“Os excessos, o controlo absoluto que o governo assumiu sobre a minha vida fizeram-me compreender: a política é importante”, explicou Chen, natural da província de Sichuan e dona de várias lojas de confeção de vestidos por medida, à agência Lusa.

“A confiança perdeu-se”, acrescentou a empresária, que está prestes a emigrar para a Austrália, depois de, no ano passado, ter estado vários meses impedida de sair do prédio onde vive e registado fortes perdas, devido ao encerramento das suas lojas.

Volvido um ano, todas as referências à estratégia ‘zero covid’, inicialmente usada como fonte de legitimidade pelo Partido Comunista Chinês (PCC), desapareceram da imprensa ou redes sociais do país, após um desmantelamento forçado pelo descontentamento popular e que resultou numa crise de saúde pública, cujo número de mortos foi ocultado.

No final, o PCC defendeu que a forma como lidou com a pandemia criou um “milagre na história da humanidade” e que os seus esforços levaram a China a uma “vitória decisiva” sobre o vírus.

As autoridades procuraram enquadrar o abandono da política como uma medida cuidadosamente trabalhada para proteger a saúde dos seus cidadãos, mas o termo ‘zero covid’ ou imagens referentes às medidas de prevenção epidémica desapareceram da imprensa estatal ou redes sociais.

“O Partido Comunista está a apostar no facto de que, se apenas enfatizar as evidências positivas, de alguma forma, após vários anos, as pessoas terão esquecido tudo isto”, disse Willy Lam, um analista da política chinesa.

Alguns objetos físicos remetem para aquela Era: um contentor abandonado numa esquina, onde outrora milhares de pessoas acorriam diariamente para fazer o teste PCR obrigatório; ou frascos de gel desinfetante à entrada dos estabelecimentos.

Os efeitos da política persistem também nos dados económicos, incluindo a taxa recorde de desemprego jovem ou fraco nível de consumo, apontados por analistas como um reflexo da perda de confiança entre investidores e as famílias.

“Muitos dos dados [económicos] de 2023 estão relacionados com a estratégia ‘zero covid’”, observou Dali Yang, especialista em política chinesa da Universidade de Chicago. “A política de ‘zero casos’ ficou para trás, mas o seu efeito na economia perdura”.

Uma das características da estratégia de Pequim era a de que tudo parecia tornar-se irrelevante em prol do combate ao vírus, incluindo normas legais, circulação de pessoas, metas económicas ou saúde mental.

Isto resultou em bloqueios altamente restritivos de cidades inteiras marcados pela escassez de alimentos, violência ou isolamento de casos positivos em condições degradantes.

“Foi traumático”, observou à Lusa uma sul-coreana radicada em Pequim. “Quando sabes que a qualquer momento podes ser trancada em casa por tempo indeterminado ou arrastada para um local desconhecido perdes qualquer sensação de segurança”, descreveu.

A sucessão de tragédias e casos de abuso da autoridade acabaram por resultar em protestos que se alastraram por várias cidades chinesas no final de 2022, após um incêndio mortal, num prédio na cidade de Urumqi, no noroeste da China.

Imagens difundidas nas redes sociais mostraram que o camião dos bombeiros não conseguiu entrar inicialmente no bairro, já que o portão de acesso estava trancado, e que os moradores também não conseguiram escapar do prédio, cuja porta estava bloqueada, em resultado das medidas de prevenção epidémica.

“Sinto que Xangai nunca mais foi a mesma após o bloqueio”, observou à Lusa uma residente local, referindo-se ao isolamento de dois meses da mais cosmopolita e próspera cidade da China.

Inko, professora de francês numa universidade de Pequim que passou nove meses retida no ‘campus’, demorou algum tempo a perceber as consequências de ter sido “condicionada”.

“Quando estou a tentar sair de um espaço e dou com uma porta trancada começo a sentir ansiedade”, disse.