Foi a primeira mulher a licenciar-se em Direito e a exercer a advocacia ainda antes do decreto de 1918 que consagrou a abertura da profissão às mulheres. Regina da Glória Pinto de Magalhães Quintanilha de Sousa Vasconcelos — ou, para abreviar, apenas Regina Quintanilha — este é o nome da primeira advogada portuguesa, que se estreou no dia 14 de novembro de 1913, no Tribunal da Boa Hora.
Na altura, o jornal ‘A Luta’ escrevia: "inquiriu as testemunhas e, apezar de ter sido apanhada de surpreza, mostrou as suas faculdades de intelligência, fazendo salientar em favor das rés todas as circunstâncias favoráveis à defesa. Ao ser-lhe dada a palavra, d’ella usou durante algum tempo com muito brilhantismo, deixando em todos a impressão de que de futuro, a dedicar-se à carreira da Advocacia, muito há a esperar da sua intelligência”.
A estreia, contudo, surgiu apenas depois de o Supremo Tribunal de Justiça lhe ter dado autorização para advogar. Ainda assim, só em 1918 o Decreto n.º 4676, de 19 de Julho viria a consagrar a abertura plena da Advocacia às mulheres.
Regina Quintanilha nasceu em Santa Maria, Bragança, no dia 9 de maio de 1893. Depois de frequentar o Colégio de Franciscanas e o Liceu, em Bragança, o Colégio de Nossa Senhora da Conceição e o Liceu Rodrigues Ferreira, já no Porto, rumou à universidade.
Estávamos em 1910 quando, com apenas 17 anos, Regina ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O Conselho Universitário teve de reunir propositadamente para deliberar sobre a entrada de uma aluna — rompendo com a norma masculina.
No dia a seguir à entrada, conta-nos hoje a Ordem dos Advogados, Regina Quintanilha foi “recebida por toda a Academia formada em alas com as capas no chão a dar-lhe passagem.”
Regina foi primeira em muita coisa. Ser pioneira granjeou-lhe os títulos de primeira advogada portuguesa, de primeira procuradora judicial, de primeira notária e, até, de primeira conservadora do registo predial.
A organização dos advogados escreve que “até 26 de Abril de 1957, data em que requereu a suspensão da sua inscrição na Ordem dos Advogados, Regina Quintanilha exerceu de forma exemplar a Advocacia em Portugal, Brasil e Estados Unidos da América, sendo autora de diversos trabalhos de natureza jurídica.”
A jurista, que casou com Vicente de Vasconcelos, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e foi mãe de dois filhos, viria a morrer dez anos depois, em Lisboa, no dia 19 de março de 1967.
Na extensa lista de bastonários da Ordem, criada por decreto de 1926, há apenas duas mulheres: Maria de Jesus Serra Lopes, a primeira advogada a ocupar o cargo, em 1990, e Elina Fraga, eleita em 2013.
Mas o caminho de Regina, perdurou. Na década de 1960, quando morreu, havia 1.964 advogados registados em Portugal. Hoje, o país tem mais de 32 mil advogados (segundo números do ministério da Justiça, recolhidos pelo Pordata). Destes, 17.751 são mulheres — os homens advogados não chegam aos 15 mil.
Estes advogados enfrentam um universo de 78.593 arguidos. Sendo que, aqui, a balança inverte-se: eles, são a grande maioria — 64.760 — e elas nem chegam aos 14 mil.
O decreto de Sidónio
Só em julho de 1918 as mulheres portuguesas viram legitimado o acesso a “várias funções públicas” tradicionalmente exercidas por homens, através de um decreto promulgado por Sidónio Pais — que, no entanto, deixava explicito que o voto não lhes seria permitido.
O diploma, datado de 19 de julho de 1918, foi publicado no “Diário do Govêrno” um mês depois de as sufragistas terem voltado a exigir o direito de voto, num documento entregue ao então Presidente da República.
O debate estava na ordem do dia e as mulheres começavam a desempenhar funções tradicionalmente destinadas aos homens, como o caso de Regina Quintanilha. “Às mulheres munidas de uma carta de formatura em Direito é permitido o exercício da profissão de advogados, ajudante de notário e ajudante de conservador”, lê-se no diploma.
“A Regina Quintanilha é importantíssima”, disse à agência Lusa, em 2018, a historiadora Irene Pimentel, recordando que a Constituição de 1911 permitia já às mulheres trabalharem na Função Pública, pelo que o decreto terá vindo reconhecer ou regulamentar uma realidade em curso.
Deixava, no entanto, a ressalva de que cargos dirigentes continuariam destinados aos homens: “Tam só se não deverá perder de vista que, iguais embora em capacidade de inteligência e de trabalho, há contudo, funções de direção e de iniciativa que naturalmente estão reservadas para o homem”.
Era igualmente permitido às mulheres, "em igualdade de habilitações com os homens", desempenhar as funções de ajudantes dos postos e das repartições do registo civil.
Ao mesmo tempo, explicitava-se que a lei portuguesa ainda não acompanhava o direito ao voto, referindo as “tam adiantadas sociedades anglo-saxónias”, onde era já comum “a concessão” desse direito político às mulheres.
“Sem se poder acompanhar ainda em Portugal esse cada dia mais largo reconhecimento da competência e da concorrência feminina, é já porém mester reconhecer o facto da frequência das mulheres nos cursos de instrução secundária e superior e o consequente direito do advento das diplomadas ao exercício das profissões liberais”, determinava o diploma.
A legislação era sobre trabalho, mas o legislador aproveitava para clarificar a questão do voto no mesmo diploma.
Havia já ocorrido o caso de Carolina Beatriz Ângelo, viúva, chefe de família e com a instrução requerida na lei, que conseguiu votar nas eleições para a Assembleia Constituinte, alegando ter todas as condições.
“A Constituição de 1911 não dizia que só os homens é que podiam votar”, refere Irene Pimentel. “Evidentemente que aquilo foi muito complicado, porque houve todo um processo em que o próprio regime disse que ela não podia votar”.
Primeiro, o recenseamento não foi aceite. “Ela colocou o caso em tribunal e apanhou um juiz que era filho de outra feminista, Ana de Castro Osório”, recorda Irene Pimentel, que estudou o caso, juntamente com o de outras mulheres da I República e, depois, do Estado Novo.
A decisão acabaria por ser favorável, uma vez que Beatriz Ângelo era portuguesa e tinha todas as condições para votar, segundo a lei, conforme interpretaria também o juiz.
Seguir-se-ia uma nova lei de voto que destinava o sufrágio político exclusivamente aos homens. “O problema é que isto continua, porque elas podem trabalhar e fazer muitas coisas, mas o voto é que não”, observa a historiadora.
O curto período do sidonismo teve “algumas leis benéficas para as mulheres”, assinala Irene Pimentel, sublinhando a importância do elemento feminino no regime.
“Os ditadores – e o Sidónio foi um ditador – e depois mais tarde Mussolini (a partir de 1922), e, em Portugal, Salazar, contam com as mulheres, quer no lar, quer também para que convençam os maridos no apoio às novas ditaduras”, defende.
O voto apenas viria a tornar-se universal em Portugal após a revolução de 1974. Mas importa salientar que tanto Regina Quintanilha como Carolina Beatriz Ângelo faziam parte de uma elite com capacidade para recorrer a outras instâncias na luta pela emancipação.
A primeira doutorada nos quadros da Faculdade de Direito de Coimbra só chegou em 1995
A primeira doutorada do sexo feminino na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FCUC) só chegou em 1995. Trata-se de Anabela Rodrigues — sim, a ex-ministra —, que prestou provas públicas de doutoramento com uma tese na área do Direito Penal, “um trabalho de investigação com 700 páginas que levou vários anos a preparar”, escrevia então a Lusa.
Com a atribuição do grau a Anabela Rodrigues, Direito perdia o “estatuto” de única entre as sete faculdades de Coimbra apenas com doutorados masculinos.
Anabela Rodrigues seguia, assim, o exemplo de Maria Helena da Rocha Pereira, que em 1964 rompia a tradição sete séculos, tornando-se na primeira mulher a defender provas para catedrática na Universidade de Coimbra, neste caso, na Faculdade de Letras.
Esta Anabela Rodrigues seria pioneira noutra ocasião: em 2014, pela mão do social-democrata Pedro Passos Coelho, tornou-se na primeira mulher a segurar a pasta do ministério da Administração Interna, depois da demissão de Miguel Macedo.
Porém, a primeira mulher a exercer funções docentes na Universidade de Coimbra foi a antiga estudante de Lisboa Carolina Michaelis de Vasconcelos, em 1911, que mais tarde viu reconhecido o seu mérito com a atribuição administrativa do título de catedrática.
A Universidade de Coimbra acolheu pela primeira vez uma mulher entre os seus alunos no ano lectivo de 1891/92. Tratava-se de Domitilia Hormizina de Carvalho, que abandonara Vila da Feira para ingressar no curso de matemática.
Contudo, bastaram apenas 99 anos (1982/83) para as mulheres (6.114) superarem os homens (5.974) entre os alunos no total das sete faculdades.
*Com Lusa
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