A ira do corpo se torna mais violenta em noite de lua cheia.

Ela já não conseguia se recordar das coisas que tinha para fazer no dia a dia. Também não soube dizer a si mesma como e quando havia se deitado exausta na esteira de palha e nem em que momento desfez – num acesso de fúria – a grossa trança que domava seu cabelo crespo e negro refletindo o brilho da luz de um candeeiro. Depois ela imaginou que os fios do seu cabelo se tornavam raízes encontrando o chão do quarto e talvez tudo isso tenha se passado antes de uma dor violenta lhe atravessar o quadril. Ou foi antes de sua visão ficar turva. Ou um pouco antes de o suor escorrer de seu rosto e de suas costas como uma fonte de água morna. Foi ao mesmo tempo que sentiu uma incômoda vontade de urinar.

Enquanto estava deitada, deixou a mão repousada sobre o ventre de seu pequeno corpo. Ali, sabia, estava a causa de sua aflição, a vida se contorcendo com violência, e era como se ela própria fosse arrebentar com a força que se digladiava para deixá-la. Poderia ficar quieta e permitir que seu corpo seguisse o próprio fluxo como o rio, porque tinha visto as mulheres fazerem o mesmo à sua volta. Poderia pedir ajuda e mandar alguém chamar a parteira da Tapera do Paraguaçu, aquela mulher que cheirava a aguardente e tinha as unhas grandes e sujas. Mas preferiu seguir em silêncio. E por fim não houve escolha e sua tormenta a consumia e rasgava o ventre e a pélvis e estava cada vez mais intensa.

Era uma noite úmida, de poucos sons, alguns zumbidos de insetos, sem sequer assobio do vento avançando sobre as palmeiras da margem esquerda do rio.

Sua gente dormia ao seu lado e vez ou outra movimentavam os pés, se viravam para o lado, agitavam as mãos para afastar os mosquitos que zuniam inquietos. Que fosse breve, se concentrasse no que tinha a fazer, porque estariam despertas quando o dia começasse. Recordou da luta de sua gente quando as crianças exigiam comida e energia para apaziguar as brigas, para os banhos, para cuidar das feridas, para colocar o alimento nos velhos pratos de esmalte, e parecia nunca ser suficiente, tamanha era a fome.

Nos últimos meses a chuva finalmente chegara, mas os homens desencantados deixaram as minguadas roças ao deus-dará, seguiram nos saveiros para vender o que havia sobrado da última colheita. Pequenos carregamentos de farinha de mandioca, coco, azeite de dendê. Prometeram trazer dinheiro. Voltaram depois de semanas sem nada ou, quando muito, garrafas de cachaça. As mulheres da Tapera observavam a maré, e a maré avançava e recuava sobre o rio enquanto elas viviam à espera de seus homens. Aproveitavam as águas baixas para irem com lata e colher em busca de mariscos. Sabiam que eles não voltariam no tempo prometido. As crianças chorariam por comida, sem se preocupar se os pais tinham ou não voltado, e sobrariam as mães cada vez mais velhas para dar conta das obrigações.

As mulheres arrumavam um jeito próprio de seguir a vida; uma das certezas era que pediriam aos monges permissão para colher o caju nos terrenos da Igreja. Eles cediam, desde que elas levassem os melhores frutos para a cozinha do mosteiro. Feito isso, poderiam comer o resto. Elas vendiam as sobras da colheita para os viajantes, cheias de dignidade, em pequenos tabuleiros erguidos nas portas das casas voltadas para a estrada. Depois, no fim do ano, os maturis que nasciam nos galhos mais baixos para matar a fome, além dos frutos que sobreviveram à primeira colheita e cresceram nos galhos altos.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Durante a manhã ela observou de longe o povo da Tapera seguir com seus cestos para colher o que encontrasse no caminho. Não se juntou para não verem sua barriga e, ainda que fosse uma barriga pequena e comprimida e envergonhada, não era possível enganar as mães da Tapera. Elas conheciam a pele e o brilho e o cabelo das que carregavam uma criança no ventre. Elas sabiam pelas unhas e pelo hálito doce e pela largura das ancas. Sabiam se a criança seria graúda ou miúda e em que tempo chegaria. E, se tivesse andado entre elas nos últimos meses, saberia que naquela noite de lua cheia era a boa hora.

E se levantou equilibrando o corpo, acocorada no chão, a camisola empapada de suor e colada às costas e por baixo dos seios. A dor cresceu, e cresceu também a raiva que já não sabia de onde vinha, e com certeza ela havia arrancado boas mechas do cabelo enquanto desfazia a trança. Deixou a cabeleira livre feito a copa de uma árvore. Seus pés deslizaram no chão de terra batida procurando o caminho para fora de casa. Quando se aproximou da cortina que separava o cômodo da sala, ela ergueu a cabeça. Mas nem isso foi capaz de lhe deter e era possível que na manhã seguinte a sua imagem se revelasse como um sonho na noite que avançava, como todas as outras sobre todos os seus, sem sobressaltos.

Então ela deslizou não só pelo chão da casa mas também pela noite que reinava sobre o céu: a lua, um farol adentrando as frestas da janela como um convite para que o animal noturno deixasse a toca. Retirou a barra de madeira que cerrava a porta, não sem antes morder os lábios, um gesto oportuno para impedir que se ouvisse o ruído das dobradiças.

Sentiu um bafo, era a brisa morna a levando para fora da casa.

Não tinha pensado sobre sua hora nem mesmo sobre o que faria, e o corpo despertou por um momento da apatia dos últimos dias. Seguiu os próprios instintos. Não queria aquela criança; não podia levar outra boca para uma casa sem recursos. Só não bebeu os chás porque não os conhecia. Nem fez os encantos das mais velhas e os segredos guardados nos lugares mais insondáveis do espírito das suas mulheres. Havia muito que essa vida passada era rejeitada por sua gente, que aos poucos se tornou outra, pois passou a acreditar nas palavras de forasteiros. Mas nada pôde deter o animal que crescia dentro de outro animal e ela não sabia se era por falta de conhecimento, se pelo eco das pregações do mosteiro que sepultaram a Tapera sob a permanente ameaça de castigo dos Céus ou pelos desígnios do Espírito de Deus. Enquanto caminhava, sentiu que outros animais deixavam o caminho e subiam nas árvores e se agitavam nas matas e se escondiam nas tocas e entravam no rio, antes que ela pudesse alcançá-los.

Um depois do outro, seus pés tocaram a água e seu corpo se desviou como um galho seco no sentido da correnteza. E a dor, a dor não estava apenas no seu ventre, a dor a possuía por inteiro. Se permitiu gemer enquanto os peixes tocavam sua pele com seus corpos, e para não seguir em direção à baía junto à correnteza, fincou os pés na areia do leito na altura em que sua barriga ficava submersa. O movimento das águas trouxe algum alívio que logo se desfez. Mas não havia entrado no rio em busca de conforto. Ela queria se agitar no fluxo que a atravessava e passar por tudo o que precisava para se sentir viva. Foi assim que afastou as pernas e a maré e o rio a invadiram e estavam próximos de afogá-la: as águas inundaram seu corpo e seu coração.

Quando a criança enfim nascesse, a entregaria às águas. Que o rio cuidasse de sua cria. Que a correnteza a levasse para bem longe.

A vingança tupinambá

1

Sempre que eu contrariava Luzia desobedecendo a suas ordens, contestando quase tudo com respostas agressivas, ela me dizia que eu era tão ruim que minha vinda ao mundo pôs um fim à vida da mãe. «Deu fim à nossa mãe» era a sentença cruel, lançada para me atingir e evocar as complicações que se seguiram ao meu nascimento. Minha mãe se acamou deprimida. «Nossa mãe se foi de melancolia», era o que se contava em casa. Nunca soube ao certo o que Luzia sentia por mim, graças ao que nos aconteceu. Por ter sido a responsável por minha criação ainda muito jovem, dizia que ninguém quis se casar com ela por causa dessa obrigação. Nenhum homem iria aguentar minhas malcriações. Sua mágoa era duradoura. Caí feito um fardo sobre suas costas, depois da morte da mãe e da partida dos nossos irmãos. Eu era mais uma atribulação para Luzia, além de todas as outras: cuidar da casa, do pai, da roupa da igreja, e ter que se esquivar dos humores do povo da Tapera.

Diferente da mãe e das mulheres da aldeia, Luzia, a irmã mais velha, parecia não ter se interessado pela arte do barro, nem mesmo pelo roçado. Dizia que lavoura era trabalho para homem. Repetia, ao ver a ruma de mulheres caminhando para o mangue à beira do Paraguaçu, que não fora feita para ficar sob o sol catando mariscos e que, se pudesse, moraria na cidade grande. Desde cedo passei a seguir seus passos. Às terças e sextas Luzia andava até o mosteiro, recolhia cortinas, toalhas e estolas e formava uma imensa trouxa. Equilibrava tudo sobre a cabeça com uma rodilha feita de peça menor, podia ser uma fronha de travesseiro ou uma toalha pequena. Cada entrada no mosteiro era precedida de reprimendas a mim: «Você não pode tocar em nada», «Não fale alto, nem corra pelo pátio», «Peça a bênção aos padres quando se dirigirem a você. Seja agradecido se lhe ofertarem algo». E, claro, só poderia receber qualquer coisa se tivesse seu consentimento. Eu não fazia mais gestos de assentimento às suas recomendações. Planejava como contrariar as regras, em especial aquela que dizia que deveria olhar sempre para o chão e andar como se fosse invisível para não incomodar as orações. Tanta advertência não era por acaso, Luzia confessou num rompante de desabafo: queria manter seu ganha-pão como lavadeira do mosteiro e conseguir uma vaga para que eu estudasse na escola da igreja.

Nessa altura, meu irmão Joaquim tinha retornado de um tempo longo morando na capital. Ele levava uma vida errante, mas quando jovem aparecia vez ou outra para ajudar seu Valter nos carregamentos do saveiro Dadivoso, com sacas de grãos e caixas de verduras. Saíam às quintas-feiras em direção à Feira de São Joaquim e não tinham dia certo para regressar. Foi um tempo em que manejei os saveiros na imaginação, nas brincadeiras de menino, enquanto admirava o Dadivoso e outras embarcações navegando o Paraguaçu em direção à baía. Quando meu irmão começou a trabalhar com seu Valter, eu o seguia até o rio para observar o carregamento das sacas de farinha, dos barris de azeite de dendê e das caixas de inhame e aipim. Guardava a esperança de que me considerassem pronto para trabalhar. Sonhava ir embora de casa, não precisar mais olhar a carranca de Luzia me dizendo que eu era um fardo. Meus irmãos deixaram a Tapera antes mesmo de me conhecerem. Da maioria deles não havia fotografia nem recordação. Eu fiquei só com Luzia e meu pai. Como não havia quem cuidasse de mim na sua ausência, precisei seguir seus passos muito cedo, a todo canto, até que ela me considerasse pronto para ficar sozinho.

Quando eu era pequeno, Luzia me levava nas suas caminhadas para recolher as roupas do mosteiro. Entrava e saía dos cômodos e caminhava contrita até o altar da igreja, benzendo-se toda vez que passava por alguma imagem de santo ou pela de Nosso Senhor do Bonfim, a maior delas. Eu me afastava em silêncio, ao mesmo tempo que tentava manter os movimentos de Luzia no meu campo de visão, domando meu ímpeto explorador.

Livro: "Salvar o Fogo"

Autor: Itamar Vieira Junior

Editora: Dom Quixote

Data de Lançamento: 26 de abril

Preço: € 18,80

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Não poderia desobedecer de todo a suas ordens, como a de estar sempre ao seu lado. Planejava como caçar os insetos no jardim do pátio interno. Retirava viuvinhas do pé de carambola e as pousava em meu braço. Dava-lhes nomes, cuidava para não caírem sob os sapatos dos monges que percorriam os corredores em silêncio. Às vezes, ao notarem minha presença, punham a mão sobre minha cabeça. Me abençoavam e ofertavam as carambolas maduras que eu mesmo poderia pegar, não fosse a proibição de Luzia. Eu a seguia e gostava de sentir sua paz, quieta, silenciosa, recolhendo as peças a serem lavadas, fazendo um grande esforço para não ser notada, os pés flutuando acima do chão. Não era possível ouvir sequer suas sandálias surradas encontrando o piso do mosteiro. Diferente de mim que, ao me perceber sozinho, deslizava os pés como se fossem barcos quebrando a correnteza do rio, ruidosos a perturbar a calmaria sagrada do mosteiro.

Quando não encontrava os insetos, me sentava no banco de pedra e olhava Luzia de um lugar privilegiado. Observava seu caminhar, sua ronda, o percorrer das celas, abrindo e fechando portas, o ranger das dobradiças douradas, ela recolhendo as roupas brancas. Me aproximava, mas não tinha permissão para adentrar os vãos, não tinha permissão para olhar o interior, embora eu sempre desse um jeito de espreitar. Luzia entrava de cabeça baixa, olhando o que a interessava. Recolhia, dobrava, alisava com as mãos as peças de roupa. A boca se movimentava em silêncio recitando preces que não podiam ser escutadas e os olhos contemplavam sem demora os crucifixos e os santos. Era a casa de Deus, foi o que me ensinou, e ali expiava em contrição as dificuldades dadas pela vida. Mas era das costas de Luzia que se elevava um pequeno monte, uma corcunda, e eu sentia vergonha. Nesse ponto concordávamos, porque ela parecia sentir igual acanhamento. Houve um tempo em que não entendia sua deformidade, ainda não compreendia as coisas da vida e não me incomodava com muita coisa. Mas, à medida que eu crescia, andava cada vez mais distante para não ouvir as zombarias das crianças. As mais atrevidas se aproximavam sem que ela notasse para pôr a mão sobre a corcunda e fazer um pedido. Aprenderam com os viajantes que passavam ao largo da estrada da Tapera. Muitas vezes vi minha irmã chegar em casa e se dirigir ao quintal, para longe de mim ou de meu pai. Parava diante da pequena horta e engolia a seco as lágrimas que não chegavam a deixar seus olhos.

Quando Zazau, a mais velha entre as irmãs, nos visitava, repetia que eu não deveria contrariar Luzia – «Ela sofre dos nervos.» Eu sabia que, no fundo, não queriam falar sobre os males que o povo da aldeia cochichava pelos cantos e fizeram de Luzia uma assombração evitada por todos. As crianças nas ruas, e depois na escola, repetiam as histórias contadas pelos mais velhos: que nossa casa era amaldiçoada; que as coisas se quebravam sozinhas, os móveis se moviam do nada; que o fogo se apoderava das coisas sem ser provocado. O fogo, em especial, parecia preocupar aos que contavam. Diziam que, nos dias de lua, por onde Luzia andava, as coisas queimavam. Roupas secas estendidas no varal, o colchão de palha, o mato ao redor das casas e dos caminhos. Contavam que Luzia fora trancada em casa pelo pai e pela mãe para que os vizinhos não resolvessem suas diferenças com as próprias mãos. Se os primeiros eventos estranhos surgiram enquanto ela crescia, não se sabia ao certo quando deixaram de acontecer. Uns diziam que foi depois da morte da mãe, outros que os males cessaram quando Luzia foi crismada. Mas saber que minha irmã tinha o poder da magia quando eu ainda nem existia me atormentava e atiçava ainda mais minha curiosidade.

Um dia, depois de uma surra de Luzia, resolvi eu mesmo lhe castigar. Não lhe contava sobre tudo o que ouvia, sobre as coisas que diziam dela pelas ruas da aldeia. A raiva me fez planejar algo traiçoeiro para atingi-la em cheio. Aproveitei sua ausência da cozinha e retirei uma lenha ainda ardendo do fogão. Encostei a chama na cortina que separava o cômodo do resto da casa. Eu queria atingir Luzia, provocar algo tão forte quanto as lapeadas de cipó que havia recebido, sua arma para me manter sob controle. Seguindo seu exemplo, eu não tinha chorado, não me dobrei aos seus castigos. Contudo, queria vingança. Aos seis anos não podia imaginar que o fogo não queimaria apenas a velha cortina, mas alcançaria o teto e consumiria as ripas de madeira que sustentavam o telhado. Em pouco tempo as chamas se alastrariam. Comecei a gritar «Fogo» e tive medo de que ocorresse o pior.

Luzia aguava os canteiros de plantas porta afora. Ao me ouvir gritar, correu apressada para o interior da casa feito uma flecha, sem que tivesse tempo de me notar. Parou na porta, enfeitiçada pela cena. Olhava para o alto, parecia admirar o vermelho vivo das ripas consumidas pelas chamas. Depois de breve tempo sem reagir, ela me puxou para fora de casa, enquanto a fumaça escura se elevava ao céu pelas brechas das telhas. Quando considerou que eu estava seguro no terreiro, retornou para dentro, me deixando sob o céu da Tapera. Não falava alto nem parecia perturbada. Eu permaneci do lado de fora. Senti medo e culpa. Tinha pecado, Deus me castigaria, e Luzia também, se descobrisse a verdade. Atravessei a soleira da porta sem conseguir ver Luzia em meio à fumaça que já havia tomado os poucos vãos da casa. Imaginei que talvez tentasse recuperar o terço e o missal que levava para todo canto. Mas a encontrei agachada e sem perceber respirava a fumaça.

Diante de Luzia havia um pedaço de madeira crepitando. Uma fagulha em meio à brasa. Ela parecia enfeitiçada. Carregou a tocha até a porta. Mas, antes de sair, abriu a boca e engoliu o fogo, como se precisasse guardá-lo.