Quando se apresenta, muitas vezes diz: “Sou o Célio Dias, 25 anos, negro, homossexual e tenho doença mental”. É o seu lado de sensibilização pública, que toma como missão. À lista podemos acrescentar: judoca, modelo, blogger, estudante de psicologia. Mais: foi adotado e cresceu num bairro social no Monte da Caparica.
Uma lista de características que o definem, mas, muito mais do que isso, que fazem dele um rapaz sorridente - até ao telefone o sorriso se “ouve” -, resiliente - como as pérolas que surgem dos grãos de areia, explica-nos -, e lutador - no tapete e fora dele.
A resiliência dá-lhe “largueza de alma”, num corpo com 1,88 m e 105 kg. Não consegue baixar o peso por causa da medicação que toma para a esquizofrenia paranoide que lhe foi diagnosticada. Por isso decidiu começar a competir nos +100 kg. Tem agora de ganhar 40 kg de massa muscular.
Está a voltar às competições devagarinho desde que teve o primeiro surto psicótico em 2016, quando perdeu nos primeiros minutos da sua participação nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Voltar a competir não lhe dá medo e quer muito fazê-lo. Mas querer neste caso não chega: primeiro precisa de saber se a medicação que toma é considerada doping - está a aguardar resposta.
Se for, ainda não tomou uma decisão, mas assume que “em primeiro lugar está a saúde”. Foi, de resto, a resposta que nos deu quando lhe perguntámos porque é que não tinha participado no campeonato nacional deste fim de semana, como tinha planeado. As mudanças de clima provocaram alguns desequilíbrios ao nível do humor e, por isso, decidiu não se “submeter ao stress” que a competição lhe traria.
A esquizofrenia, quando não controlada, leva-o a perder o contacto com a realidade e a ter um discurso e um comportamento desorganizados. Já as vozes que ouve, próprias também desta perturbação, são constantes. Há apenas duas circunstâncias em que não as ouve e falou-nos disso durante a entrevista.
Na vida tem duas referências principais: a família, em particular a mãe, e a Telma Monteiro. “Essas duas entidades foram capazes de me transformar na pessoa que eu sou hoje”.
Duas figuras que se juntam a toda uma “estrutura fenomenal” que tem à volta e de que fazem parte a psiquiatra e a psicóloga - esta última acompanha-o desde 2013, quando Célio, mesmo antes de ter descoberto que tinha uma doença mental, decidiu que queria acompanhamento para aprender a gerir as questões psicológicas associadas à alta competição.
A escrita é outra fonte de saúde para o judoca, que assina um blogue usando o nome do seu alterego, Carter B. Rey - Carter, porque Beyoncé Knowles-Carter é uma das suas cantoras favoritas; B. de Basílio, o apelido de família; e Rey, pelo Del Rey, um carro de que gosta. “Carter B. Rey permite-me ser tudo aquilo que não sou e tudo aquilo que sou. É também através dele que me inspiro nas minhas raízes, nos meus antepassados, da escravatura, e ganho força. Lembro-me sempre dos negros escravos, não num sentido de vitimização, mas porque eles queriam que nós, negros, nos fizéssemos sobressair pela nossa força e pela nossa coragem de falar a verdade”, revelou-nos.
É a verdade da sua história de vida que o vai levar a falar sobre a quebra de estereótipos, na quinta-feira, no encontro “O homem promotor da igualdade”, organizado pela Quebrar o Silêncio.
A entrevista ao SAPO24 começou na história de quando Célio foi à Suíça em setembro deste ano para competir pela primeira vez desde 2017. Uma história em que tudo correu mal até que três cliques o fizeram chegar à vitória.
Resumindo o episódio que descreves numa publicação do Facebook: a viagem de avião não correu bem, à chegada foste detido na alfândega, passaste a noite sem dormir. Antes de entrares para a competição estavas a ter uma crise. E depois… foste, competiste e correu bem. O que é que se passou?
Foi uma viagem muito engraçada. Quando aceitei o desafio de ir para a Suíça, estava super receoso. Porque sabia que ia ser desafiante. Nos momentos em que estou mais concentrado é quando ouço as vozes. E são vozes desestruturantes. São vozes que dizem que é para matar as pessoas, para lhes fazer mal. Por exemplo, estou contigo e estou a ouvir vozes.
Neste momento?
Sim, sim. Quando nos encontrámos, a voz disse: "Puxa os cabelos à Margarida”. Vou na rua e ouço uma voz: "Porque é que não matas aquela pessoa?”. É sempre desconcertante. Porque eu não me identifico como uma pessoa violenta, mas a verdade é que uma parte de mim me proporciona este estado de espírito.
Como é que isso acontece na tua cabeça?
É um pensamento interno, mas eu ouço como se fosse uma pessoa externa a falar. Não é um pensamento meu.
Como é que distingues o que é teu e o que é externo?
Penso que é a minha cadeia de valores que me ajuda a distinguir. Tive uma educação de berço excecional. Os meus pais vão fazer 50 anos de casados no próximo ano. E sempre me transmitiram os valores de Bem, de moral, de ética. Estas vozes nada têm que ver com os valores que a minha família me transmitiu. É através disso que faço esta distinção. E nunca faço mal a ninguém. Nunca aconteceu. É sempre aqui [aponta para a cabeça].
Isto porque me ias contar como tinha sido a ida à Suíça.
Eu sabia que ia ser um desafio. Mas eu gosto de desafios. Tinha a questão de viajar de avião, porque tenho medo. E tive um ataque de pânico antes de entrar no avião. Talvez pela ansiedade de não saber como lidar com a competição e pelo efeito de antecipação da viagem.
Sou atleta de alta competição. Somos treinados a controlar as nossas emoções.
E o que fizeste?
Como tinha os medicamentos na mala de porão e como ainda não tenho a certeza se são doping, não tomei a medicação. Depois, no avião tive outro ataque de pânico gigante.
O que é que se passou?
Fiquei com falta de ar, taquicardia, suores frios...
Pediste ajuda?
Eu consigo controlar-me. Sou atleta de alta competição. Somos treinados a controlar as nossas emoções. Penso que essa é a grande bagagem que tenho.
E o que é que fazes?
Respiração, meditação. Fiz meditação durante a viagem toda. Basicamente, esses são os recursos que tenho e que utilizo para ultrapassar estes momentos. Depois cheguei lá e fui algemado pelos guardas da alfândega.
Porquê?
Diziam que eu tinha alterado a minha identidade para entrar na Suíça. Na fotografia do meu bilhete de identidade estou com barba e cabelo comprido, e na altura estava com o cabelo rapado, sem barba e mais magro - ia participar nos -100 kg. Então, eles diziam que a minha identidade tinha sido alterada. Levaram-me para uma sala, perguntaram-me, num inglês terrível, o nome, de onde é que eu vinha, porque é que estava ali, porque é que eu tinha alterado a minha identidade.
E como se resolveu a situação?
Fiquei duas horas a gerir o meu ataque de pânico na alfândega e a tentar explicar que estava ali porque ia competir no dia seguinte, que tinha sido convidado, que o meu treinador estava lá fora à minha espera. Lá chamaram o meu treinador, ele explicou-lhes tudo. E acabou por se resolver a situação.
Mas a ansiedade não terminou aí.
Não. Fui para casa do meu treinador, mas não consegui dormir à noite, porque estava na expectativa. Sou uma pessoa com muitas dúvidas. Mas para mim a dúvida funciona como a dúvida racional de Descartes. É uma dúvida inquisidora, ou seja, é uma dúvida que me impulsiona a ir para a frente. Todos nós temos estes momentos de dúvida, não é?
No momento do combate, não ouço as vozes e consigo superar-me.
Não dormiste essa noite. Como foi o dia seguinte na competição?
No dia a seguir, enquanto estava a fazer o aquecimento, as vozes intensificaram-se de uma forma brutal. A dizer para matar os meus colegas de equipa, para matar o meu treinador, para matar os árbitros, para ser agressivo para com as pessoas que estavam na plateia. E eu estava super constrangido.
Como se transforma isso de forma a conseguir entrar no combate?
Há um momento em que eu tenho um clique. Acontece quase sempre. É o momento em que eu penso assim: número um, a minha família ia ficar super orgulhosa se eu competisse. Número dois, a minha mãe ensinou-me que nunca se deve desistir. Número três, estou aqui para honrar o passado dos meus ancestrais. A verdade é que no momento do combate não ouço as vozes e consigo superar-me.
Durante os combates não ouves as vozes?
No combate, não. É engraçado. Não ouço vozes nem durante os combates nem quando estou a dormir.
E acabou por correr bem, não foi?
Ganhei um combate e perdi outro. E depois no campeonato zonal [competição de apuramento para o campeonato nacional] fiquei em segundo.
Dizes que as vozes foram tuas amigas no zonal. O que é as vozes serem amigas?
É não se manifestarem de forma tão abrupta.
Estão lá na mesma, mas não dizem mensagens tão intensas, é isso?
Exatamente.
O que é uma voz menos intensa?
É a frequência com que elas se repetem na minha cabeça. O conteúdo não se altera. Era bom (sorri). É sempre desafiante lidar com estas vozes.
Foste diagnosticado com esquizofrenia paranoide. Além das vozes, de que outras formas isso tem impacto na tua vida?
Atualmente são só as vozes. Mas se eu não estiver adequadamente medicado, o meu raciocínio dispara a uma velocidade louca. Por exemplo, quando tive o meu primeiro surto psicótico queria ir para os EUA, formar um partido político, tive a ideia de um negócio, criei uma letra de uma música. Isto tudo no espaço de uma semana. Tenho lá um caderno deste tamanho todo escrito com os meus devaneios [faz gesto com os dedos a indicar um volume de cerca de 200 páginas]. Tenho uma capacidade absurda de produzir, durmo pouco. Durmo uma hora e é como se tivesse dormido as oito horas completas. E sinto-me completamente revigorado. E depois tenho pensamentos persecutórios, no sentido de alguém estar a montar uma teoria da conspiração contra a Humanidade. É engraçado que nunca é contra mim. É contra a Humanidade em geral.
Porque achas que é assim?
Penso que tem muito que ver com a minha veia humanista. Nós todos somos responsáveis por contribuir para que o mundo à nossa volta seja um bocadinho melhor. Então, os meus pensamentos quando não estou medicado são sempre: "Estão a montar uma conspiração contra a Humanidade, vão erradicar a raça humana". Quando tive o meu primeiro surto psicótico dizia que a Humanidade estava a ser manipulada pela Samsung, então a minha ideia era infiltrar-me na organização para a destruir. Estes são os sintomas quando não estou devidamente medicado.
Eu tenho uma expressão: “Os sapatos da realidade magoam-me”.
A medicação demorou um bocadinho a acertar, mas agora permite-te o equilíbrio no dia-a-dia?
Sim. Só a questão das vozes é que estamos a tentar ver se conseguimos atenuar através de medicação alternativa e acessória. Mas não tem sido fácil.
Dizes que o judo te completa. Ao mesmo tempo também dizes que tens uma relação meio esquizofrénica com o judo. Como é que isto tudo convive?
Respondendo à primeira parte: o judo completa-me porque desde pequeno que senti que era diferente na maneira como eu observava o mundo à minha volta. Eu tenho uma expressão: “Os sapatos da realidade magoam-me”.
O que é isso quer dizer?
Que eu olho para a realidade e vejo injustiça, vejo crime, vejo falta de compreensão, falta de humanidade, falta de empatia, falta de responsabilidade ética. E isso tudo magoa-me. Dando um exemplo muito específico: no primeiro ano, a minha professora separou os alunos em negros e brancos e batia imenso nos alunos negros.
Só falando nas coisas é que elas têm capacidade de deixar de ser rótulos.
Isso com que idade?
Com seis. Houve um momento crucial em que a professora mandou uma colega minha ao quadro e ela, de tão nervosa que estava, não conseguiu resolver o cálculo aritmético. A minha professora deu-lhe uma chapada com tanta energia cinética que ela bateu com a face no quadro e caiu no chão. Foi a partir desse momento que eu decidi que eu ia ser o melhor aluno da turma.
Porquê?
Porque senti que não ia deixar que alguém definisse aquilo que eu sou baseado na minha cor. E a verdade é que até hoje mantive sempre boas notas. Em termos emocionais, carrego tudo isso [as injustiças] na minha individualidade. E o judo completa-me, no sentido em que me proporciona uma alternativa à realidade que se apresenta, uma perspetiva humanista. O judo baseia-se num conjunto de valores e tem uma filosofia muito própria, e isso permite-nos sermos melhores cidadãos.
Que valores são esses?
O autocontrolo, a amizade, a cortesia, o respeito. Ao mesmo tempo tenho uma relação esquizofrénica com o judo, no sentido em que o quero muito, mas tenho muitas dúvidas de qual vai ser o impacto dele em mim. Então, às vezes tenho medo.
No encontro “O homem promotor da igualdade” vais estar no painel que fala de quebrar os estereótipos. Por um lado, dizes que vários dos termos que usas para te identificares - negro, gay, pessoa com doença mental - são só rótulos. Por outro lado, quase sempre usas esses rótulos quando te apresentas. Se são só rótulos, porque é que os usas?
Porque acredito que só falando neles é que eles um dia vão deixar de ser rótulos. Na sociedade portuguesa há muito o tabu e o secretismo de não se falar sobre as coisas. Eu apresento-me dessa forma precisamente para quebrar estereótipos. “Eu sou isto, mas olhem para mim: sou muito para além disto. Tenho uma história que é mais do que isto”. Só falando nas coisas é que elas têm capacidade de deixar de ser rótulos.
Nas zonas mais conservadoras da cidade, quando entro numa loja há sempre um assistente de loja está atrás de mim.
Que estigmas é que esses rótulos trazem?
Muitos. O facto de o negro está associado a não ser inteligente.
Sentes isso no dia-a-dia?
Sinto.
Como? Podes dar um exemplo?
Quando comecei a dar as primeiras entrevistas e antes de ter lançado o blogue sentia que os entrevistadores falavam sempre comigo de uma maneira descredibilizante. Eu tinha de ter o discurso elaborado, de que eu não gosto tanto porque acho que corta a comunicação, mas era para lhes mostrar que estavam a falar com alguém que é inteligente e que sabe falar.
De que outras maneiras sentes este estigma de ser negro?
Nas zonas mais conservadoras da cidade, quando entro numa loja há sempre um assistente de loja está atrás de mim. Ou então está a arrumar as coisas e a olhar de lado. E eu sinto que isso não acontece quando na loja estão pessoas brancas. Mesmo quando fui para o S. João de Brito [teve uma bolsa para frequentar o secundário no colégio] senti esse estigma inicialmente. Quando disse que queria ser médico, os alunos da minha turma riram-se. São estes pequenos episódios que fazem com que o ser negro ainda seja um estigma na sociedade.
E o ser gay?
O ser gay eu não sinto tanto. É uma das questões que eu vou referir na minha intervenção. As pessoas já me olham como um campeão. Há histórias horríveis no judo de homens homossexuais que foram completamente rejeitados pela sua orientação sexual. O facto de eu ser grande e de ter bons resultados - um ano depois de começar a praticar judo fui logo campeão nacional - protege-me.
Quando tive o meu primeiro surto psicótico, as pessoas tinham medo de mim.
Não poderão ter sido dispensados por não terem bons resultados?
Não. Tenho amigos dessa época que me contam que não aguentaram a pressão de ser constantemente gozados, constantemente postos de parte. Isso existia.
No início também sentiste isso?
Não. Quando eu entrei no judo, ainda vinha com o sistema do bairro social em que cresci: pôr cara de mau, "não falem comigo, estou aqui para treinar, se te meteres comigo eu vou morder”. As pessoas dizem que eu evoluí imenso enquanto ser humano, e isso agradeço ao judo - não teria sido possível de outra forma.
O terceiro rótulo é o da doença mental.
O da doença mental é um dos que eu senti mais na pele. O desporto não está preparado para pessoas com doença mental. O desporto está associado a saúde. Quando tive o meu primeiro surto psicótico, as pessoas tinham medo de mim. Apesar de eu estar descompensado, eu sentia que o olhar delas era de medo.
Tinham razão para ter medo? Durante o surto não tinhas tido comportamentos agressivos?
Não. Mas tinham medo, porque nós temos medo do desconhecido. É por isso que eu sou um ativista na saúde mental. Quando temos um suicídio a cada 40 segundos [por ano, a nível mundial], temos de falar sobre isto abertamente. Quando temos o Michael Phelps, que teve depressão e tentou suicídio, quando temos o Ian Thorpe [nadador australiano, também atleta olímpico] que teve depressão e também tentou o suicídio, é importante falar sobre isto.
Nós somos todos ostras. Temos de aprender a deixar-nos agredir pelos grãos de areia e a transformá-los em pérolas.
Em Portugal também?
Não posso dizer nomes, porque ia pôr em causa as pessoas, mas há muitos - mas muitos atletas - portugueses que sofrem de depressão. Muitos, muitos atletas portugueses que tiveram ou têm surtos psicóticos. Há muitos, muitos atletas portugueses que tiveram burn out. Mas que preferem esconder-se e não dizer a ninguém.
Já disseste publicamente que tu próprio passaste por duas tentativas de suicídio.
Sim, foi em novembro, dezembro de 2016 [depois da participação nos Jogos Olímpicos]. Estava muito deprimido. Passava dia e noite a pensar em matar-me. Não via outra solução. Viver era tão pesado que não havia outra forma, outra resposta que eu pudesse dar à minha existência.
Desde essa altura até agora não voltaste a sentir que essa era a resposta?
Às vezes, quando estou a ouvir as vozes, passa-me essa ideia na cabeça, mas depois lembro-me da minha missão e lembro-me de quão bom é viver.
Qual é a tua missão?
Inspirar os outros a dar o seu melhor. Nós somos ostras. E a prova de resiliência que a ostra dá é transformar-se numa pérola, quando é agredida por um grão de areia. Nós somos todos ostras. Temos de aprender a deixar-nos agredir pelos grãos de areia e a transformá-los em pérolas.
O que é que te ajudou a ultrapassar os momentos em que puseste em causa a tua vida?
Aí entro numa questão mais espiritual. Acho que foi Deus. A minha fé é tão grande. Deus tem um papel essencial na minha vida. Tenho uma relação com Ele tão forte. É Ele que me sustenta. É a minha luz, o meu ponto de abrigo. É como se eu estivesse à beira do precipício e Ele me dissesse: "Tu és capaz de suster esta adversidade". Nesses momentos tenho uma voz na minha cabeça a dizer: "Não percas a esperança".
Então Deus também é uma voz que tens na tua cabeça?
Sem dúvida. Mas das boas.
Como é que distingues esta voz das que ouves por causa da doença mental?
É mais uma conexão. É difícil de explicar. Deus fala-me ao coração. Fala-me da minha humanidade, fala-me de amor. E a voz da doença mental é antagonista a tudo isto. As sensações que a voz de Deus desperta no meu corpo são de calma, tenacidade.
O nome da tua intervenção no encontro é uma frase que usas bastante no teu blogue: "Imbatível na derrota". O que é derrota para ti? E o que é que te torna imbatível?
A derrota é qualquer resultado que não corresponde às tuas expectativas. Seja de trabalho, afetivo, emocional. O que me faz imbatível na derrota é ter a capacidade de a aceitar e de sair dela mais forte, um ser mais evoluído. O que me faz imbatível também é a força que vou buscar às minhas origens. Sempre que sou assolado por uma derrota, lembro-me dos meus valores, do meu propósito. Acredito que é importante todos fazermos este exercício diariamente: acordarmos e lembrarmo-nos do nosso propósito, sermos gratos pela vida. No encontro vou falar sobre isso também. Sobre os centros de recompensa. Quando somos gratos, o cérebro liberta dopamina e sentimo-nos mais aliviados. Tem um efeito similar às endorfinas quando praticas desporto. Mas não vou dizer tudo aqui porque é a minha comunicação.
No filme "Joker", uma das frases que ganham destaque é: "The worst part of having a mental illness is people expect you to behave as if you don't" ("A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que te comportes como se não a tivesses").
Sem dúvida. Concordo absolutamente. Diria até mais [diz em inglês]: "A pior parte de ter uma doença mental é as pessoas não aceitarem que ter um problema mental é parte da natureza humana”.
Ser saudável é ser-se louco.
Como assim?
Cerca de 3% da população mundial ouve vozes relacionadas com aquelas que eu ouço. Falo disto com a maior das naturalidades, porque estas situações fazem parte da natureza humana. Mas o estigma é tão forte que se assume logo à partida que a pessoa com doença mental é inválida. É por isso que sou um ativista e falo abertamente sobre estas questões. E digo que ouço vozes que me dizem para matar pessoas. É possível viver com elas.
Há uma frase que citas da tua mãe: "O amor é a loucura máxima da Humanidade que tudo transpõe". Acho curiosa esta ligação entre o amor e a loucura. Porque é que esta frase é tão importante para ti?
É atribuída a Nietzsche uma frase que diz algo como: "Todo o amor tem um pouco de loucura, e toda a razão tem um pouco de loucura". É absolutamente aquilo em que eu acredito. Se formos behavioristas vamos acreditar que o amor não é mais do que ligações químicas no nosso cérebro e que é comparável a uma droga. Por isso, põe-nos em estados de transe que alteram a nossa realidade. E daí concordar com Nietzsche: o amor tem o seu “q” de loucura. E a razão também tem o seu “q” de loucura. Ser saudável é ser-se louco.
Porquê?
Porque quando compreendes que tens uma base racional e a aceitas, tens a capacidade de fazer coisas “out of the box”. E quando fazes coisas “out of the box” és comparado a ser louco. Sem dúvida que a loucura está relacionada com o amor e a razão está de mão dada com a loucura.
Consideras-te louco?
Sem dúvida (ri-se). No bom e no mau sentido.
Ofendes-te se te chamarem louco?
Não.
Porquê?
Porque eu vejo a loucura como uma excentricidade. É um luxo ter uma doença mental. É quase - sendo pouco pragmático - um luxo que poucas pessoas podem ter. Ter as alucinações, ouvir vozes transporta-nos para mundos a que o comum mortal não tem acesso. Tu não ouves vozes. Não sabes o que isso é. Não sabes o que é viver na irrealidade da realidade.
Esta entrevista foi realizada no âmbito do encontro "O homem promotor da igualdade", da associação Quebrar o Silêncio, que se realiza nos dias 14, 15 e 16 de novembro, no ISCTE, em Lisboa.
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