A crítica não é nova, mas a situação agravou-se por estas eleições decorrerem durante uma pandemia e por ser obrigatório o voto presencial. Existem cerca de 1,5 milhões de eleitores emigrantes, mas lá fora apenas é possível votar em 150 localidades, apesar de haver portugueses espalhados por 186 países do mundo.
Os portugueses a residir no estrangeiro consideram que não pode haver eleitores de primeira e de segunda e não compreendem como é que em décadas pouco mudou na Lei Eleitoral, ou como a Assembleia da República, o governo e a Comissão Nacional de Eleições não acautelaram os seus votos.
Um dos problemas é que a rede de embaixadas e consulados portugueses é cada vez menor e manifestamente insuficiente, uma situação agravada em tempo de pandemia, uma vez que muitas instalações estão fechadas e há zonas em confinamento ou com recolher obrigatório, além dos milhares de quilómetros que muitos eleitores são obrigados a fazer, de carro, de comboio ou mesmo avião, caso em que o eleitor tem de suportar o custo do bilhete e, nesta altura, de um teste PCR à Covid-19.
Céu Mateus é professora catedrática de Economia da Saúde na Universidade de Lancaster, localidade onde vive, no Reino Unido. Está registada no consulado de Manchester, a uma hora de distância de comboio e com horários menos regulares aos fins de semana. "Nas europeias", que também exigem voto presencial, "gastei cinco horas", conta.
Só no Reino Unido estão recenseados 140.854 eleitores, face aos 2800 inscritos nas eleições presidenciais de 2016. O consulado-geral de Manchester já pediu a melhor cooperação das autoridades britânicas para facilitar a circulação para e das secções de voto, mas há quem receie uma interpretação diferente das regras e não veja com bons olhos viagens longas.
O receio estende-se às diversas comunidades de portugueses espalhados pelo mundo. Há emigrantes que têm de percorrer oito, nove e mais horas de automóvel, com a despesa de combustível inerente, para poder votar. Zélia, em Dallas, nos Estados Unidos, tem o posto mais próximo em Houston, a cerca de 400 quilómetros. "É um dia perdido a ir e voltar".
Verónica vivia há cinco anos em Barcelona e regressou a Portugal em dezembro. Como tem de alterar a morada de residência nos 60 dias anteriores à eleição, não vai poder votar. A indignação é ainda maior por não lhe ter sido dada a possibilidade de votar em mobilidade, como aconteceu com os eleitores residentes em território nacional, incluindo Açores e Madeira. "Para votar agora, teria de pagar do meu bolso uma viagem até Barcelona", queixa-se. E acrescenta que "já basta a penalização que muitos jovens sofrem ao sair do país por falta de emprego". "É como se o facto de não residir em Portugal devesse contribuir para dificultar exercício dos meus direitos", diz.
As histórias sucedem-se e podíamos desfiar um cem número de casos. São estrangeiros no país onde residem e são estrangeiros para Portugal. Talvez por isso muitos emigrantes se deixem seduzir pelas inúmeras petições online de grupos extremistas que querem o seu voto. Céu Mateus acredita que "é o facto de este assunto não ser tratado no Parlamento que dá espaço para que grupos se organizem e mobilizem apoios".
Sentem-se "portugueses de segunda" e não conseguem perceber por que motivo a Assembleia da República não pensou neles. Nem Belém. Ao longo da campanha todos os candidatos se dirigiram à diáspora e afirmaram que cada português conta. Os emigrantes com quem falámos perguntam "onde estiveram os políticos durante estes cinco anos?"
A Comissão Nacional de Eleições (CNE) diz que era complicado estender o voto em mobilidade aos portugueses residentes no estrangeiro, uma vez que os boletins são depois enviados para as mesas de voto de origem de cada eleitor, o que no caso dos emigrantes significa o tempo de correio, que facilmente poderia exceder uma semana. A Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna confirma: é tudo uma questão de prazos legais.
Nuno Garoupa, professor de Direito na George Mason University, na Virgínia, EUA, questiona a necessidade de os votos terem de ser enviados para o país de origem, já que se trata de uma eleição nacional. "Há muitos anos que defendo a simples extinção da Comissão Nacional de Eleições, criando em seu lugar um tribunal eleitoral, ou a sua transformação num regulador independente, sem delegados dos partidos, com reforço de competências administrativas (caso em que o Ministério da Administração Interna ficaria completamente subordinado à CNE em matéria de administração eleitoral)".
Na opinião de Nuno Garoupa "nunca há responsáveis, ninguém se demitiu, todos esboçam umas desculpas sem sentido. É o resultado de uma solução híbrida, de responsabilidade difusa, onde os custos são socializados e ninguém manda. Uma solução institucional em que ninguém mexe há 45 anos".
O deputado do PS eleito pelo círculo da Europa, Paulo Pisco, diz que "houve preocupação do governo e da administração eleitoral". A prova "é que para estas eleições foram constituídas mais mesas de voto na Europa e fora da Europa e o número de localidades onde é possível votar aumentou de 121 para 150". Sendo que existem portugueses espaçados por 186 países. Além disso, diz, "já na legislatura anterior o governo tornou possível o recenseamento "automático", que levou à subida do número de eleitores de 300 mi para 1,5 milhões".
De que serve ter mais eleitores se não podem votar, perguntamos. O deputado responde: "Julgo que é possível haver ainda mais mesas de voto, procurar alargar a rede. Todos os chefes das missões diplomáticas e consulares tinham orientações para procurar alargar tanto quanto possível as mesas de voto no estrangeiro".
Mas, garante Paulo Pisco, "não foi fácil arranjar pessoas para constituírem as mesas de voto a meio de uma pandemia - as pessoas têm medo do Covid e não queriam, apesar de ter sido feita uma campanha para mostrar que nos locais de voto estavam garantidas todas as condições de segurança sanitária. Foi muito difícil recrutar pessoas".
Mas há mais: de acordo com a Lei Eleitoral, lembra o deputado do PS, "se absolutamente necessário, o local de voto pode ocorrer noutro tipo de instalações, desde que a fiscalização do ato eleitoral seja garantida por representantes das candidaturas". Por isso, é preciso "perguntar às candidaturas quantos membros é que cada candidato designou para as assembleias de voto no estrangeiro". Que saibamos, nenhum.
A introdução do voto eletrónico
Na entrevista que deu ao SAPO24, Marcelo Rebelo de Sousa afirma que continua "a não perceber porque não se aceita o voto por correspondência. Há uma desconfiança muito grande do legislador, em Portugal como noutros países, embora haja países que têm voto por correspondência e o praticam. Infelizmente, esse voto em Portugal suscitou sempre grande resistência por parte dos deputados".
O mesmo em relação à votação eletrónica, "que também suscita as maiores reservas e, portanto, aquilo que podia ser um meio de aproximar os eleitores do voto na eleição presidencial não existe com a exigência do voto presencial", o que, admite, "é um dos motivos de uma abstenção mais elevada".
Os emigrantes pedem a alteração da Lei Eleitoral e a introdução do voto eletrónico, que muitos juristas entendem ser uma leitura do voto presencial exigido na Constituição.
Paulo Pisco tem reservas. "Percebo a frustração", mas "o voto é algo de tal maneira sagrado que ninguém responsável pode aceitar que um ato eleitoral seja permeável à fraude. Há um grande conflito entre aquilo que é a nossa vontade de haver uma maior participação e aquilo que são as possibilidades reais de uma participação que garanta o rigor e a verdade do resultado eleitoral".
O deputado acredita que "não há sistemas de voto perfeitos". "Defendo o voto eletrónico online, a partir de casa ou do telemóvel, para as eleições legislativas, mas tem de ser introduzido com muita cautela. As pessoas dizem com muita ligeireza 'faça-se o voto eletrónico', 'faça-se o voto por correspondência', mas o voto eletrónico não é algo que se monta em um ou dois anos". Em quanto tempo, então? "Pode ser em vários anos e pode até voltar-se à estaca zero", assegura.
Paulo Pisco dá como exemplo a Suíça. "Era no modelo suíço que depositava maior esperança para ser replicado no resto do mundo. Mas há dois anos as autoridades suspenderam o voto online para criar condições de segurança do exercício do direito de voto, depois de realizarem testes com hackers para ver se o sistema era ou não inviolável".
Os suíços "têm voto eletrónico desde 2004, começaram em Genebra e foram alargando o método a outros cantões". Ao todo, 15 já tinham implementado o voto eletrónico online, incluindo para suíços a residir no exterior. "Fizeram assim mais de 300 eleições ao longo destes anos".
José Ribeiro e Castro, jurista, ex-deputado e fundador do CDS concorda que o voto eletrónico não presencial levanta problemas graves: "o voto tem de ser exercido em liberdade e em segredo". Como a CNE, levanta a questão do chamado "voto família", aquele que é exercido sob coação. "Temos de nos lembrar que em Portugal a violência doméstica ainda é uma realidade".
O ex-líder do CDS lembra, no entanto, que "no Benfica o sistema de voto é eletrónico e o eleitor fica com um canhoto do voto para prova numa eventual necessidade de recontagem de votos".
André Corrêa d'Almeida, professor na Universidade de Columbia, economista e doutorado em Public Affairs critica o status quo e a falta de incentivos para a mudança. "O imobilismo institucional é quem mais ordena; a capacidade de rejuvenescimento do sistema a partir de dentro é quase nula". Por isso, tal como Nuno Garoupa, aplaude "a introdução do voto antecipado" e sugere a criação de um grupo de trabalho sob coordenação de um dos órgãos do Estado para repensar o sistema de representatividade".
Afinal, "há mais de dez meses que se sabe da Covid e não é rocket science criar um sistema eletrónico de voto que não exija presença física. Experimente-se e teste-se em ambientes controlados, por exemplo em escolas com alunos entre os 15 e os 18 anos, em que até se poderia atribuir um prémio a quem conseguisse furar o esquema", sugere.
O deputado Paulo Pisco concorda que "esta experiência deve ser feita. Deve-se verificar se é ou não exequível, independentemente dos recursos. Confio absolutamente nas capacidades tecnológicas que Portugal tem, que sempre tem vindo a desenvolver todos os planos tecnológicos de uma maneira muito séria", mas este é um processo que tem de ser feito doucement". A questão, é que nada se fez.
No Brasil, nos Estado Unidos ou na Venezuela o voto eletrónico é presencial, tal com na Estónia. Paulo Pisco alerta para todos os relatórios que apontam para "vulnerabilidades extraordinárias no voto eletrónico. E na Estónia, que tem voto eletrónico internamente e pouca emigração, votam cerca 30%".
Para o deputado do PS, se o voto eletrónico for presencial, as dificuldades vão ser as mesmas de agora, "já que exige a deslocação dos eleitores aos locais de voto e fiscalização". Mas concorda que "devia haver um investimento da parte do Estado português para verificar as condições de exequibilidade do voto online para as comunidades portuguesas". Se nada se fez até hoje, é porque "não há na Assembleia da República consenso para outra modalidade de voto para as eleições presidenciais por se tratar de um círculo único. É um problema", admite.
A CNE lembra ainda que, apesar de o número de eleitores ter mais do que quadruplicado e ser possível votar por correspondência, nas últimas eleições legislativas o número de votantes não aumentou e a abstenção manteve-se elevadíssima. Paulo Pisco também tem "um palpite de que em termos percentuais vai haver a mesma participação que existia antes do recenseamento automático".
A verdade é que são conhecidos os problemas que existiram com o voto por correspondência nas eleições legislativas de 2019: muitos boletins não chegaram a tempo e extraviaram-se ou chegaram em mau estado. Além de que o problema da falta de locais de voto era já evidente.
Céu Mateus, como Zélia, Verónica e tantos outros, lamentam a ideia antiga de que os portugueses que vivem fora do país estão afastados da realidade nacional, um dos argumentos que a Assembleia da República utiliza para não avançar com alterações na lei . "A vivência dos emigrantes é hoje muito distinta da de há anos, há outra mobilidade, as comunicações são fáceis e a Internet trouxe outra realidade".
A professora catedrática ainda recorda o tempo em que os pais ou amigos lhe enviavam por correio o jornal de referência ou ouvia rádio AM para estar a par da atualidade. "Os tempos mudaram, e essa modernidade devia ser refletida no processo eleitoral. A participação que nos dada é dissonante dos programas que apelam ao retorno dos emigrantes, sobretudo quando nos desligam das decisões do país. Custa-me particularmente não ter sequer essa possibilidade, é um tratamento de segunda".
A votação por portugueses no estrangeiro foi alargada a dois dias e os emigrantes começaram hoje a votar, podendo fazê-lo ainda durante o dia de amanhã até à hora de fecho das urnas em Portugal.
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