Há plantas que rasgam o asfalto. Deixam para trás uma fissura como prova da sua força, do caminho percorrido, da agonia que sufoca antes da golfada de ar. Com o passar do tempo, a planta que fura o asfalto torna-se também ela asfalto. Fica a fissura para nos relembrar de que é possível dançar em contramão. É possível a terra ser o início, e não o fim.
Espruce-da-noruega
(Picea abies)
Mais conhecida como «Árvore de Natal»
De onde eu venho não há flores selvagens nem pessoas selvagens. De onde eu venho não se podia crescer demasiado nem ser demasiado.
Lá até o sol é cinzento e os jardins são apenas espaços verdes. Não têm vida nem vontade própria, são aquilo que devem ser. Cumprem um propósito.
O Muro de Berlim nasceu e dois anos depois nasci eu. Fui muito desejada até ao dia em que me materializei. Depois, para a minha mãe, passei eu mesma a ser um espaço verde.
A minha primeira memória de infância é com a Mavie. Não sei se ela usava sempre o mesmo vestido amarelo às riscas brancas, ou branco às riscas amarelas, mas nas minhas memórias é sempre assim que a vejo. Estávamos as duas descalças no jardim e a brincadeira era a minha favorita: molhar a terra com o regador e saltar em cima das poças até o seu vestido amarelo e branco ficar coberto de pintas castanhas e a lama nos salpicar o cabelo e as pestanas. Aí, já cansadas de tanto rir, deitávamo-nos na relva e ficávamos a observar a dança das folhas nas árvores altas.
A Mavie era uma magnólia estrelada. Era alta, bonita e estava sempre perfumada. Tinha o cabelo de um amarelo quase branco e era muito fininha, quase transparente. Parecia tão leve que às vezes, quando o vento soprava com mais força, eu prendia as suas mãos nas minhas para que ela não levantasse voo.
Todas as manhãs a minha mãe me deixava em casa da Mavie. Ela dava-me um pão com salsicha ou queijo e corríamos para cuidar das nossas flores.
Na casa onde ela morava havia um pequeno jardim. Os muros eram cinzentos e tinham tantos buracos que eu fantasiava ver neles fatias de queijo gigantes. Para a minha mãe aquele lugar era o «Sumpf» (1), sendo que não me recordo de alguma vez a ter visto noutro sítio que não a porta da rua.
Era um mundo bem pequeno, cheio de cores e cheiros, que fazia questão de não condizer com o mundo sombrio das ruas e casas da nossa cidade. Era um jardim vaidoso que esfregava a sua beleza na cara decadente das redondezas.
A Mavie sabia o nome de todas as flores e dizia que cada uma delas tinha um poder mágico. «A violeta trata a melancolia, a língua-de-ovelha ajuda a sarar as feridas, a erva-de-são-joão contribui para o tratamento da depressão.» Eu achava tudo tão fascinante que às vezes ia ao jardim sozinha, quando a Mavie estava entretida com outros afazeres, só para recapitular a matéria e ter a certeza de que não confundia as plantas e as suas respetivas magias. «A violeta trata a melancolia, a língua-de-ovelha ajuda a sarar as feridas, a erva-de-são-joão contribui para o tratamento da depressão.»
Aos seis anos fui para a escola e nunca mais vi a Mavie. Por vezes os meus sonhos enchiam-se de flores e ela também lá estava, com o seu vestido amarelo e branco à espera de ser salpicado.
O medo é um verme que nos vai comendo por dentro até não sobrar nada, deixando o exterior intacto.
Viver uma vida de medo é caminhar oco, vazio, desabitado. É ser uma ruína só com a fachada de pé. É ser nada num corpo de gente sem memória de quem se é.
Lariço-europeu
(Larix decidua)
Pode atingir os 45 metros de altura
Foi na escola que descobri o medo, o meu e o dos outros. Perguntavam-nos que desenhos animados víamos em casa. Aprendemos rapidamente que a resposta correta era Unser Sandmännchen (2) e que a pergunta em si não partia da mera curiosidade de quem a fazia. Aprendemos que tudo o que vinha do outro lado do Muro era mau e que quem fosse apanhado a pensar o contrário podia desaparecer de um dia para o outro, como a senhora Richter.
O senhor Richter era nosso vizinho e ia muitas vezes jantar lá a casa com a mulher. Era raro a minha mãe sentar-se à mesa com eles, mas o meu pai acreditava sempre até ao último segundo que mudaria de ideias. Depois, era assistir a quinze minutos de desculpas elaboradas e nada credíveis sobre o motivo da sua ausência. Perguntava-me muitas vezes como era possível o meu pai continuar a amar a minha mãe, depois de tanto desprezo e rejeição.
Um dia ouvi-o dizer à minha mãe, no meio de um dos seus monólogos, que andava desconfiado do senhor Richter. Estava quase certo de que ele planeava fugir. Não sei se o meu pai fez alguma coisa, mas no dia seguinte a senhora Richter desapa- receu, deixando o marido numa angústia profunda; parecia um morto-vivo a andar de um lado para o outro da rua, como se a fosse encontrar escondida atrás de uma árvore ou sentada numa esquina. O meu pai baixava a cabeça quando o via na rua e dizia-me que fizesse o mesmo.
A senhora Richter voltou passados três meses, mas nunca se falou na razão do seu desaparecimento. O senhor e a senhora Richter nunca mais foram jantar a nossa casa.
A Uta acompanhou-me no primeiro dia de aulas. Era minha vizinha e brincávamos juntas desde pequenas. O meu pai deixava-me muitas vezes em casa dela quando tinha eventos do Partido. Entrámos na escola de mãos dadas e não as largámos até nos sentarmos nas secretárias, lado a lado. Apresentámo-nos aos nossos colegas, ouvimos as suas apresentações e, por fim, a da professora. Discutimos o plano de trabalho para aquela semana e ouvimos as regras gerais da sala de aula e da escola. Da parte da tarde, fomos conduzidos ao ginásio, onde realizaram uma série de exercícios com a finalidade de avaliar as nossas capacidades físicas. Voltámos para casa de mãos dadas.
No dia seguinte, a Uta esperava-me à porta de casa. Contou-me que os pais tinham sido contactados após as provas físicas do dia anterior, e que ela teria de ir estudar para uma escola especializada em ginástica. Acrescentou com um enorme sorriso que poderia vir a ser uma grande ginasta e, quem sabe, ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos como a Margitta Gummel. Não consegui ficar feliz por ela e isso deixou-me ainda mais triste. Fui para a escola de mãos nos bolsos, odiando-me por nunca ter conseguido fazer a espargata.
Por vezes o meu pai não era o meu pai. Ouvia-o dizer coisas estranhas a colegas da STASI (3) e o seu olhar não era aquele que eu conhecia. Lembro-me de um dia estar a passar pela sala para ir à cozinha beber água e de o ouvir dizer a um amigo: «Ela que esteja bem caladinha, senão já sabe o que lhe acontece. Não te esqueças de que essas ficam sempre para mim.» Na altura não entendi o que queria dizer, mas nunca esqueci aquelas palavras, assim como o olhar com que ele as disse, era um olhar alucinado com um leve sorriso de maldade. Corri para o quarto. Tinha medo daquele senhor que de vez em quando roubava o meu pai.
Uns anos mais tarde, numa das nossas idas ao supermercado, a rapariga da caixa registadora viu-nos chegar junto do tapete rolante e começou a tremer tão violentamente que parecia estar no meio de uma crise epilética. Fiquei apavorada e abracei o meu pai, enterrando a cara no seu casaco. Foi na viagem entre a agonia da rapariga e a lã cinzenta que os vi novamente: o olhar alucinado e o sorriso maquiavélico. Fechei os olhos e continuei abraçada a ele com medo de os abrir, com pânico de voltar a ver o outro senhor na cara do meu pai. Nunca o tinha visto tão de perto. Até o corpo que abraçava não era o corpo que conhecia. Era alguém que açambarcava o meu pai por inteiro.
Nunca mais vi a rapariga do supermercado, mas o senhor que partilhava corpo com o meu pai foi aparecendo algumas vezes ao longo da minha infância. Nunca deixei de o temer, mas aprendi a esperar que partisse.
De seis em seis meses, recebíamos uma encomenda da irmã da minha mãe. O meu pai fingia não ver para não ser alvo do olhar de cólera que a minha mãe lhe dirigia cada vez que ele iniciava uma conversa. Eu não conhecia a minha tia e sabia que não devia contar a ninguém que ela nos enviava roupa. Sempre que via outros meninos na rua com roupas que pare- ciam ser novas, perguntava-me se também eles teriam uma tia secreta do outro lado do Muro.
A minha escola era muito alta e toda cinzenta. Tinha quatro andares com pequenas janelas todas iguais e ocupava o quarteirão inteiro. Na entrada estava um retrato de Estaline que devia ter a minha altura. Foi o meu primeiro herói.
Três vezes por semana havia reunião dos pioneiros (4). Cantávamos canções, organizávamos recolha de papel para angariar fundos e fazíamos jogos.
No segundo ano de escola, começámos a preparar a atuação para o encontro do ano seguinte em Dresden. Os mais velhos escolheram as canções e decidiram fazer uma peça de teatro. Eu só ouvia e concordava. Já tinha aprendido com o meu pai que era o que se devia fazer sempre que alguém mais velho falava. Às vezes, também me acontecia anuir para poder viajar para o meu mundo das plantas e continuar a aparentar estar presente. «Que achas?» A pergunta ficou no ar para alguém a apanhar e, pelos mais de dez pares de olhos postos em mim, intuí que esperavam uma resposta, então anuí uma vez mais. Foi assim, sem querer, que aceitei o papel de narradora, logo eu que só sabia falar com as plantas.
Foi um ano de sofrimento. A voz não me saía da garganta. Assim que tentava dar a minha deixa, o ar, em vez de sair, entrava e ia direto à barriga, o que, além de me distorcer a cara ao ponto de eu quase sentir as sobrancelhas tocarem nas bochechas, me causava uma enorme dor de burro.
O dia chegou. Vesti a minha camisa branca, a saia azul e o lenço vermelho. As minhas pernas tremiam tanto que tiveram de me empurrar para o palco. Quando olhei o público, fiquei paralisada. Eu não pertencia àquele lugar, como as plantas exóticas não pertencem aos países frios.
Ao longe vi o meu pai acenar-me. Ao seu lado um lugar vazio. Não estranhei: o lugar da minha mãe estava sempre vazio. Não podia falhar. Com o meu pai presente, nunca poderia falhar. Fechei os olhos e vi um jardim cheio de trepadeiras e tulipas. Só tinha de falar com as flores; isso eu sabia fazer. Só quando as flores começaram a aplaudir é que voltaram aos seus corpos de pessoas. Foi a primeira de muitas vezes ao longo da minha vida que transformei pessoas em plantas para conseguir relacionar-me com elas.
O meu pai pegou-me ao colo e deu-me um abraço tão demorado que fiquei com formigueiro na planta dos pés. «Vocês são o futuro do nosso país! Foste maravilhosa! Tenho muito orgulho em ti!» E eu tinha muito orgulho de que ele tivesse orgulho em mim.
(1) Pântano.
(2) Desenho animado que passava nas televisões da Alemanha de Leste na hora de deitar das crianças. O personagem principal, Sandmännchen (homem de areia), vivia grandes aventuras enquanto promovia o avanço tecnológico da RDA através do uso de veículos futuristas como carros voadores.
(3) Polícia secreta da Alemanha Oriental.
(4) Thälmann Pioneers era um grupo ao qual pertencia a maioria dos jovens da RDA do 4.° ao 7.° ano de escolaridade.
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