto pessoal de Putin limitara-se durante anos a um pequeno grupo de não mais de três dúzias de privilegiados. Durante a covid-19, essa bolha encolhera-se ainda mais.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Quinze minutos depois de levantar voo, o helicóptero de Putin aterrou no heliporto da Torre Beklemishevskaya, no canto sudeste do Kremlin. Entrou então na sua limusina ZiL para o breve per- curso até ao Grande Palácio do Kremlin de Moscovo. Durante a pandemia, Putin mal visitara Moscovo, e foi ainda menos visto em público. Contudo, esta era a sua terceira visita ao centro de Moscovo em três dias.

A primeira, ao início da tarde de 21 de fevereiro, fora para uma sessão extraordinária — em mais de um sentido — do Conselho de Segurança da Rússia. O espaço era o altivo Salão da Ordem de Santa Catarina, no Grande Palácio do Kremlin, um vasto espaço com colunatas, usado habitualmente para receções oficiais, e não a costumeira sala muitíssimo menor do Palácio do Senado, onde o Conselho habitualmente se reúne. Não houve tempo para os 12 membros permanentes do Conselho ficarem de quarentena durante uma semana, como era obrigatório. O espaço imenso permitia que Putin, sentado sozinho atrás de uma enorme secretária, mantivesse seis metros de distância social dos homens (e de uma mulher) com cargos mais elevados da Rússia — ainda que não sejam necessariamente os mais poderosos. A escolha do local era também altamente simbólica para um acontecimento encenado para a televisão, que pretendia assinalar uma nova fase da afirmação russa.

A razão ostensiva para a reunião do Conselho de Segurança era a discussão de planos submetidos na Duma e na sua Câmara Alta, o Conselho da Federação, para reconhecer os estados de duas repúblicas secessionistas da região ucraniana do Dombás. Segundo uma fonte próxima do porta-voz de Putin, Dmitry Peskov, dissera-se a todos os participantes da reunião do Conselho de Segurança que os trabalhos seriam transmitidos em direto na televisão. Isso não era verdade. Os relógios dos participantes provavam que foram de facto transmitidos cerca de cinco horas depois. Peskov disse à mesma fonte que só quatro pessoas na sala, além do próprio Putin, tinham conhecimento do completo alcance dos planos militares de Putin para lançar uma invasão de larga escala da Ucrânia, cerca de 72 horas depois. Uma delas era o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, outra era Nikolai Patrushev, presidente do Conselho de Segurança e colega de Putin dos tempos do KGB, desde 1975, e a terceira era Aleksandr Bortnikov, diretor do SFS, que era um velho colega de Putin dos tempos da Universidade de São Petersburgo, e a quarta era outro colega do KGB, Sergei Naryshkin, diretor dos serviços de segurança exteriores.

Um por um, os membros do Conselho de Segurança ergueram-se para concordar com a proposta da Duma para reconhecer as Repúblicas Populares de Donetsque e de Luansque — coletivamente conhecidas como LDNR — como nações independentes. Naryshkin, diretor dos Serviços Secretos Externos, atrapalhou-se no desempenho do seu papel e foi publicamente humilhado por Putin.

No dia seguinte, 22 de fevereiro, a Duma formalizou o reconhecimento. Putin viajou de novo para o Kremlin para uma rara conferência de imprensa com um grupo de jornalistas, escolhidos a dedo, dos serviços de imprensa do Kremlin. Segundo uma das pessoas presentes na sala, Putin parecia «pálido e com olhos incha- dos, mas cheio de energia [...], excecionalmente enfático e agressivo». Quando Andrei Kolesnikov, o veterano correspondente do Kremlin para o diário Kommersant, lhe perguntou se pensava que «há alguma coisa neste mundo moderno que se consiga resolver pela força», Putin reagiu rispidamente. «Por que razão pensa que o bem nunca deve ser apoiado pela força?» Negou também que as forças russas seriam «imediatamente destacadas» para o Dombás.

Putin mentia. As forças russas já tinham sido mobilizadas. As primeiras unidades — os veículos do grupo do exército baseado na Divisão Militar Meridional, assinalados com o «Z» característico, para os distinguir de carros de combate ucranianos idênticos — atravessaram a fronteira (que, na prática, não existe) entre a Rússia e as LDNR horas depois da conferência de imprensa. A meio da manhã de 23 de fevereiro, as forças russas já se tinham estabelecido ao longo da linha de controlo que os combatentes rebeldes tinham determinado com as forças de Quíive, em 2015, depois de dois verões de combates brutais, que fizeram 14 mil mortos.

O dia 23 de fevereiro — Dia dos Defensores da Pátria — é um feriado importante dos tempos soviéticos. É um dia em que se bebe com os amigos, dando-lhes os parabéns por serem homens (é o homólogo do Dia das Mulheres, a 8 de março), e na televisão vê-se filmes de guerra patrióticos. Mais formalmente, é um dia para celebrar as forças armadas russas, do passado e do presente. O Dia da Vitória — que se celebra em 9 de maio e que tradicionalmente é assinalado com uma imensa parada das forças armadas na Praça Vermelha — é uma celebração mais triunfal da derrota da Alemanha nazi às mãos da URSS na Grande Guerra Patriótica. Mas ao longo da última década do regime de Putin, tanto o 23 de fevereiro como o 9 de maio tornaram-se partes cruciais de um culto alimentado pelo Kremlin que chamou a si a memória da Segunda Guerra Mundial para prestar serviço à glória e legitimidade do atual regime. O ponto alto das duas celebrações é a deposição presidencial de uma coroa de flores na Chama Eterna que arde em frente ao Kremlin.

Livro: "Passar das Marcas"

Autor: Owen Matthews

Editora: Edições 70

Data de lançamento: 8 de junho

Preço: € 25,90

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A comitiva de Putin emergiu do portão da Torre Spassky do Kremlin, atravessou a Praça Vermelha e dirigiu-se para os elabora- dos portões de ferro forjado do Jardim de Alexandre. Putin passou a pé por uma guarda de honra — que mantinha a distância — e depositou uma coroa de flores na Chama Eterna. Desde o mesmo dia, em 2021, esta foi a primeira ocasião em que há registo de Putin a caminhar numa rua de Moscovo.

Uma mensagem previamente gravada de Putin a celebrar o feriado dos Defensores da Pátria foi transmitida por todo o país. «Respeitados camaradas!», começou Putin, num regresso deliberado à maneira de falar da era comunista. Só fez uma referência oblíqua à ocupação da Rússia das LDNR que ocorrera naquela manhã. «O nosso país está sempre aberto a um diálogo honesto e direto [...]; mas repito: os interesses da Rússia e a segurança do nosso povo não são, para nós, negociáveis.»

De regresso a Novo-Ogarevo, às cinco da tarde, Putin recebeu um telefonema já agendado do presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan. Segundo o registo oficial da conversa, Putin «expressou desapontamento por os EUA e a NATO terem ignorado as preocupações e exigências legais e razoáveis da Rússia».5 Apesar de Putin e Erdoğan se conhecerem há mais de duas décadas e se dizerem «amigos», na conversa não se mencionou qualquer iminente invasão de larga escala da Ucrânia. Segundo uma fonte superior do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Turquia, que trabalha com Erdoğan desde 2003, «não houve qualquer indicação nem aviso algum do que Putin estava a planear».

A dado ponto, no final da tarde de 23 de fevereiro, Putin sentou-se no estúdio de televisão de Novo-Ogarevo para gravar outra mensagem ao povo, a segunda dos últimos dois dias. Anunciava que dera ordens para começar uma «operação militar especial limitada» contra a Ucrânia. Foi emitida às seis da manhã do dia seguinte. Ao longo de toda a fronteira de dois mil quilómetros que separa a Rússia da Bielorrússia e da Ucrânia, avançou para a guerra uma força de pelo menos 71 batalhões de grupos de combate, totalizando qualquer coisa como 160 ou 190 mil homens — a maior movimentação de tropas russas em solo europeu desde 1945.