"Fui Jarra Eleitoral vezes sem conta. Nas funções que exerci tive momentos discriminatoriamente fabulosos: recordo-me que no meu primeiro dia como Chefe de Gabinete do Sub-Secretário de Estado da Administração Interna (que geria o orçamento interno do MAI) um dos primeiros encontros de corredor que tive foi com uma Alta Patente da GNR, que me apresentou os seus cumprimentos dizendo: ‘espero-a forte para enfrentar as dificuldades num meio paramilitar e de homens, boa sorte que bem precisará’", conta Marta Rebelo, ex-deputada do PS, de 39 anos, agora à frente do projeto Fabulista.
Rebelo lembra-se de ter recorrido à ironia para responder. "Eu, moça conhecida por ser expressiva e irónica, respondi: ‘muito grata pelas boas vindas, lembrar-me-ei bem destas suas gentis palavras nas matérias de descativação orçamental, que tão bem me guiarão’”.
Para a licenciada em direito e mestre em Ciências Jurídico-Económicas a política é a “arte da guerra” e, logo, um “palco masculino”. E, neste cenário, diz, “vigora o mais rigoroso preconceito sobre o caminho trilhado por uma mulher para ‘ascender’ àquele Olimpo: laços familiares, cunhas, uma androginia comportamental que faz dela aos olhos dos colegas machos precisamente um macho, a horizontalidade permanente a que o género feminino parece dedicar-se para chegar ao ‘poder’, a importância local de dada mulher que a torna peão fundamental para ganhar um ato eleitoral, a homenagem a defuntos fazendo eleger a sua viúva, enfim... acho que esgotei o cruzamento entre a minha imaginação e os inúmeros casos que conheço. Isto é altamente discriminatório, carregado de sentido de superioridade de macho alfa”, diz.
“Segue-se, depois, a ‘discriminação educativa’: as quotas”, continua, dizendo que estas “são uma espécie de ferro em brasa que marca de três em três, uma obrigação ‘acessória’”. Além disso, “há ainda uma segmentação temática muitíssimo discriminatória” na distribuição de pastas, algo que, assume, “tem evoluído positivamente e a olhos vistos” em Portugal. “Aqui andámos de fórmula um (F1), porque termos a Ministra da Justiça e uma Ministra na Administração Interna. Era coisa que só esperava ver lá para os meus 50 anos - e acabei de fazer 39!”.
Numa outra situação, naquele que considera ser o “episódio mais ridículo” de que tem memória, recorda o momento em que “se realizavam os Açores as jornadas parlamentares do PS (…) e os deputados socialistas, desde que pagando as despesas de potencial companhia, podiam fazer-se acompanhar. Decidi levar a minha irmã Catarina, mais nova que eu 6 anos, atriz de teatro de formação. Aconteceu que às últimas encontrou trabalho numa peça e não foi. Tudo isto para chegar ao momento em que um deputado já algo embriagado num jantar me diz: ‘ó filha, ficaram todos tramados porque afinal a tua namorada não veio’. Retorqui: ‘namorada?! Era a minha irmã mais nova que viria comigo!’. E ele remata: ‘eu sei, filha, mas estes tipos como nunca te vêm em embrulhos com nenhum deputado acham que tu és lésbica e que trazias a tua namorada”.
“Escolhi estes exemplos entre os muitos em que a minha competência foi questionada (…) sempre sob a máxima ‘és gira, és burra’. Parecem faits-divers, mas experimentem 3 anos disto e venham falar comigo sobre igualdade de géneros e feminismo”, desabafa.
E como reagir nesses momentos? “Nunca dando o flanco”, responde, acrescentando que as mulheres precisam de “usar realmente a voz e não serem apenas eco”. Além disso, ajuda “não serem as mães que educam este homens machistas e estas mulheres desunidas que perpetuam a desigualdade”.
Num outro campo, Maria Teresa Horta, de 79 anos, jornalista de profissão, coautora do livro Novas Cartas Portuguesas - escrito a seis mãos, publicado em 1972, um marco da história contemporânea feminina e literária portuguesa - diz que “há discriminação na vida de uma mulher de cima a baixo. Nem parava mais de falar”, graceja.
Quando chegou pela primeira vez a uma redação, contavam-se pelos dedos de uma mão o número de mulheres que ali estavam. Esta era, para a jornalista, já um primeiro reflexo da desigualdade entre homens e mulheres. No jornal "A Capital", Horta teve o seu primeiro contrato, estávamos em 1969. “Comecei a fazer o suplemento 'Literatura e Arte'. Entrei eu e o meu marido [Luís de Barros], que nunca tinha trabalhado na área e foi diretamente para a redação. Eu fui para um quartinho onde estava o gráfico, que era o Safra da Costa, e eu tinha ali uma secretariazinha onde estava sentada, com a Isabel da Nóbrega, que era cronista. Como éramos mulheres, não podíamos estar na redação. Se isto não é discriminação, não faço ideia do que possa ser!”, conta.
Maria Teresa Horta, feminista assumida, recusou-se a aceitar a situação e questionou o motivo da diferenciação num trabalho que devia ser igual para homens e mulheres. “Decidi perguntar porquê é que não podia estar na redação, porque é que eu tinha de trabalhar lá dentro e ia entregar as coisas à redação. Responderam-me: ‘porque é uma senhora e os jornalistas falam muito mal. E depois, com uma senhora, distraem-se!’”, conta.
“Para já, não era uma mulher, era uma senhora, portanto já isso era uma discriminação, porque não se diz senhor, diz-se homem. Vamos então perguntar o que tem de mal a palavra mulher, que até agora parece que tem um ar negativo! Se o meu marido é um homem, eu sou uma mulher, não sou uma senhora. Na altura, respondi: ‘eu sou uma jornalista!’. Mas continuaram a dizer-me o mesmo. Tive de dizer: ‘eu não quero desmoralizá-lo, mas o meu marido fala muito melhor do que eu. Eu digo muitas asneiras em casa’. Não acreditaram e eu continuei no meu sítio lá dentro”, conta.
Horta recorda, em entrevista ao SAPO24, uma situação constrangedora em foi “convidada pelo Letria para ir à televisão fazer uma entrevista e onde estava um senhor chamado Braga, que canta fado. Fui humilhada pelos dois, o mais possível. Às duas por três, ele disse: ‘as mulheres cosem e fazem essas coisas porque têm o cérebro mais pequeno”. E eu fiz uma pergunta: ‘exatamente como os negros?’. Ele respondeu que sim. A partir dai não disse nem mais uma palavra. Era o Letria a fazer perguntas e eu sem responder. Fui humilhada. Sou feminista, sou mulher! E ele era um jornalista que permitiu uma coisa destas. Fui discriminada no meu trabalho? sim”, conclui.
E hoje, as coisas mudaram?.“Quantas diretoras de publicações temos por aí? E repórteres que vão lá para fora para coisas essenciais? Mulheres repórteres de guerra, não há! Qual é o problema? Morrem? Os homens também. Não vejo motivo para haver discriminação nesta vida, em nada. Detesto discriminações, a minha luta primeira é a da liberdade e, na liberdade, não se admitem discriminações”.
E, por vezes, nem mesmo a mulheres são suas amigas. “As mulheres discriminam-se a si próprias, discriminam as outras mulheres muitas vezes. Mas isso acontece em quase todas as lutas. Nas lutas laborais, por exemplo, há trabalhadores que ficam do lado dos patrões porque acham que vão facilitar-lhes a vida”, exemplifica.
A jornalista e escritora recorda um dia em que participou numa manifestação feminista que acabou com os homens a bater e a tentar violar as mulheres. “Fugimos para casa e só tivemos tempo de fechar a porta. O Adelino Cardoso estava a fazer a reportagem e disse uma coisa muito bonita: ‘hoje, pela primeira vez, eu tenho vergonha de ser homem’".
A obra "Novas Cartas Portuguesas" não estar ausente nesta conversa. O livro - que denunciava o atraso da sociedade portuguesa da altura e, em especial, a situação de profunda discriminação e inferioridade a que a mulher estava sujeita - valeu às escritoras (Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, as Três Marias, como ficaram conhecidas) um processo judicial por "pornografia e ofensas à moral pública". O processo terminou com uma sentença absolutória já depois do 25 de Abril.
“O objetivo era apenas ser uma obra literária que denunciasse a situação das mulheres, mas agora é realmente um marco na luta [feminista], em todo o mundo. Há uma coisa que as pessoas não dizem: não é o Saramago que está mais traduzido lá fora, mas sim as 'Novas Cartas Portuguesas'. Até no Paquistão! É uma obra feita por três mulheres que quiseram contar, no fascismo, aquilo que se passava”.
Olhando para o futuro, Marta Rebelo considera que a mudança é “fatal como o destino”. "Eu, pessoalmente, não gosto nada do banquinho do destino…", assume, mas "a demografia do ensino superior vai acelerar a mudança - na medida em que mais mulheres serão licenciadas, mestres, doutoradas a breve trecho e em maior número do que homens da sua geração. E hoje existem pessoas - mulheres e homens - com uma consciência cívica admirável que agitam bem e mediaticamente as águas, o que tem um enorme valor e impacto”, salienta.
Questionada sobre o projeto Fabulista, Rebelo conta que o projeto nasceu “por adorar escrever” e porque lhe está “na massa do sangue ser protestativa, 'achista', revoltar-se, indignar-se, manifestar-se e nunca preferir o sofá a qualquer coisa que possa fazer para mudar uns míseros centímetros do que vê de mal e de injusto" à sua minha volta.
“Acho que os portugueses são gente de sofá. Não me considero 'corajosa', adjetivo que ouço muitas vezes - considero-me normal. A anomalia está no comodismo. Tenho excesso de conhecimento de causa em demasiadas situações, talvez a ignorância me valesse menos insónias”, comenta. “Agora, não consigo ir a todas. Tento seguir o meu coração e defendo causas que são valores meus, que me estruturam a forma de ver o mundo e de existir: a) defesa dos animais; b) a igualdade e liberdade, seja de géneros, seja de orientação sexual, seja pela cor de pele ou religião - a tolerância é uma coisa muito bonita; c) e - ou não fosse eu tão familiar da indústria - a sustentabilidade e ética da moda; e a Depressão - é uma doença, somos inimigas, faz-me doer e gera preconceitos cretinos”, conclui.
Questionada sobre o que significa ser feminista, Maria Teresa Horta responde que “ser feminista não é não se amar a família, os filhos, as pessoas. Eu tenho uma família maravilhosa e um homem com quem vivo apaixonada há 52 anos, (…) mas paixão, paixão! Eu não consigo compreender como é que consegue estar sem gostar. Esta história de que o amor passa e fica a amizade é mentira mesmo. Não fica. Depois fica a mulher, a escrava, a fazer as coisas todas e ele já nem olha para ela. Acho isso tão triste, isso nunca seria a minha vida. Essa coisa da amizade é muito bonita, mas eu não me caso por amizade, não é? Não ando a passar calças por amizade aos meus amigos, não trato deles quando estão doentes - que os homens são difíceis e chatos”, brinca. “Ia agora passar a minha vida toda com um homem por quem não estivesse apaixonada? Continuo a escrever poesia de amor para ele todos os dias!”, confidencia.
Casada desde 1964 com o jornalista Luís de Barros. Maria Teresa Horta tem um filho, Luís Jorge Horta Barros, casado com Maria Antónia Peças Pereira, e dois netos, o Bernardo e o Tiago.
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