“O interesse deste naufrágio que vai fazer 100 anos na quarta-feira tem um interesse simbólico e legal. A partir do dia 26 de julho fica sob a proteção da Convenção da UNESCO sobre Património Cultural Subaquático. Portugal subscreveu a convenção para proteger todos os naufrágios, tenham ou não tesouros a bordo, porque pretende privilegiar o naufrágio como um testemunho”, disse à Lusa Alexandre Monteiro, um dos investigadores que localizou o navio caça-minas à entrada do Tejo, em 2015.

Analisar diários de guerra para encontrar destroços

O caça-minas Roberto Ivens naufragou ao embater, “pelas 15:15” de 26 de julho de 1917, numa mina lançada por um submarino alemão a quatro milhas náuticas a sul do forte do Bugio, "à entrada" de Lisboa.

“Há naufrágios que são praticamente anónimos, com história desconhecida, mas neste caso, temos o caso inverso do que é costume em Portugal, onde os naufrágios são encontrados de uma forma inopinada ou em contexto de obra. Neste caso, partimos de investigação em arquivo e fomos à procura do destroço”, disse o arqueólogo.

A localização do navio foi durante muitas décadas assunto de debate entre investigadores, marinheiros e pescadores, apesar da versão oficial que situava o local do naufrágio a 12 milhas náuticas ao largo de Cascais.

“Chegou a pensar-se que o destroço era de uma traineira (Maria Eduarda), de madeira, que naufragou nos anos 1950 e que na verdade está perto, mas foi só quando nós nos apercebemos de que o que ali estava era um navio de ferro com um motor a vapor é que começamos a duvidar”, recorda Alexandre Monteiro acrescentando que a existência de minas inimigas às portas da capital foram um "assunto sensível" para o poder político.

“Há um logro que o governo de então fez passar para a opinião pública para encobrir a falta de preparação para enfrentar a nova ameaça dos submarinos e das minas”, admite o arqueólogo que participou na investigação.

A posição exata dos destroços do caça-minas ocorreu em 2015 tendo o Instituto Hidrográfico da Marinha colaborado com os trabalhos de investigação do arqueólogo Alexandre Monteiro, do Instituto de Arqueologia e Paleociências e do investigador Paulo Costa, do Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova de Lisboa.

Uma das fontes decisivas para detetar o Roberto Ivens foi a descoberta e a análise do diário de guerra do submarino alemão UC54 que lançou as várias minas a apenas quatro milhas náuticas a sul do forte do Bugio, na foz do rio Tejo.

A versão oficial, logo após a explosão, indicava que o campo de minas alemão estava mais afastado, a cerca de 12 milhas náuticas ao largo de Cascais.

O diário de bordo do Bérrio, o outro navio que participa na mesma operação de desminagem e que recolheu os sete sobreviventes do Roberto Ivens na tarde de 19 de julho de 1917, desapareceu apesar do relato de um dos tripulantes.

“Este naufrágio atirou o navio para o fundo. Parte da popa foi volatizada na explosão e, por isso, é que só temos a casa das máquinas, incluindo a câmara dos oficiais que está no local, além de vários destroços espalhados à volta”, relata Alexandre Monteiro que conhece os destroços do caça minas, atualmente uma sepultura de guerra da Marinha.

“As sepulturas de guerra têm um estatuto especial. Não é por estar no fundo que o Roberto Ivens não deixa de ser uma unidade da Marinha de Guerra Portuguesa”, frisa o arqueólogo,

No passado dia 19 de julho o funeral militar dos tripulantes do Roberto Ivens tombados num ato de guerra - morreram 15 dos 22 tripulantes - realizou-se a bordo da fragata Bartolomeu Dias, na presença de descendentes, com deposição de flores no local do afundamento e disparos de tiros de salva efetuados pela corveta João Roby.

“Foi importante do ponto de vista simbólico porque foi o último grande conflito internacional em que Portugal participou de forma ativa e numa altura em que se assinala o centenário da entrada de Portugal na Grande Guerra (1914-1918)”, frisa Alexandre Monteiro.

O Augusto Castilho foi o outro navio da Marinha portuguesa afundado durante I Guerra Mundial, após um combate com um submarino alemão ao largo dos Açores, em 1918, tendo morrido o comandante, o primeiro-tenente Carvalho Araújo e cinco membros da guarnição.

Neta do comandante do Roberto Ivens diz que Portugal lida mal com tragédias

“Portugal está como estava há cem anos e não lida bem com estas coisas estranhas do ‘inimigo às portas’, como aconteceu com o submarino que pôs bombas à porta de Lisboa. O que quiseram fazer foi não criar pânico. Não deixar saber-se …”, disse Maria Fernanda Gargaté Cascais, neta mais velha do primeiro-tenente Raul Cascais, que comandava o caça-minas que naufragou ao colidir com uma mina alemã.

“A minha mãe tinha seis anos quando o meu avô morreu. O meu avô era muito novo, tinha 36 anos. O corpo nunca foi encontrado e quando faleceu deixou seis filhos: o mais velho teria oito anos e a mais nova tinha poucos meses”, conta a neta mais velha do comandante Raul Cascais.

“A minha mãe lembrava-se do pai e fazia muita questão de dizer o que lhe tinha acontecido. Tinha a farda do meu avô que sempre nos mostrou. Fui criada com a fotografia do meu avô e que esteve sempre presente na sala dos meus pais e com os meus tios sempre a falarem do Roberto Ivens”, recorda Maria Fernanda Cascais.

“Eu tinha uma carta de um dos marinheiros (o então grumete Tiago Gil) e que pedia uma homenagem aos mortos. Ele bateu-se a vida toda, para se fazer isto que se fez agora”, conta Maria Teresa Cascais, referindo-se ao funeral militar organizado pela Marinha no passado dia 19 de julho.

Um século após o afundamento, realizou-se o funeral militar. “Nunca pensei assistir ao funeral do meu avô e dos outros marinheiros. Estou muito grata para com a Marinha e para com os investigadores. A minha mãe morreu há dez anos. Teria sido uma grande uma emoção para ela, como foi para nós”, disse referindo-se ao funeral militar que considera inédito.

“O país ainda não está muito preparado para fazer estas homenagens e há tanta gente que morre ingloriamente”, afirma frisando o “sofrimento” das famílias das vítimas.

“Eu sei o que a minha avó passou e não sei se os portugueses não continuam a passar pelo mesmo. Muito morrem a defender a população, sejam eles bombeiros, polícias, médicos ou militares. Sabemos que as dificuldades que os familiares enfrentam são muito grandes e nisso ainda estamos aquém do que devíamos estar. É o que temos”, conclui.

Um naufrágio que dá origem a uma tese

O investigador Paulo Costa, que participou na localização do navio caça-minas Roberto Ivens prepara uma tese de mestrado sobre o naufrágio provocado por uma mina alemã na barra do Tejo, em 1917, e em plena crise política e social.

“A minha tese de mestrado conclui que o caça-minas Roberto Ivens não está onde se pensava e é contextualizada no ambiente que se vivia em julho de 1917, um mês complicadíssimo para o governo de Afonso Costa, em Lisboa” explica o historiador, um dos responsáveis pela localização exata dos destroços do navio da Marinha Portuguesa durante a Grande Guerra.

O historiador recorda que no mês de julho de 1917 decorrem sessões secretas no Parlamento, “porque havia muitas complicações na gestão de Portugal” e com a oposição a pedir também satisfações ao governo sobre o Corpo Expedicionário Português em França.

No mesmo mês verificam-se “revoltas em Lisboa e há fome”.

No Parlamento há sessões à porta fechada em que participa como membro do Partido Democrático (oposição) o comandante Leote do Rego, da Divisão da Marinha, ocorrendo uma “guerra de tinteiros” e insultos entre os deputados.

No dia 25 de julho de 1917 a oposição abandona o parlamento criticando a falta de diálogo do governo e no dia 26 de julho o caça minas Roberto Ivens afunda-se às portas de Lisboa.

“Foi a pior altura possível. Os jornais da época dizem-nos que Leote do Rego foi imediatamente à Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, receber os sobreviventes. No mesmo dia sai uma nota da Marinha que diz que o afundamento ocorreu ‘a 12 milhas ao sul de Cascais, um pouco ao norte do Cabo Espichel’”, sublinha Paulo Costa.

Na tarde do dia 26 de julho, o Roberto Ivens estava a navegar com o rebocador Bérrio, porque nas operações de desminagem participavam sempre dois navios, mas o diário de bordo não existe.

“Do Bérrio, existem os diários anteriores e os posteriores, mas o diário do dia da explosão da mina alemã não existe. Nunca entrou no arquivo histórico”, sublinha o autor do estudo.

“Eu penso que era muito complicado assumir-se perante o público e a oposição que submarinos alemães tinham entrado no Tejo, até ao Bugio. A informação foi ocultada e se lermos os diários de guerra dos submarinos alemães ficamos a saber que o inimigo navega à superfície e à vista de terra”, diz Paulo Costa acrescentando que o “assunto Roberto Ivens” acaba por cair no esquecimento com o passar do tempo.

“Dificilmente haverá outro episódio que possa ter tantos aspetos diferentes: História da Grande Guerra (1914-1918); História da Primeira República (1910-1926); destroços; património cultural subaquático; arqueologia subaquática; investigação em arquivo; memória, tradição oral da comunidade piscatória. Tudo no mesmo tema. Não sei se nos voltamos a cruzar com uma história desta dimensão”, refere o historiador que defende igualmente o estudo da memória dos factos junto dos descendentes.

“Há muito trabalho a fazer a esse nível: um sobrinho de um dos sargentos com quem já falei várias vezes conta que o tio morreu uma semana antes do casamento. Foi esta a memória que ficou na família: a noiva que ficou viúva antes de se casar. Espero desenvolver os aspetos relacionados com as memórias das famílias”, diz Paulo Costa acrescentando que os investigadores foram convidados pela Marinha a publicar uma monografia sobre o Roberto Ivens, em 2018.