No dia 2 de novembro, em São Paulo, na galeria de arte Rabieh, situada numa das regiões mais elegantes e caras da cidade, foi inaugurada uma exposição que chamou a atenção de muita gente. Idealizada por Alexandra Loras, ex-consulesa de França, a mostra batizada Porquoi pas? (Por que não?), tinha tudo para ser um espaço de reflexão sobre o preconceito.
De que tratava? Artistas, personalidades políticas e empresariais brasileiras, todos brancos bem-sucedidos, surgiam retratados em imagens com tratamento digital. Até aí, sem novidade. Mas o detalhe é que foram transformados em pretos de cabelos crespos - num tipo de intervenção de gosto duvidoso, mas com um propósito claro e, em certa medida, até ingénuo.
Alexandra Loras queria questionar se aquelas personalidades públicas teriam chegado ao topo das suas carreiras se não fossem brancas. A mensagem podia ser clara, mais isso não significa que tenha alcançado os objetivos a que se propôs. O desconforto que a promotora esperava gerar no universo dos brancos e ricos – que é habitualmente o mundo onde se movimenta e onde é alvo de atos de preconceito – foi menor do que a revolta de negros contra a exposição.
“Estou a desabafar com você. Sinto-me dentro de um táxi a falar com o motorista tudo o que não devia.”
Após as repercussões negativas à exposição protagonizadas por alguns nomes da comunidade negra com projeção nas redes sociais, Alexandra viajou para o Dubai onde ia participar de uma conferência no âmbito do projeto ONU Mulheres. Por uns dias esteve longe das críticas e das vozes que a apelidaram de racista. Horas depois de desembarcar de volta ao Brasil, recebeu o SAPO24 para uma conversa exclusiva: “Estou a desabafar com você. Sinto-me dentro de um táxi a falar com o motorista tudo o que não devia.”
Para situar a conversa, vamos primeiro apresentar a protagonista da polémica. Tem 40 anos de idade, é jornalista, foi apresentadora da televisão francesa TV1, é escritora e participa regularmente em eventos como oradora. “Fiquei realmente afetada psicologicamente com o que aconteceu. E ainda estou. Foi um choque perceber que um dos maiores inimigos do negro no Brasil é ele mesmo”.
A história de Alexandra no Brasil e as motivações que encontrou para promover a exposição Porquoi pas? são apresentadas por ela própria. “Quando cheguei ao Brasil com o meu marido, em missão diplomática, não esperava encontrar tão poucos atores negros nas telenovelas, empresários negros, jornalistas negros, executivos negros. Eu esperava uma sociedade mais equilibrada nesse aspecto”, explica em bom português, adoçado por um sotaque francês. “Algumas lideranças negras no Brasil parecem um adolescente rebelde. Questionam, criticam e sempre tentam desconstruir uma imagem sem querer entender nada.”
Alexandra já visitou mais de 50 países e viveu em oito deles. Chegou ao Brasil sendo uma negra rica, inteligente, mulher de um cônsul e... estrangeira. Qualidades que, não necessariamente nessa ordem, lhe garantiram livre acesso ao tal mundo onde se espantou por ver menos negros do que esperaria num país com tanta diversidade racial. Além desse espanto, ela própria foi alvo de vários episódios de discriminação racial e preconceito, segundo conta.
Na sua casa, por exemplo, quando o marido era cônsul. Organizavam regularmente eventos sociais registados em alguns programas de televisão. “Muitas vezes aconteceu estarmos, o meu marido e eu, a receber os convidados quando mulheres me entregavam a mala e o casaco, a pensar que eu estava ali para os guardar. O meu prazer era, momentos depois, abrir a receção com um breve discurso a olhar nos olhos dessas mulheres que não sabiam o que fazer.”
Outro episódio aconteceu quando foi com o filho, um rapaz loiro, a um dos clubes mais elitistas da cidade. Ao chegar notou que tinha deixado a sua identificação de sócia em casa. “Eu estava apenas com a do meu filho. A receção do clube não encontrava meu nome nos registos e impedia a minha entrada, até que percebi o motivo: estavam a fazer busca na lista das babás [amas].”
Alexandra cresceu no meio do preconceito dentro da sua própria família. O casamento dos seus pais, uma francesa branca com um negro do Gâmbia, foi reprovado pelos avós maternos. “Cresci a ouvir e a ver atos de preconceito que sempre desaprovei. Mas aprendi que é possível amar pessoas que dizem coisas com as quais eu discordo frontalmente. Eu tinha duas alternativas: concentrar a energia desse atrito para sentir raiva ou usá-la como fonte transformadora. Optei pela transformação, sem perder a ternura. Entendo que é possível amar seres humanos que têm limitações intelectuais para perceber o que a ciência diz: que somos só uma raça.”
No seu papel enquanto consulesa percebeu que o título lhe oferecia uma montra que dificilmente teria noutros países: “Fui inferiorizada toda a vida em França. Até para solicitar um documento em órgãos públicos cheguei a passar por situações difíceis no meu país. O Brasil deu-me uma voz que tem ressonância e pode fazer alguma diferença.” O que explica, afirma, que, na altura em que seria mais recomendável sair do Brasil rumo aos EUA ou Canadá, onde Damien Loras, o marido, seria embaixador, tenham optado por ficar. “Ficámos para que eu pudesse levar adiante isto que assumi como missão de vida. E contei com o apoio do meu marido que abriu mão de sua carreira diplomática em respeito ao meu projeto”.
Segundo os argumentos dos ativistas que a contestam, as imagens da exposição de Alexandra remetem aos tempos da blackface – quando, nos Estados Unidos, atores brancos pintavam o rosto para interpretar pretos de forma estereotipada: carregavam nas formas dos lábios, na maneira de andar e de falar. “Eu nunca poderia imaginar que sofreria as agressões que sofri, vindas de negros. Negros como eu.”
Após a primeira vaga de críticas, Alexandra mudou um pouco a sua maneira de lidar com a diplomacia e subiu o tom: “Foram injustos comigo. Chegaram a dizer que sou racista. Há preconceito por eu ser de outro país, ter um marido branco e não viver na favela, ou nas condições de vulnerabilidade pelas quais luto por mudanças. Poderia citar mais de 15 artistas no mundo que já fizeram essa provocação, um deles é Tibor Kalman, e ninguém reagiu assim.” (Kalman, húngaro radicado nos EUA, foi editor de arte da Barnes & Noble, diretor de criatividade da revista Interview e editor chefe da revista Colors, além de fundar uma agência de criatividade em Nova Iorque.)
“É muita ingenuidade achar que o facto de eu ser francesa faz com que sofra menos racismo, ou que por ser casada com um branco não tenha legitimidade para abordar o tema. Eu poderia ter optado por falar no Brasil sobre Chanel, vinhos ou champagne. Abordaria a montra da excelência francesa. Sendo uma consulesa, teria grande espaço nos media. Mas apenas eu lucraria com isso e não acho que seja apropriado, já que posso abraçar uma causa que é muito maior do que o meu ego". E continua o desabafo: "O mais curioso é que os críticos não falam comigo diretamente, mandam recados. Instigam os seus seguidores nas redes sociais para que falem as bobagens. Nós, negros, somos desunidos. Um militante quer ter mais protagonismo que o outro, há muita vaidade.”
"Na televisão a mãe é loira, até no videojogo a mãe é loira, mas o bandido que passa no telejornal é negro"
Para Alexandra, há uma narrativa de um sistema extremamente racista a penetrar nas mentes das pessoas. “É uma sociedade sectária, até o meu filho, de cinco anos de idade, já disse que gostaria que eu fosse loira. Talvez, na sua visão infantil, para que eu seja mais aceite socialmente. Somos bombardeados no Brasil com a narrativa da inferiorização do negro. O sistema é muito racista e maior do que eu. Na televisão a mãe é loira, até no videojogo a mãe é loira, mas o bandido que passa no telejornal é negro".
No Brasil, ter mulheres com exposição à frente de alguns movimentos é uma luta quotidiana. “Algumas lideranças negras no Brasil impõem a cultura do Capitão do Mato. [Os capitães-do-mato eram na sua maioria homens libertos da escravidão e pobres. Caçavam escravos fugitivos. Dessa forma, assumiam uma posição de liderança e prestígio numa função que dependia da existência da escravidão]. Deixar que mulheres negras assumam espaço importante na luta racial é muito difícil para eles. Nós, mulheres atacadas nas redes sociais, como Taís Araújo, a ministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois, a deputada federal Tia Eron e eu, basicamente, sofremos por não vivermos na favela. Para eles só assim é que se sente o que é ser negro. Isso é triste. Nós sofremos racismo na elite brasileira monocromática, onde há uma supremacia branca. Ele é muito maior do que na favela, por exemplo, onde há solidariedade entre os moradores.”
“Cada iniciativa que tento levar adiante no Brasil é sempre criticada de maneira veemente, e sempre pelas mesmas pessoas. Em 2016, convidei a tetraneta da princesa Isabel a vestir-se de empregada doméstica servindo cinco negras para uma foto na Vogue, e as mesmas pessoas que hoje criticam a exposição, atacaram-me. E nem querem saber se aquela campanha resultou. E sim, resultou! Após essa iniciativa, das últimas sete capas da revista Vogue, quatro foram com mulheres negras. Historicamente, nenhuma edição da Vogue no mundo, nem mesmo na África do Sul, saiu com quatro capas de mulheres negras de seguida.”
Alexandra lançou a App “Protagonizo”, que aproxima profissionais da comunidade afrodescendente, de cargos abertos em empresas. “Quantos empregos esses críticos oferecem à comunidade negra? Sabemos que a única maneira de reequilibrar a diversidade é fazer com que o negro seja protagonista em diversos setores. Através da minha plataforma digital, apenas neste mês, 58 negros foram contratados para cargos executivos. Estão incomodados comigo? Temos 112 milhões de negros no Brasil, há espaço para várias consultorias. Vamos lá, atuem. Ajudem!”
Contratada para palestras sobre diversidade racial e promoção da igualdade de género, recebe críticas por cobrar essas participações. “Se eu não cobrasse também criticariam. Eu preciso pagar as minhas contas, tenho um filho, tenho projetos. Não vejo erro algum em cobrar pelas minhas palestras. Mas esse é o basal de comportamento dessas pessoas. Se puderem destruir aquilo que não lhes agrada, vão tentar destruir.”
"O Brasil é um país rico, mas 80% da população concentra-se em famílias com rendimento inferior a mil dólares. Por família! Como podemos ver, o problema não se resume a uma exposição, e talvez essa repercussão toda mostre como é pequena e egoísta a percepção desse drama”.
Alexandra Loras pretende conhecer Portugal e apresentar ao país os seus projetos, ideias e alimentar o debate. Quando pretende ir? “Assim que for convidada!” E Alexandra vai avisando: “Sou negra. Quer discordar de mim? Discorde. Debata comigo. Mas lembre-se, eu exijo que me respeite.”
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