Na apresentação do relatório, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica leu em voz alta alguns excertos de testemunhos de vítimas, através de sete relatos que marcaram pela "linguagem intensa" e detalhes extremamente gráficos de natureza sexual.

"A divulgação pública de relatos das vítimas foi muito bem ponderada pela Comissão Independente (CI)", começa por dizer o psiquiatra Daniel Sampaio ao SAPO24. "Desde o início do nosso trabalho, e de acordo com o nosso lema Dar voz ao silêncio, pretendemos ouvir as vítimas de abuso sexual na Igreja Católica portuguesa. Para isso construímos um questionário online e uma linha telefónica, disponíveis para quem quisesse testemunhar o seu abuso. Assim se obtiveram centenas de testemunhos no inquérito, para além da escuta das vítimas que o quiseram fazer presencialmente, mas a quem nunca foi pedida a identificação", explica.

"As pessoas e o seu sofrimento são muito mais do que os números"

"Poderíamos ter optado apenas pela divulgação dos números, o que só por si seria muito impressionante. No entanto, as pessoas e o seu sofrimento são muito mais do que os números, são seres humanos com as suas recordações traumáticas", aponta o psiquiatra que integrou a Comissão. "Ao divulgarmos fragmentos dessas memórias, estamos a possibilitar a todos os que nos leram ou ouviram, a escuta da voz e da revolta das vítimas. Sei que esses relatos tão marcantes inquietaram todos, mas surpreenderam sobretudo os setores mais conservadores da Igreja, que se apressaram a criticar a nossa opção. Verdade tão dura custa muito a ouvir, mas não pode continuar a ser escondida", salienta.

Como reagiram as vítimas?

Num artigo de opinião publicado no SAPO24, Ângelo Fernandes, fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual —, explicava que "as notícias têm um impacto no bem-estar psicológico e emocional das vítimas deste tipo de violência sexual, impacto esse que por vezes é ignorado".

"Mesmo quando as vítimas decidiam não ler ou ver mais notícias", o tema era "inescapável", pelo que, em alguns casos, "os homens sobreviventes viram a intensificação de algumas das consequências geradas pelo trauma do abuso sexual".

Em comunicado, a associação disse ainda ter registado nos últimos dias "um aumento dos pedidos de apoio relacionados com os casos de abuso sexual no contexto da Igreja. "São homens que foram vítimas de violência sexual na infância e que não conseguem ter um momento de paz, pois são constantemente confrontados com notícias de abuso sexual. Para estas vítimas é um constante reviver das suas próprias histórias", refere o fundador.

Todavia, reconhece, encontrar o ponto de equilíbrio entre informar o público sobre este tema — algo "fundamental" —  e a preservação do bem-estar das vítimas "não é fácil".

Observa-se uma acentuação nas consequências provocadas pela violência sexual"

Também Marisa Fernandes, Psicóloga e Técnica de Apoio à Vítima na UMAR, o Centro de Atendimento para Mulheres Vítimas de Violência Sexual, conta ao SAPO24 que as vítimas de abuso que acompanham receberam o relatório e consequentes notícias com alguma apreensão, mesmo não tendo sido abusadas por elementos da Igreja.

Assim, diz, há um "aumento da ansiedade, dificuldades em dormir, preocupação com os/as seus/suas filhos/as e outros/as familiares menores de idade", já que surge o "receio que também possam ser abusados/as sexualmente".

Por outro lado, verifica-se ainda uma "sensação de sufoco, porque a notícia surge em diferentes meios de comunicação, e uma grande dificuldade em parar de consultar as notícias relacionadas com o relatório apresentado".

"Ou seja, observa-se uma acentuação nas consequências provocadas pela violência sexual e, por isso, é tão importante haver um reforço na divulgação dos diferentes contactos de apoio a vítimas de violência sexual de forma a que os/as sobreviventes não se sintam sozinhos/as e recebam o apoio necessário", explica.

Contudo, Daniel Sampaio aponta que a Comissão — que cessou funções após a apresentação do relatório — recebeu "dezenas de mensagens de apoio, quer para o endereço eletrónico da CI, quer para os telefones privados de membros da CI".

"Posso afirmar que o impacto do relatório foi muito positivo. Por parte das vítimas, comunicaram-nos apreço pelo nosso trabalho, agradecimento por terem sido ouvidas com respeito (muitas vezes pela primeira vez) e, sobretudo, desejo que a Igreja tome medidas com base nas nossas propostas", diz.

"A repercussão [do relatório] sobre as vítimas foi positiva"

Desta forma, garante que não houve "qualquer notícia de problemas preocupantes nas vítimas [ouvidas pela Comissão]", pelo que "não houve uma única vítima que criticasse" a opção de divulgar testemunhos em anonimato.

"Tive o cuidado de alertar, no momento da apresentação do relatório, para a possibilidade de aparecerem manifestações de ansiedade a partir desse momento. Mantenho agora a recomendação que fiz na altura: as pessoas em seguimento psicológico ou psiquiátrico devem contactar o técnico de Saúde Mental respetivo; aqueles que não estão em seguimento e que experienciem sintomas graves de ansiedade ou depressão devem recorrer a uma urgência de Psiquiatria", alerta Daniel Sampaio, salientando que, "sem margem para dúvidas", a "repercussão sobre as vítimas foi positiva", já que, "pela primeira vez, em muitos casos, foram ouvidas e validadas".

Vantagens ou riscos?

Renata Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses, diz ao SAPO24 que "a divulgação de detalhes para a opinião pública pode ter riscos", mas que também traz aspectos positivos.

"A apresentação dos testemunhos e esta leitura na primeira pessoa pode trazer vantagens para outras vítimas que tenham passado pelas mesmas experiências de abuso sexual, já que pode ajudar no processo de identificação com aquela situação de vitimação e facilitar o reconhecimento de que elas próprias também foram sujeitas a estas experiências nocivas e, no fundo, ajudá-las a compreender o impacto dessas experiências", começa por afirmar.

"É como ver uma cena de violência num filme, para algumas pessoas pode ser bastante perturbador e desorganizador"

"Ainda assim, pode ter um impacto negativo nas pessoas mais sensíveis e que tenham alguma vulnerabilidade a estas matérias do abuso sexual, que podem eventualmente nem ter sido vítimas ou sujeitas a este tipo de experiências, mas que podem viver isto com alguma intensidade", evidencia, frisando que nestes casos pode ser desenvolvido "algum nível de perturbação ou de fixação neste tema que seja comprometedor da funcionalidade e do bem-estar e saúde psicológica".

"É como ver uma cena de violência num filme, para algumas pessoas pode ser bastante perturbador e desorganizador. Depende deste limiar de sensibilidade, cada um de nós terá o seu, e de vulnerabilidades específicas que podem desencadear uma série de problemas futuros. É preciso ter sempre algum cuidado com estas matérias", acrescenta a psicóloga.

Todavia, a Ordem dos Psicólogos admite que, através de uma recolha de dados empírica junto dos seus membros, "muitas vítimas sentiram algum apoio por parte da sociedade e das fontes de apoio e vieram denunciar situações parecidas".

"O que está recomendado é que não se devem expor muitos detalhes e acentuar pormenores das experiências"

"Isso é um aspecto positivo, já que deixam de estar sujeitas a um silêncio que pode ser ainda mais perturbador e traumático", ressalva, destacando que os pedidos de apoio partiram tanto de pessoas que "nunca tinham falado" como daquelas que "já teriam a situação um bocadinho mais controlada e que agora vieram reativar algumas memórias traumáticas".

No fundo, este caso remete para a forma como habitualmente se fala de suicídio. "Está recomendado que não se descrevam os contextos nem o método utilizado, porque sabemos que por efeito de modelagem tendem depois a aumentar. Quando há uma figura pública que se suicida e é percebido o método, naqueles dias seguintes há muitos suicídios similares porque há esse fenómeno de imitação. Aqui com este questão não há tanto o aspecto de imitação, mas o impacto que pode ter na saúde mental das pessoas que possam estar mais vulneráveis", exemplifica.

A psicóloga aponta, assim, que "talvez pudesse ser transmitida a informação [sobre os abusos sexuais] com outro tipo de recato". "O que está recomendado é que não se devem expor muitos detalhes e acentuar pormenores das experiências, porque por norma é bastante perturbador para muitas pessoas", diz, realçando que o procedimento que a Comissão seguiu na apresentação do relatório "não é tão frequente" em situações públicas.

"O que acontece neste tipo de contextos é uma divulgação deste tipo de conteúdos em ambientes e em contextos mais restritos, nomeadamente contextos de investigação, de supervisão clínica ou de supervisão na área da psicologia da justiça e com os próprios tribunais", refere.

Assim, "a questão da prova testemunhal é fundamental nestes processos. Muitas vezes não há evidência física e vestígios físicos e é o relato da vítima que vai sustentar a acusação e eventual acusação dos agressores. Portanto, o tipo de detalhe que é fornecido é muito importante porque enriquece e sustenta a prova, ajuda a consolidar essa experiência para a tomada de decisão" na justiça, remata.

"Nada se consegue mudar sem intensidade e persistência"

Questionado se seria uma opção apresentar os casos no relatório, mas sem haver esta exposição mediática que aconteceu com a apresentação dos testemunhos em voz alta, o psiquiatra Daniel Sampaio admite que "seria uma opção", mas que não foi seguida e explica o porquê.

"Ninguém vai esquecer aquelas vidas de sofrimento, nem poderá continuar a dizer que o problema não existe"

"Os relatos foram impressionantes, mas nós quisemos alertar a Igreja e, de alguma forma, o país. O abuso sexual de crianças é terrível, mas não é raro. Os testemunhos lidos causaram grande impacto, mas nada se consegue mudar sem intensidade e persistência. Ninguém vai esquecer aquelas vidas de sofrimento, nem poderá continuar a dizer que o problema não existe", justifica.

E quais os próximos passos? O psiquiatra acredita que "a Igreja deve começar desde já a trabalhar, articulando-se com o Serviço Nacional de Saúde para conseguir consultas rápidas de Psiquiatria e Psicologia de apoio às vítimas; rever toda a formação dos candidatos a padres, sobretudo no que diz respeito à área da sexualidade; e iniciar o seu trabalho junto dos alegados abusadores, visto que cada diocese já foi alertada para a sua existência, sobretudo a partir do trabalho dos historiadores junto de cada bispado. A Igreja, se de facto quer mudar, não pode perder mais tempo".

Também a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses defende que agora o caminho passa por "ajudar estas pessoas a reelaborar estas experiências, a integrá-las na sua história de vida", mas afirma que, até ao momento, não houve nenhum pedido por parte das dioceses para a criação das bolsas de psicólogos que têm sido anunciadas pela Igreja. "Não temos conhecimento de nenhuma articulação connosco a esse nível. Temos ouvido falar disso, mas nós, Ordem, não estamos envolvidos nesse processo", frisa.

"Defendemos que as vítimas, independentemente da idade e da circunstância, possam ter algum tipo de apoio especializado"

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

Todavia, o importante "é proporcionar o apoio possível a estas pessoas. O que nós defendemos é que as vítimas, independentemente da idade e da circunstância, possam ter algum tipo de apoio especializado, porque também sabemos que se isso não for abordado com a celeridade e a rapidez certa traz depois outras consequências ao longo da vida", adianta.

Nesse sentido, também a psicóloga Marisa Fernandes, da UMAR, defende que é necessário que "este relatório tenha um impacto, não só ao nível de alertar a sociedade para a problemática da violência sexual, mas também a nível jurídico".

"Atualmente, os crimes sexuais praticados contra crianças têm um prazo de prescrição, ou seja, quando a vítima é maior de idade, esta tem apenas cinco anos para poder apresentar uma queixa, isto é, têm até aos 23 de anos para o poder fazer. Nós, enquanto entidade, consideramos que não deveria haver um limite legal para denunciar crimes sexuais contra menores, pois o que a experiência e os dados nos indicam é que as vítimas abusadas na infância demoram mais de 20 anos a procurar ajuda por diversos motivos, tais como medo de ninguém acreditar, medo da reação das pessoas, vergonha, evitamento, negação, desconhecimento das estruturas de apoio e até mesmo as consequências que advêm do abuso dificultam a partilha", aponta.

"O abuso sexual contra menores acontece também noutros contextos além da Igreja"

Por outro lado, diz, "é importante reforçar que o abuso sexual contra menores acontece também noutros contextos além da Igreja, nomeadamente no contexto familiar, mas também em contextos educativos e de lazer, por exemplo, no desporto". "É importante investirmos na prevenção primária e deixarmos de invisibilizar a violência sexual", conclui.