"Os problemas de saúde mental afetam várias áreas da vida pessoal, familiar e profissional das pessoas. Porém, viver com problemas de saúde mental em Portugal está ainda associado a um forte estigma e discriminação", refere um estudo do CNS, que será hoje divulgado, em Lisboa, no 3.º Fórum do CNS.
Estas pessoas continuam a defrontar-se com “barreiras ao seu pleno reconhecimento como cidadãos”, nota o estudo, propondo que o tratamento adequado, acompanhamento, reabilitação e o apoio social é fundamental para que possam ter uma participação plena na sociedade, no mercado de trabalho e família.
Além do estigma e da discriminação, os doentes mentais também têm dificuldades no acesso a estruturas de apoio social”, alerta o estudo, defendendo que a articulação entre o setor da saúde e o setor social precisa de ser reformulada e adequada ao grande número de doentes e famílias que carecem de apoio.
Para Henrique Barros, ainda existem “aspetos que são chocantes” e que precisam de ser resolvidos na interação entre os cuidados de saúde e os cuidados de natureza social e de reinserção na vida ativa.
“O diálogo entre estes dois prestadores de cuidados, e a qualidade desse diálogo, é provavelmente a chave do sucesso para que a saúde mental encontre as respostas que são necessárias” para que “as pessoas que vivem com os problemas os consigam ultrapassar”, sublinhou.
No seu entender, chegou a hora do Serviço Nacional de Saúde concretizar as soluções preconizadas para combater os problemas nesta área.
“O Serviço Nacional de Saúde tem 40 anos, que é muito pouco tempo na vida de uma instituição, fez o percurso de responder inicialmente a outro tipo de problemas e agora é o tempo de consolidar as preocupações que existem, as soluções que foram desenhadas e, sobretudo, enfrentar os novos problemas que a saúde mental traz, nomeadamente combater toda a estigmatização e a discriminação de que sofrem particularmente as pessoas que vivem com problemas de saúde mental”, defendeu.
Deve também “refazer o sistema de resposta” do ponto de vista preventivo e curativo, mas sobretudo deve “saltar do espaço fechado da saúde” e perceber que a promoção da saúde mental se faz trabalhando com as diferentes áreas da organização social e da governação, como a saúde, a educação, justiça ou o trabalho.
Os autores do estudo do CNS, órgão independente de consulta do Governo, salientam a importância de “reconhecer que a saúde mental e os seus problemas são determinados pelas condições sociais”, sendo mais prevalentes nas pessoas mais pobres e com menor nível de educação, o que implica a adoção de abordagens abrangentes e intersetoriais.
“É fundamental assegurar não apenas os direitos daqueles que vivem com doença mental, incluindo familiares e cuidadores, mas também promover a sua participação na definição das políticas que lhes são dirigidas”, defendem, alertando ainda para a necessidade de regulamentar o Estatuto do Cuidador Informal.
Fazendo uma análise do estudo “Sem Mais Tempo a Perder: Saúde Mental em Portugal – Um Desafio para a Próxima Década”, Henrique Barros disse que “o essencial deste relatório estará entre a frieza de alguns números e de alguma estatística e o calor e a emoção das palavras das pessoas que vivem os problemas e os que cuidam delas tentam resolver”.
O documento divulga vários testemunhos como o um familiar de um doente, de 66 anos, que afirma: “infelizmente as doenças do foro psicológico são o chamado ‘caixote do lixo’ do SNS. Espero que, futuramente, mude”.
Há doentes que continuam internados por falta de cuidados continuados
Outro problema identificado no estudo é a insuficiente resposta de cuidados continuados em saúde mental que obriga um número elevado de doentes a permanecerem internados.
“Apesar do sucesso da reorganização da rede hospitalar em saúde mental, a insuficiente resposta de uma rede de cuidados continuados em saúde mental ainda mantém um número elevado de doentes de longa duração em internamento hospitalar”, pode ler-se no estudo.
Para os autores do estudo, a oferta de cuidados continuados em saúde mental ainda é “muito insuficiente, face às necessidades existentes, e muito assimétrica, sendo urgente expandir o número de lugares de forma a dar resposta aos doentes e às suas famílias”.
A conclusão da reforma da rede hospitalar, com a transferência de respostas de internamento de agudos dos hospitais psiquiátricos para os hospitais gerais, também é defendida no estudo, que será divulgado hoje, em Lisboa, no 3.º Fórum do CNS, um órgão independente de consulta do Governo que visa garantir a participação dos cidadãos na definição das políticas de saúde.
Segundo o documento, a que agência Lusa teve acesso, falta concluir a integração da assistência psiquiátrica nos Serviços de Saúde Mental do Centro Hospitalar do Oeste, Hospital Professor Doutor Fernando da Fonseca, Centro Hospitalar do Médio Ave e Centro Hospitalar Entre o Douro e Vouga.
Quando isto acontecer “será o momento de reorganizar o espaço e os recursos dos três hospitais psiquiátricos de modo a, em articulação com o Ministério da Justiça, acelerar a reorganização das unidades de internamento de inimputáveis”.
O estudo assinala os “passos positivos” dados recentemente com a abertura de novas camas em Lisboa e Porto, mas diz ser urgente requalificar a unidade de Coimbra, e disponibilizar mais lugares para inimputáveis fora dos estabelecimentos prisionais”.
Por outro lado, a prevista criação este ano de equipas comunitárias de saúde de saúde mental em cada região de saúde “não se tornou uma realidade”.
A isto acresce a assimétrica distribuição dos profissionais de saúde mental, o que limita, por exemplo, a constituição de equipas de saúde, sublinha.
Depressão afeta 10% dos portugueses
Em Portugal, as perturbações psiquiátricas têm uma prevalência de 22,9%, colocando o país num “preocupante segundo lugar” entre os países europeus. A depressão afeta 10% dos portugueses e, em 2017, o suicídio foi responsável por 14.628 anos potenciais de vida perdidos.
Adicionalmente, a demência assume uma frequência de 20,8 por cada 1000 habitantes, o que posiciona Portugal em 4.º lugar entre os países da OCDE.
Os psicofármacos representaram em meio hospitalar um consumo de 11,3 milhões de unidades CHNM [correspondem à quantidade unitária de cada medicamento: número de comprimidos, seringas, frascos] nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde em 2018, um aumento de 3,6% em relação a 2017.
A chave para uma melhor saúde mental passa também por um melhor planeamento dos recursos.
O Estado deve planear os recursos humanos em saúde mental para a próxima década, eliminando as assimetrias geográficas e a escassez de profissionais, para que o Serviço Nacional de Saúde possa prestar cuidados de qualidade atempadamente, preconiza o estudo.
“O sistema de saúde ainda precisa de solucionar problemas sérios de acessibilidade e de equidade na prestação de cuidados de saúde mental”, advertindo que o Plano Nacional de Saúde Mental ainda não está plenamente implementado.
Segundo o estudo, há uma distribuição “muito assimétrica” dos recursos humanos, com escassez de pessoal em algumas regiões do país, sobretudo profissionais não-médicos, essenciais à constituição das equipas multidisciplinares em saúde mental.
Os autores assinalam que “se não forem alocados os necessários recursos humanos e financeiros para a concretização da prestação de cuidados de saúde mental na comunidade, esta “pode estar ameaçada”.
Alerta também para as dificuldades de articulação entre os serviços de saúde mental e os cuidados de saúde primários, que dificulta referenciação dos doentes.
Psicólogos e terapeutas, precisam-se
Para os autores do estudo, estes constrangimentos podem estar na base do elevado consumo de psicofármacos em Portugal, uma vez que a grande maioria dos casos de depressão e ansiedade são tratados com medicamentos devido à ausência de terapia psicológica nos centros de saúde.
Em declarações à agência Lusa, o presidente do CNS, Henrique Barros, afirmou que o país partiu de “uma situação em que a doença mental era varrida para um espaço confinado, de esquecimento e de silêncio”, em que “o número de profissionais era extraordinariamente exíguo”.
“Esse foi o caminho que teve de ser feito, mas agora é tempo, naturalmente, de investir mais, de acelerar e de responder às necessidades que forem encontradas”, defendeu.
Para isso, sustentou, é preciso aumentar, por exemplo, a resposta em termos de psicólogos e terapeutas no SNS, para fazer o caminho de “sair de uma medicalização excessiva e manifestamente desadequada, mas que é a resposta mais possível e imediata, para uma resposta mais correta, mas que exige mais relação humana, mais tempo, mais contacto”.
Henrique Barros realçou que o relatório, feito por um conjunto de pessoas com formações profissionais diversas e que traça o retrato da saúde mental em Portugal, “propõe um compromisso para os próximos três anos que leve a concretizar algumas soluções muito eficazes”.
“Sabemos [que estas soluções] não se conseguem com um passo de mágica, conseguem-se com trabalho e com investimento em recursos humanos e recursos materiais”, disse, rematando: “temos de enfrentar essa realidade se não queremos simplesmente limitar-nos a fazer diagnósticos”.
O estudo, que será divulgado hoje no 3.º Fórum do CNS, recomenda a criação de uma estratégia nacional para “a promoção e prevenção em saúde mental” nas escolas, universidades e locais de trabalho, nos setores público e privado, que seja “assegurada a capacidade financeira imprescindível” para garantir o cumprimento das iniciativas e seja "apresentado e implementado o Plano Nacional de Saúde para as Demências".
Perturbações mentais são a principal causa de incapacidade
As perturbações mentais são a principal causa de incapacidade e a terceira causa em termos de carga da doença, sendo responsáveis por cerca de um terço dos anos de vida saudáveis perdidos devido a doenças crónicas não transmissíveis.
Uma estimativa (subestimada) dos custos com a doença mental em Portugal aponta para 3,7% do Produto Interno Bruto, correspondendo a 6,6 mil milhões de euros.
"Apesar da sua importância central no bem-estar dos indivíduos e impacto transversal na sociedade, a saúde mental, e em particular a sua promoção, não tem sido considerada uma prioridade a nível das políticas de saúde e das comunidades", continuando "a existir desafios ainda sem solução nesta área: as transformações demográficas, as desigualdades, as barreiras à reforma dos cuidados de saúde mental, as respostas da comunidade", conclui.
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