Além da alta instabilidade na Síria, devastada por uma guerra civil da qual tinham escapado ao longo da última década, da ausência de documentos e do medo sobre o que os espera do outro lado da fronteira, resta ainda ao refugiados fazer os últimos quilómetros a pé em Masnaa, na principal ligação entre Beirute e Damasco, após bombas israelitas terem destruído um setor da estrada em terra de ninguém.
Pouco antes das 03:30 de sexta-feira, Ibrahim, que mantém desde há um ano um negócio no lado libanês da fronteira de Massnaa, ouviu uma explosão de um ‘rocket’ disparado contra as montanhas rochosas que envolvem a região. “Foi só um tiro de aviso, numa questão de minutos, seguiram-se duas grandes bombas mesmo em cima da estrada”, descreve o comerciante.
Duas crateras profundas marcam o local das detonações, a meio caminho entre os controlos fronteiriços dos dois países e a apenas uns 700 metros do libanês, deixando a via intransitável nos dois sentidos desde então.
O impacto das bombas foi tão forte que projetou blocos em betão do separador central para as encostas a mais de 50 metros de distância, onde as comunidades locais continuam a levar cabras a pastar por caminhos que eram recentemente usados por sírios indocumentados para passar a fronteira a salto, antes de as autoridades libanesas levantarem as restrições existentes.
Ibrahim observa muito menos circulação na fronteira desde o bombardeamento de Israel, que já vinha apontando a fronteira sírio-libanesa como um ponto de passagem de armamento iraniano para o grupo xiita libanês Hezbollah,
Segundo o comerciante, à hora do ataque, praticamente não havia movimento e apenas um homem sírio ficou ferido num braço. Em qualquer circunstância, nenhum carro consegue agora ultrapassar as gigantescas crateras.
Em alternativa, os refugiados sírios e libaneses que abandonam o Líbano, em fuga dos bombardeamentos intensivos de Israel contra o Hezbollah no sul do país e nos subúrbios de Beirute, fazem a travessia a pé, carregando malas pesadas, grandes sacos em serapilheira ou de supermercado, crianças pequenas e bebés ao colo e idosos e deficientes às cavalitas.
Com sorte, conseguem um carro logo após as crateras, mas sem ela, resta-lhes carregar todo o peso e caminhar uns dois quilómetros até ao posto sírio.
Para um homem de meia idade, essa é uma distância inviável e o corpo cede ainda antes das crateras, permanecendo deitado sobre os destroços das explosões até chegar uma equipa do Crescente Vermelho e retirá-lo de maca e depois, na parte em que volta a existir estrada, de ambulância.
Num movimento de um só sentido, na direção da Síria, dezenas de famílias marcam um fluxo contínuo, sob um vento forte levantando pó, vigiados de perto por elementos à civil das forças de segurança de ambos os países.
É nesta corrente que se encontra Ahmad, 31 anos, tomando o caminho contrário que fez quando abandonou a Síria para o Líbano, de onde parte novamente, apenas com três sacos com roupas de toda a sua família, a mulher e três filhos pequenos.
No Líbano, o sírio era pintor na construção civil, mas nos últimos tempos já não conseguia encontrar trabalho, “devido à situação, que não é boa e ficou perigosa”, explica, aludindo à intensificação nas últimas semanas das operações militares de Israel contra o Hezbollah, ao fim de cerca de um ano de hostilidades.
Ahmad ainda tentou fugir para o estrangeiro, mas sem sucesso e acabou por decidir regressar à Síria, integrando um contingente de mais de 375 mil pessoas que cruzaram a fronteira nas últimas duas semanas, segundo as autoridades do Líbano.
As Forças de Defesa de Israel (IDF) indicaram na sexta-feira que aviões de combate tinham atacado a fronteira sírio-libanesa, alegando a “transferência de armas” para o Hezbollah.
De acordo com a imprensa israelita, os militares de Telavive referiram-se também a um suposto túnel de cerca de três quilómetros entre os dois países, que seria usado para introduzir armamento no Líbano, embora sem especificar a sua localização.
Junto das crateras na passagem de Masnaa não há qualquer vestígio de uma estrutura subterrânea, mas o ataque fez cair 75% do movimento nesta passagem, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que calcula que 70% das pessoas que saíram para a Síria são cidadãos sírios e 30% libaneses, com alguns poucos casos de nacionalidades terceiras.
A maioria dos sírios tinha-se refugiado no Líbano em consequência da devastadora guerra civil no seu país e paira o receio de sofreram represálias, mas que, em plena guerra entre Israel e o Hezbollah, justifica o risco de muitos voltarem.
A família de sete pessoas de Mohamed, decidiu fazer o caminho de volta para a Síria, quando constatou “uma situação muito perigosa” no sul do Líbano, no vale de Bekaa e nos arredores da capital, ao fim de dez anos na condição de refugiados e não fazia planos de regressar. Mas acabou por concluir que o seu país de origem é agora, apesar de tudo, mais seguro .
“Esta agressão de Israel é injusta, atinge os mais pobres e desprotegidos, que não têm culpa de nada”, critica o sírio de 51 anos, deixando palavras de elogio às autoridades libanesas e às Nações Unidas pelo apoio que lhe forneceram e expressando o plano de voltar a abandonar a Síria, antes de seguir o seu caminho, aos tropeções pela parte da estrada que desapareceu, e deixar para trás uma década de vida.
O alto comissário da ONU para os Refugiados, Filippo Grandi, pediu hoje em Beirute mais financiamento para enfrentar a “enorme” crise de pessoas deslocadas e alertou que “é apenas o início” .
“É importante obter mais apoio da comunidade internacional. O Governo pediu às Nações Unidas para mobilizarem recursos e as agências humanitárias da ONU lançaram um pedido de cerca de 500 milhões de dólares apenas por três meses, por isso isto é apenas o começo porque não se sabe o que acontecerá a seguir”, declarou em conferência de imprensa.
As palavras do alto comissário surgem no rescaldo de uma dos piores dias de bombardeamentos contra os arredores sul da capital libanesa, sobretudo no grande subúrbio de Dahieh, um bastião do Hezbollah, e de novos avisos das forças israelitas para a evacuação de localidades no sul do país.
Segundo o Governo libanês, 1,2 milhões de pessoas tiveram de abandonar as suas casas desde o início da intensa campanha de bombardeamentos israelitas, há duas semanas, cerca de 173 mil das quais estão alojadas em 940 escolas convertidas pelas autoridades em abrigos temporários.
Na segunda-feira, assinala-se um ano desde o ataque do grupo islamita palestiniano Hamas em solo israelita, que desencadeou a atual guerra na Faixa de Gaza e também no Líbano.
Desde 7 de outubro, Israel e Hezebollah, aliado do Hamas e do Irão, trocam disparos numa base quase diária ao longo da fronteira israelo-libanesa, levando a que largos milhares de pessoas tenham abandonado as suas casas em ambos os países.
Desde 23 de setembro, as forças israelitas intensificaram as suas operações no Líbano e mataram o líder histórico do Hezbollah, Hassan Nasrallah, alegando que pretendem neutralizar a capacidade do grupo xiiita libanês de atacar solo israelita.
As autoridades libanesas contabilizam cerca de dois mil mortos provocados por esta crise no último ano, cerca de metade dos quais desde 23 de setembro.
*Por Henrique Botequilha (texto) e João Relvas (foto), enviados da agência Lusa
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