Diário de um pai em casa. Dia 19
A hora mudou, mas no meu relógio de pulso, ainda permanece a antiga. Felizmente não está totalmente parado por falta de pilha, embora o ponteiro dos segundos permaneça nos 25s. Não me importava que as horas e os minutos parassem. Num tempo em que, por vezes, pareço não saber bem a hora certa, saberia, com certeza absoluta, que estaria pontual duas vezes ao dia.
Por falar em certezas, há uma, que tal como a mecânica de um relógio suíço, marca o meu dia-a-dia. A inevitável pergunta do meu filho de 6 anos. “Pai, que dia é hoje”. À resposta “3ª feira” é devolvida com um “obrigado, vou fazer um mortal”. Não fez. Limita-se a fazer o pino no sofá com pés atirados aos quadros. E ali permanece longos minutos a ver televisão.
Isto está a começar a bater. Aproxima-se o fim do prazo, não dos iogurtes comprados na véspera do país fechar (quatro filhos dão cabo de qualquer tentativa de açambarcamento), mas do confinamento que nos foi destinado.
Marcelo Rebelo de Sousa já refreou qualquer sonho que poderíamos ter tido. Já avisou “importa manter a pressão na mola”, depois de escutar o parecer científico de epidemiologistas. Vai tomar a decisão amanhã, quarta-feira. Preparados para mais 14 dias fechados em casa? Eu também não. Mas tem de ser.
Em jeito de balanço, daquilo que foi e será para a frente, não é o teletrabalho que tresmalhou as minhas rotinas.
A minha morada de trabalho é onde o homem quiser. E neste momento é em casa.
Estou habituado a fazê-lo, dividido entre idas à redação, escritório do meu pai, bibliotecas e cafés rodeado de gente a estudar.
Não me perturba o espírito debitar carateres entre quatro paredes enquanto os filhos não chegam da escola ou, neste momento, enquanto não acordam. E aqui reside o busílis da questão. A escola deles tem sido, assim como o recreio ou espaço de tempos livres, em casa (e será?). Desde o passado dia 12 de março. Hoje é 31.
A armadura que tenho vestido está habituada a resistir, em espaços públicos, a tosses de ópera de quem está na biblioteca, a toques de telemóvel que só terminam quando um plural de olhares aponta ao prevaricador, ou mesmo risinhos histéricos de teenagers ou youtubers que acham trendy falar com o mundo a partir da cadeira ao lado.
Continuo, dia após dia, a cumprir rituais de sanidade mental. Acordo cedo, tomo banho, faço a barba de dois em dois dias e visto-me como se fosse para a rua trabalhar.
Hoje, enquanto escuto Miles Davis, “a Kind of Blue” e Marvin Gaye, “What's Going On”, a capacidade de abstração ao barulho que me rodeia começa a diminuir. A tal carapaça começa a ceder.
Apetece-me sair para a rua. Aos berros, de preferência. Mas atenção: se me virem a sair de pijama ... internem-me. Mesmo que esteja de máscara na cara e luvas nas mãos.
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